Trata-se de responder ao questionamento quanto à ocorrência, ou não, de preclusão lógica quando, não havendo interposição de recurso de apelação pela Fazenda Pública, a sentença é reformada em sede de reexame necessário e há, mesmo assim, a protocolização de Recurso Especial.
Far-se-á, para subsidiar a resposta, uma análise da legislação processual, bem assim do atual entendimento jurisprudencial acerca do tema.
A Fazenda Pública, na qualidade de administradora (no sentido de gerenciar coisa alheia) de bens públicos, é munida de prerrogativas e garantias, justamente para tutelar o interesse público. Assim, o regime jurídico a que está submetida a Fazenda Pública é a da supremacia do interesse público (que é indisponível) sobre o privado. Dentre essas prerrogativas está o reexame necessário.
O reexame necessário não é recurso, eis que não integra o rol taxativo do art. 496, do [antigo] CPC, nem é tratado como recurso em qualquer outro diploma legal[1]. Trata-se, em verdade, de condição de eficácia da sentença (EREsp 168.837/RJ, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 05.03.2001; REsp 226.253/RN, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJ de 05.03.2001; AgRg no Ag 185.889/RS, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ 01.08.2000).
No direito brasileiro, segundo Nelson Nery Júnior[2], a origem do reexame necessário remonta a 1831, com os mesmos objetivos dos atuais, vale dizer, o de dar às sentenças proferidas contra a Fazenda Pública maior segurança, a fim de evitar danos ao erário.
Até 2010, prevalecia no âmbito do STJ entendimento de que a interposição de recurso voluntário gerava a presunção de resignação da Fazenda Pública, diante do provimento jurisdicional apresentado, logo, a preclusão lógica caso fosse intentado recurso especial ou extraordinário em sede de reexame necessário (REsp 904885/SP, julgado em 12/11/2008, DJU 09/12/2008 e EREsp 1.036.329/SP, julgado em 14/10/2009).
A partir de então, no julgamento do REsp 905.771/CE (rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 29/06/2010), a Corte afastou a tese da preclusão lógica e adotou o entendimento de que a Fazenda Pública, ainda que não tenha apresentado recurso de apelação contra a sentença que lhe foi desfavorável, pode interpor recurso especial.
Já no âmbito do Supremo Tribunal Federal já prevalecia a tese de que não haveria preclusão lógica em face da Fazenda Pública nos presentes casos (AgRg no RE 540508/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 11/11/2008, DJ de 28/11/2008).
A questão de ordem técnica, extraída do voto vencedor do Ministro Teori Albino Zavascki no RESP 905.771, reside no fato de que o direito brasileiro, no que se refere à preclusão lógica no âmbito recursal, contempla duas hipóteses específicas de fatos extintivos do direito de recorrer: a renúncia, prevista no art. 502, do [antigo] CPC (ato unilateral e expresso), e a aceitação da decisão (aquiescência), prevista no art. 503.
Somente se configura preclusão lógica por aquiescência tácita quando ela decorre da “prática de um ato” (portanto, de um ato positivo) que seja inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer. Comportamentos simplesmente omissivos não acarretam essa perda do direito. Sobre o ponto, escreveu Araken de Assis:
"A aquiescência se reparte em expressa e em tácita. É expressa a aquiescência endereçada, por escrito ou oralmente, ao órgão judiciário e através de declaração dirigida à parte contrária. O art. 503, parágrafo único, considera aceitação tácita a ‘prática, sem reserva alguma, de um ato incompatível com a vontade de recorrer’. É, pois, conforme realçou a 4ª Turma do STJ, um ato comissivo. Resultará de fatos inequívocos e convergentes, não cabendo presumi-la."[3]
Assim, a preclusão lógica, segundo Barbosa Moreira, “consiste na perda de um direito ou de uma faculdade processual por quem tenha realizado atividade incompatível com o respectivo exercício”[4].
Significa dizer que a não interposição de recurso voluntário pela Fazenda Pública (ato omissivo) não tem o condão de configurar preclusão lógica, já que não se trata de um ato comissivo ou de atividade incompatível com o respectivo exercício.
Ademais, a falta de recurso voluntário não pode ser vista como um comportamento que indique que a Fazenda não tem vontade de recorrer ou que concorde com a sentença contrária aos seus interesses.
Muito pelo contrário. Isso porque, em sede de reexame necessário não pode a Fazenda Pública ter uma situação piorada, nos termos da súmula 45, do STJ: "No reexame necessário, é defeso, ao Tribunal, agravar a condenação imposta à Fazenda Pública". Trata-se, conforme já salientado, de instituto criado em benefício do Poder Público, em face da supremacia do interesse público (Resp 435.645, Rel. Ministro Franciulli Netto, DJU de 19.05.03).
Desse modo, havendo a obrigatoriedade da remessa necessária, evidente que a matéria será revista pelo Tribunal, daí o motivo da Fazenda Pública não precisar interpor o recurso voluntário porque a regra lhe ampara e garante o reexame da decisão.
Justamente o efeito de devolver ao Tribunal toda a matéria em que sucumbiu a Fazenda Pública, opera-se o efeito substitutivo da sentença, conforme art. 512, do [antigo] CPC. Nesse sentido, ainda, dita a súmula 325, do STJ: “A remessa oficial devolve ao Tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, inclusive dos honorários de advogado”.
Devolvendo o recurso de ofício à instância superior o conhecimento integral da causa, não há que falar em preclusão do que restou decidido na sentença (AgRg no RE 540.508/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 27/11/2008).
Não obstante, conforme destacou o Ministro Teori Albino Zavascki em seu voto, pode ocorrer erro de julgamento ou erro de procedimento no acórdão que apreciou o reexame, daí ser necessária a interposição do recurso especial.
Além dos argumentos então expostos, cumpre destacar que o eventual recurso voluntário interposto pela Fazenda Pública não inova e não amplia o âmbito de cognição ou os efeitos do julgamento de segundo grau. Representar, na prática, a bem dizer, um simples reforço de argumentação em prol das teses fazendárias, que compõem o objeto cognitivo do Tribunal.
Portanto, relativamente à matéria objeto do reexame, não há preclusão, nem trânsito em julgado contra a Fazenda (Súmula 423/STF: Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso 'ex officio', que se considera interposto 'ex lege'"). Ademais, a inexistência do recurso voluntário pela Fazenda Pública não configura aceitação tácita dos termos da sentença de primeiro grau, e, por conseguinte, não implica preclusão lógica a impedir o conhecimento do recurso especial.
CONCLUSÃO
Não há preclusão lógica para que a Fazenda Pública possa ajuizar recurso especial ou extraordinário em sede de reexame necessário, mesmo não tendo sido interposto recurso voluntário, tendo em vista à indisponibilidade do bem público e a necessidade de proteção ao conjunto patrimonial titularizado pela própria sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Araken. Manual dos recursos. São Paulo: RT, 2007, p. 173.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 117.
BRASIL. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm>. Acesso em: 03 mar. 2013.
DIDIER JR, Fredie; DA CUNHA, Leonardo Carneiro da Cunha. Curso de direito processual civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. v.3. 10 ed. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 515.
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 76.
STF. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 03 mar. 2013.
STJ. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 03 mar. 2013.
NOTAS:
[1] DIDIER JR, Fredie; DA CUNHA, Leonardo Carneiro da Cunha. Curso de direito processual civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. v.3. 10 ed. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 515.
[2] in Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 76.
[3] ASSIS, Araken. Manual dos recursos. São Paulo: RT, 2007, p. 173.
[4] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 117.