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As testemunhas de Jeová e sua recusa à transfusão de sangue: direito garantido ou lesão aos direitos fundamentais?

Agenda 09/01/2015 às 21:57

Este singelo artigo é apenas o início de um estudo extenso, uma vez que a discussão acerca dos direitos fundamentais bem como a crença das Testemunhas de Jeová não se limita apenas aos tópicos abaixo.

Na última semana, muito se falou nos noticiários capixabas acerca de uma jovem secretária que estava entre a vida e a morte em determinado hospital, necessitando de uma transfusão sanguínea para recuperar-se. Ocorre que, a família da enferma não autorizou a transfusão, uma vez que, sua religião (Testemunhas de Jeová) veda tal procedimento.

Após a recusa da família, o hospital dirigiu-se ao judiciário a fim de conseguir permissão para ultrapassar o consentimento da família, e realizar a transfusão na paciente. Todavia, mesmo após conseguir o deferimento pelo poder judiciário, a enferma não “aguentou” a espera e acabou por falecer.

Pois bem, será que o paciente que professe determinada fé religiosa pode negar-se a se submeter a tratamento médico (como a transfusão de sangue), se a falta deste implique eventual risco de morte? Será que a família agiu de forma correta? Será que o hospital tomou a providência correta diante deste caso? E o poder judiciário?

Nota-se, através de artigos e jurisprudências publicadas, que a polêmica acerca da recusa do paciente em sujeitar-se a determinado tratamento fundado em sua religião, têm ganhado cada vez mais destaque, sem, no entanto obter respostas isonômicas. Alguns julgados defendem que o médico deve intervir, e realizar a cirurgia necessária para que o paciente não venha a óbito, alegando que a proteção à vida prevalece à liberdade religiosa, quando há possível conflito entre os mesmos. Destarte, há julgados que apoiam a escolha do indivíduo, pautado em seus direitos e garantias fundamentais.

O pensamento “jeovista” acerca desse assunto baseia-se em uma interpretação livre do texto bíblico, realizada por estes religiosos, onde creem que o sangue representaria a “alma” do indivíduo, e introduzir sangue pela boca ou pelas veias violam as leis de Deus, sendo que entendem que a interpretação deve ser estendida para tratamentos médicos. Afirmam que a proibição consta em diversas passagens da bíblia ainda que não expressamente descrita desta forma. Creem ainda, que aquele que ingira sangue por via oral ou venosa, será considerado impuro, de forma que o pecado deste membro será julgado pelos conselhos de anciões, podendo até mesmo ser expulso do grupo.

A Constituição Federativa da República do Brasil assegura em seu art. 5° inciso VI, a liberdade religiosa, de modo que o indivíduo é livre para o exercício da fé, pautado no direito assegurado pela Carta Magna.

A comunidade médica costuma não aceitar a recusa do paciente Testemunha de Jeová fundamentando que é seu dever zelar pela vida daquele, e que devem assim, tomar as medidas necessárias para obter resultados satisfatórios de modo que o paciente continue vivo.

Dizer que o indivíduo tem direito a vida, deve ser interpretado no sentido de que este mesmo indivíduo possui direito de existir de forma digna, de modo que, a liberdade deve ser amplamente respeitada, assim como a liberdade do indivíduo de praticar sua fé, e proteger-se nesta, sendo livre ainda para eleger seus projetos existenciais sem sofrer discriminações acerca de suas escolhas.

A dignidade da pessoa humana, em sua expressão mais essencial exige que toda pessoa viva bem consigo mesma, de forma que possua uma vida digna, viva feliz.

Neste diapasão, a dignidade humana protege a autonomia, que envolve a capacidade de autodeterminação e o direito de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente a própria personalidade. Assim, conclui-se pela conexão dos direitos fundamentais, ou seja, o direito a liberdade religiosa está amplamente conectado com a personalidade do indivíduo, assim como o exercício desses direitos, colabora para a eficácia plena da dignidade humana.

Nesse sentido, Canotilho (apud Júnior , 2010, s/p) expõe que:

[...]as liberdades de consciência, de religião e de culto protegem o núcleo substancial da personalidade porque são constitutivas da identidade pessoal e do direito de desenvolvimento da personalidade como direito fundamental da vida[...]

Conforme o entendimento exposto tem-se que a liberdade religiosa deve ser respeitada para que haja efetivação da personalidade íntima do indivíduo, bem como haja eficácia da proteção à vida, por ser esta proteção pautada na existência do indivíduo de forma digna, e não sendo somente uma proteção literal no sentido de apenas estar vivo.

Corroborando com a solução da temática apresentada, Júnior (2010, s/p) aduz o seguinte:

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Em um Estado Constitucional Democrático de Direito, a manifestação prática da fé não se esgota na liberdade de culto; ela engloba a impossibilidade de o Estado impor condutas aos cidadãos atentatórias à sua dignidade e à sua convicção religiosa. Nessa perspectiva apresenta-se legítima a possibilidade de os praticantes da religião Testemunhas de Jeová recusarem a realização de qualquer tratamento que envolva transfusão sanguínea.

Insta reiterar, que a recusa acerca de tratamento sanguíneo pelas Testemunhas de Jeová, é fundamentada na crença religiosa deste grupo, de modo que, sendo a prática de culto e crença religiosa, protegidas constitucionalmente não há como impor ao indivíduo o cerceamento deste direito, conforme esclareceu o autor acima destacado. 

Assim, se o paciente recusa-se a submeter-se a determinado tratamento em virtude de sua crença, tal decisão deve ser acatada, de modo a respeitar a convicção do indivíduo, e buscar novas soluções ou tratamentos para a resolução do caso, de modo que não venha a ferir os costumes religiosos do paciente.

Ainda que se fale em iminente risco de morte, a liberdade e autonomia do indivíduo deve ser respeitada, pois mesmo que este esteja correndo risco de morte não é possível obrigar ao paciente que renuncie às suas crenças religiosas para passar por determinado tratamento alegando que somente assim irá sobreviver, pois clarividente que obrigá-lo a tanto, fere sua dignidade humana, uma vez que, caso o resultado do tratamento seja positivo o religioso terá de conviver com o “peso” de ter passado por cima de suas convicções, o que conforme citado, pode causar até mesmo a expulsão do membro do grupo.

Por fim, concluo este modesto artigo, corroborando com o pensamento de que devido à dimensão da liberdade religiosa como direito subjetivo garantido constitucionalmente ao indivíduo, deve o mesmo ser respeitado, de maneira que deveria ser vedado a imposição de tratamento médico a qual o religioso manifestamente recusa-se a se submeter devido as suas crenças.

Referências

BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade de Recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Revista Trimestral de Direito Civil. v. 42. p. 49-91.Rio de Janeiro:Editora Padma, abril/junho 2010.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Direitos Fundamentais. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

GONÇALVES, Antonio Baptista. Os Direitos e Garantias Fundamentais Atinentes à Intolerância Religiosa e a Relação com o Terrorismo. v. 916. local? fev 2012.

NERY JUNIOR, Nelson. Direito de Personalidade. Soluções Práticas – Nery. Revista dos Tribunais online. v. 1. p. 29-76. local? Set.2010.

PENTEADO, Luciano de Camargo. O Direito à Vida, o Direito ao corpo e às partes do corpo, o Direito ao Nome, à Imagem, e outros relativos à identidade e à Figura Social, inclusive Intimidade. Revista de Direito Privado. V. 49 p. 73-96. local? Jan 2012.

GOMES, Daniela Vasconcellos. O Princípio da Dignidade Humana e a Ponderação de Princípios em conflitos Bioéticos. Revista de Direito Privado. V. 29 p. 78-90. local? Jan 2007. 

Sobre a autora
Sthefania Machado

Advogada, graduada pela Universidade de Vila Velha (UVV) em 01/2014, cursando Pós-Graduação em Direito Processual Civil na FDV.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Texto baseado em meu trabalho de conclusão de curso (monografia) na graduação.

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