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A instituição da sociedade convivencial entre pessoas de mesmo sexo.

A discriminação legalizada e a oportunidade em afastá-la

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8 – ANEXOS

Anexo 1 – Projeto de Emenda à Constituição do Estado de Santa Catarina

JUSTIFICATIVA PARA PROJETO DE EMENDA CONSTITUCIONAL

"Difícil para quem é excluído e discriminado, pelo fato de ser diferente, é constatar que o preconceito leva à exclusão não só familiar, social ou legal, mas à pior de todas elas: a exclusão perpetrada pela Justiça."

"Cada sociedade, em todos os tempos, procurou controlar a vida sexual de seus membros, tentando colocar limites e barreiras para o prazer sexual. Assim foram estabelecidas juridicamente regras e normas para assegurar o caráter politicamente conservador e a utilidade econômica da sexualidade."

A Constituição da República elenca, dentre os princípios fundamentais, a dignidade do ser humano. Em seu artigo 5º cita que "todos são iguais perante a lei", deve ser entendido e observado obrigatoriamente não só pelos "órgãos que aplicam o direito", mas também na "formulação do direito", direcionando diretamente ao legislador, conforme lição de Robert Alexy, conforme citam Leivas e Beckhausen, procuradores da República em Ação Civil Pública contra o Instituto Nacional de do Seguro Social - INSS, em Porto Alegre - RS. Dentre os objetivos, estabelece a promoção do bem de todos, independente de origem, raça, sexo, cor, idade e outros qualificativos, vedando a prática de qualquer discriminação.

Na mesma linha, a Lei Orgânica do Município de Florianópolis garante a todos o acesso aos serviços e condições de vida indispensáveis a uma existência digna e sem distinção de orientação sexual, entre outras formas.

A proibição de discriminação por orientação sexual está, também, estabelecida na legislação de outros municípios, tanto no nosso País como no exterior.

A presente propositura visa estabelecer sanções administrativas pela prática de discriminação motivada pela orientação sexual, de forma a efetivar a garantia prevista na Constituição e na Lei Orgânica do Estado. Pois não basta estabelecer a proteção ao Direito, sem impor punições àqueles que a violem.

Jamais a orientação sexual do indivíduo pode servir para justificar um tratamento discriminatório, como se ser humano e sujeito de direitos não fosse. Nem pode se restringir o exercício do direito de cidadania, ou anularem-se as garantias à dignidade, a livre manifestação do pensamento e a um tratamento igualitário por parte de todos, aí incluídos o poder público e a Lei.

Pretende-se, portanto, garantir-se que sejam esses direitos efetivamente observados.

No uso da competência estabelecida pelo inciso I, do artigo 40 da Constituição do Estado e, nos termos do inciso I, do artigo 191 do regimento interno desta Casa, submetemos à elevada consideração de Vossas Excelências, Projeto de Emenda Constitucional visando a alteração do texto do inciso IV do artigo 4º da Constituição do Estado de Santa Catarina.

Diante da crescente onda de intolerância frente à orientação sexual de grupos humanos, diversas organizações de homossexuais passaram a elaborar demandas políticas de caráter público que possam, no curso mais avançado do tempo, eliminar os preconceitos e discriminações por conta das preferências sexuais.

Nos últimos dez anos, de acordo com dados oficiais, mais de 2500 brasileiros foram vítimas de homofobia, o termo utilizado para designar o sentimento de ódio e aversão aos homossexuais. São assassinatos brutais, geralmente precedidos de torturas. Atos que não são suficientemente desumanos aos olhos da Lei, pois muitos dos assassinos continuam em liberdade. Somam-se a isto as demissões, as humilhações públicas, os espancamentos, os impedimentos de demonstração pública de afeto entre pessoas do mesmo sexo e outras atitudes do gênero que segregam pessoas apenas baseadas na orientação sexual, como se a sexualidade humana não fosse caracterizada pela sua diversidade.

A inclusão da livre orientação sexual, no texto do inciso IV do artigo 4º - Dos Direitos e Garantias Fundamentais, da Constituição do Estado, permitirá a garantia constitucional da proteção contra os atentados às pessoas em razão de suas orientações sexuais, cuja liberdade de escolha é inerente aos direitos da cidadania, ao mesmo tempo em que permite, de forma mais organizada, o debate sobre a necessidade do desmonte das idéias e práticas discriminatórias e que impedem a consolidação e de uma sociedade verdadeiramente democrática, emancipada, libertadora e plural.

Esta iniciativa segue o exemplo do que já está previsto nos direitos individuais da Constituição do DF e nas Leis orgânicas dos municípios de Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre e em outras cidades, em consonância aos mais avançados pensamentos do mundo moderno, aprimorando a convivência fraterna de seu povo.

Conforme o filósofo Michel Foucault, ao estudar a sexualidade no século XVIII, é desta forma que ele analisa a atuação do Estado:

"É preciso que o Estado saiba o que se passa com o sexo dos cidadãos e com o uso que dele fazem, mas também que cada um seja capaz de controlar o uso que dele faz. Entre o Estado e o indivíduo, o sexo tornou-se um valor em jogo, e um valor público; toda uma teia de discursos, de saberes, de análises e de injunções o investiu".

Muito pouco mudou desde então. E, o autor localiza a instância onde se dá o estabelecimento das normas e regras através das quais o Estado operacionaliza a intervenção na sexualidade de seus cidadãos e cidadãs para exercer o seu controle:

"A instância da regra - Seria essencialmente o poder que dita a sua Lei ao sexo. O que quero dizer, em primeiro lugar, que o sexo se acha colocado por ele sob o regime binário: lícito e lícito, permitido é proibido. O que quer dizer seguidamente que o poder prescreve ao sexo uma «ordem», que funciona ao mesmo tempo como forma de inteligibilidade: o sexo decifra-se a partir de sua relação com a Lei. O que quer dizer, por fim, que o poder actua pronunciando a regra: o domínio do poder sobre o sexo far-se-ia pela linguagem ou, antes, por um acto de discurso que cria, justamente porque se articula, um Estado de direito. Ele fala, e é a regra. A forma pura do poder encontrá-la-íamos na função do legislador; e o seu modo de acção seria, relativamente ao sexo, de tipo jurídico-discursivo."

E mais adiante Michel Foucault afirma:

"Quer o desejo seja isto ou aquilo, de qualquer maneira continua a ser concebido relativamente ao poder que sempre jurídico e discursivo - um poder que encontrou seu ponto central na enunciação da Lei."

Essas colocações do nobre filósofo significam que são os homens e as mulheres detentores (as) do poder quem delimitam as inclusões e os devidos reconhecimentos, determinando normas e regras e, que conhecemos pelo nome de Leis.

Ao não compreender a diversidade sexual da humanidade ou dos indivíduos que compõem a sociedade, a

"… exclusão social tem que ser repensada também a partir da questão da democracia... no entanto, a exclusão social, como já temos afirmado, é um fenômeno multidimensional que superpõe uma multiplicidade de trajetórias de desvinculação."

Numa sociedade regida pela democracia não é possível que tenhamos pesos e medidas diferentes. Dos (as) cidadãos e cidadãs cobramos deveres e não consentimos direitos básicos a uma significativa parcela dos (as) mesmos (as). Isto não é democracia, isto é controle, é exercício de exclusão pelo poder, favorecendo a uns (umas) e não a outros (as) e é por isso que me dirijo a vossas excelências porque, conforme Felipe Doutel:

"Para que todos sejam livres é preciso que cada um seja livre, só nos tomaremos iguais, se todos pudermos ser diferentes."

É pelos motivos aqui elencados, Vossas Excelências, que solicito a aprovação deste Projeto de Emenda Constitucional e para possamos colocar o Estado de Santa Catarina na vanguarda do respeito aos Direitos Humanos, e em consonância às disposições do Conselho Nacional de Combate à Discriminação.

Anexo 2 – Medida Liminar com abrangência Nacional

CIRCUNSCRIÇÃO JUDICIÁRIA DE PORTO ALEGRE

36 VARA FEDERAL PREVIDENCIÁRIA

PROCESSO Nº: 2000.71.00.009347-0

CLASSE: AÇÃO CIVIL PÚBLICA

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RÉU: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS

Vistos, etc.

Trata-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal visando a condenação do Instituto Nacional do Seguro Social a considerar o companheiro ou companheira homossexual como dependente preferencial da mesma classe dos heterossexuais (art. 16, 1, da Lei 8.213/91), para fins de concessão de benefícios previdenciários, deferindo todos os pedidos de pensão por morte e auxílio-reclusão que a eles refiram-se. Ainda, que possibilite a inscrição dos companheiros e companheiras homossexuais como dependentes; Inclusive no casos de segurado empregado ou trabalhador avulso, bem como que publique no Diário Oficial da União ato administrativo que reproduza a decisão judicial, remetendo cópia a todas as unidades da autarquia no Brasil, Postulou medida liminar, de abrangência nacional.

Foi determinada a citação do INSS, intimando-se-o, na mesma oportunidade, para manifestação no prazo de 72 horas, a teor do disposta no § 2º do art. 20 da Lei 8.437/92.

Manifestou-se o INSS no prazo fixado (fls. 19 a 40), requerendo o indeferimento da antecipação de tutela.

O exame do pedido de Iiminar demanda prévio análise de algumas questões de natureza processual, sobre as quais passo a tecer considerações:

1. Questões de ordem processual

1.1.Da legitimidade do Ministério Público

Impende analisar, primeiramente, a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública versando sobre o interesse em discussão.

A questão passa, num primeira momento, pela determinação da natureza desse interesse, dentre aqueles considerados transindividuais, cuja defesa é autorizada via ação coletiva.

Afigura-se-me evidente que o interesse em pauta, referente ao regime de seguridade social relacionado com a população homossexual, identifica-se com o conceito de interesse difuso, trazido pelo Inciso I do art. 81 da Lei 8.078/90, aplicável às ações civis públicas em geral por força do disposto no art. 21 da Lei 7.347/85.

De fato, trata-se de Interesse transindividual de natureza indivisível, cujos titulares constituem-se em uma coletividade Indeterminada de pessoas ligadas por circunstâncias de fato. Na definição de Hugo Nigro Mazzilli, "são como um conjunto de Interesses Individuais, de pessoas indetermináveis, unidas por pontos conexos". [4]O direito, por óbvio, não pode ser cindido, ou pertence a todos, ou a nenhum.

Isso advém de sua natureza constitucional, fundada em princípios corno os da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Ora, muito embora seja possível verificar seu ferimento em situações Individualmente consideradas, não há como deixar de reconhecer que sua violação em relação a um único indivíduo implica desrespeito a toda estrutura constitucional de garantia ao regime democrático de direito.

A constatação, de imediato, afasta qualquer dúvida acerca da legitimação do Ministério Público à sua defesa, que advém não só da autorização do art. 5º, combinado com o art. 1º, V, ambos da lei 7.347/85, mas de Incumbência institucional que lhe foi conferida pela própria Carta Constitucional de 1988, conforme se Infere do inciso III de seu art. 129.

Num segundo momento, importante referir que, mesmo que se adote entendimento diverso, no sentido de que o direito postulado enquadre-se na categoria dos direitos individuais homogêneos, ainda assim subsistiria a legitimidade do Ministério Público. Isso porque o art. 21

da lei 7.347/85, na redação que lhe foi dada pela Lei 8.088/90 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), determina a aplicabilidade à ação civil pública de toda a disciplina do CDC referente à "defesa dos direitos dos consumidores em juízo", o que envolve os direitos individuais homogêneos. Efetivamente, não haveria sentido na remissão se não fosse para atribuir ao Ministério Público legitimação para a defesa de outros interesses individuais homogêneos, já que os oriundos de relações de consumo, pela redação do próprio CDC, admitiam defesa coletiva pelo órgão ministerial, não necessitando da disciplina da Lei 7.347/85.

Ademais, a Lei Complementar 75/93, que dispõe sobre a organização, atribuições e estatuto do Ministério Público da União, na alínea "d" do Inciso VII de seu art. 6º0 dispõe competir-lhe a promoção de ação civil pública para a proteção de "outras direitos individuais* Indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos."

Por fim, já vem sendo pacificado pela jurisprudência que direitos individuais homogêneos podem ser defendidos pelo parquet no momento em que neles configure-se interesse social, o que parece evidente no caso em apreço, relacionado à seguridade social. Nesse sentido, os seguintes precedentes:

"Ação civil pública. Ministério Público. Legitimidade na defesa de direitos Individuais homogêneas (direitos previdenciários). (... )

Mesmo em se cuidando de direitos individuais homogêneos disponíveis, é a Ministério Público legitimado à sua defesa em juízo. É que, considerados em seu conjunto, aqueles passam ar ter significado ampliado, de resultado maior que a simples soma de posições individuais, de modo que sua lesão compromete vaiares comunitários privilegiados pela ordenamento jurídico por sua dimensão social. Ademais, numa época de _grande massificação, é conveniente obviar a proliferação de demandas múltiplas, prestigiando-se-lhes um tratamento molecularizado, a partir da Identificação de seu interesse nuclear." (sem grifo no original);

"Processual civil. Ação civil pública. Direitos e Interesses individuais homogêneos. Ministério Pública. Legitimidade. Recurso Especial.

1. Há certos direitos e interesses individuais homogêneas que, quando visualizados em seu conjunto, de forma coletiva e Impessoal, passam a representar mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, mas verdadeiros interesses sociais, sendo cabível sua proteção pela ação civil pública. 2. É o Ministério Público ente legitimado a postular, via ação civil pública, a proteção do direito ao salário-mínimo, dos servidores municipais, tendo em vista sua relevância social, o número de pessoas que envolvem e a economia processual. (.. ) "

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1.2. Da concessão de medida liminar contra o Poder Público

Importante analisar, ainda, a disciplina restritiva à concessão de medidas liminares contra o Poder Público, trazida pela Lei 8.347/92.

Confrontando a hipótese em análise com aquelas disciplinadas pelo art. 1º, caput, §§ 1º e 2º de dito diploma, verifico não haver enquadramento que vede a liminar postulada pelo Ministério Público.

A única dúvida que poderia restar estaria no disposto no § 3º do mesmo artigo, verbis., "não será cabível medida liminar que esgoto, no todo ou em porte, o objeto da ação."

A exegese do dispositivo, todavia, deve levar em conta a natureza da medida liminar nas ações civis públicas, de caráter antecipatório da tutela pretendida. Interpretação literal, em conseqüência, levaria ao absurdo de encontrar-se totalmente vedada qualquer liminar em sede de ações coletivas. A lógica, portanto, determina que o fundamento da norma, que não distinguiu as ações cautelares propriamente ditas e as liminares que podem ser deferidas em processos de conhecimento, deve ser buscado em conformidade com a disciplina da antecipação de tutela, traçada no art. 273 do Código de Processo Civil.

De fato, quando se trata de antecipar os efeitos de um provimento judicial de cunho sentencial, deve-se cotejar e conciliar três princípios básicos: o da necessidade, da menor restrição possível e o da salvaguarda do núcleo essencial. Em respeito a este último - que exige que nenhum dos valores em causa seja irremediavelmente sacrificado em nome do provimento Iiminar - é que se mostra impossível antecipar, através de liminares satisfativas, decisões de conteúdo irreparável ou irreversível, o que vem explicitado no § 20 do art. 273 do Código de Processo Civil. Nesse mesmo sentido é que deve ser lida a restrição em análise: incabível concessão de medida liminar contra o Poder Público que, esgotando no todo ou em parte o objeto da ação, impossibilite o retorno ao status quo ante em caso de sentença de improcedência.

In casu, a medida postulada não é Irreversível, já que, vindo a ser improcedente a ação, bastará ao INSS cancelar as inscrições das pessoas beneficiadas pela liminar e efetivar a cobrança de valores que tenham sido eventualmente pagos a título de beneficio previdenciário.

Por outro lado, encontram-se em jogo verbas de natureza alimentar, garantidoras do constitucional direito à vida, que não pode encontrar limites em legislação ordinária. Efetivamente, o fundamento de validade das leis é a própria Constituição, cujas regras, salvo expressa previsão, não podem ter sua eficácia tolhida por instrumentos normativos inferiores.

Não se verificam, assim, óbices legais à concessão da liminar postulada.

1.3. Da abrangência nacional da decisão

Pretende o Ministério Público ver deferida medida liminar que tenha abrangência nacional.

A tal pretensão poder-se-ia opor o conteúdo da recente redação do art. 16 da Lei 7.347/85, dispondo que "a sentença civil fará coisa Julgada erga omnes, nos limites, da, competência territorial do órgão prolator (...)".

O argumento, porém, não prospera, em especial por dois motivos: primeiro, porque o Código de Defesa do Consumidor, que também traça a disciplina processual das ações coletivas e é aplicável às demais ações civis públicas, não traz a mesma vedação; segundo, porque a própria natureza do direito em questão não permite sua cisão,

A inovação no art. 16 da Lei 7.347/85 foi veiculada pela Medida Provisória ri. 1.570/97 e posteriormente pela lei 9.494/97, cujo art. 20, todavia, em nada alterou a disciplina dos efeitos da coisa Julgada nas ações coletivas, explicitada no 103 do Código de Defere do Consumidor, aplicável às ações civis públicas em geral por força do disposto no art. 21 da lei 7.347185, que não foi objeto de modificação.

Há pois, suporte legal à abrangência nacional das decisões em ações civis públicas, porquanto, segundo o CDC, em se tratando da defesa de direitos difusos ou individuais homogêneos, a coisa julgada operará erga omnes.. Ademais, é um contra-senso lógico aludir-se à eficácia erga omnes, porém limitada a um grupo determinado de pessoas.

Por outro lado, mesmo que a lei não o dissesse expressamente, o tratamento dos direitos transindividuais demanda uniformidade, único modo de conferir, na expressão de André Carvalho Ramos, "substância ao princípio constitucional da universalidade da jurisdição e do acesso à justiça. [5]Realmente, se os direitos cuja defesa é feita através de ação civil pública, em especial os difusos, dentre os quais se encontra aquele ora postulado, têm em sua essência a indivisibilidade, como limitar os efeitos da coisa Julgada a urna área territorial restrita? Ou o direito existe, e é assim para todos, ou não existe.

O que fica flagrante na Infeliz redação do artigo em comento é que confundiu competência com limites subjetivos da coisa Julgada, ferindo a garantia constitucional de tutela dos interesses transindividuais, de modo que não pode subsistir, sob pena de não se solucionarem adequadamente os conflitos coletivos.

De fato, fixada a competência territorial do juízo, os efeitos da decisão, seja liminar, seja sentencial, obedecerão ao regime dos efeitos subjetivos da coisa Julgada, que in casu deve operar erga omnes, Além disso, o autor da demanda é o Ministério Público Federal, entidade regida pelo princípio da unidade (art. 127, § 1º, da CF), cuja atuação abrange todo o território nacional.

Nesse sentido, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, na Reclamação 602-6, na qual o relator, Ministro Ilmar Galvão, concluiu.,

(...) inevitável é reconhecer que a eficácia da sentença, no caso, haverá de atingir pessoas domiciliadas fora de jurisdição do órgão julgador, o que não poderá causar espécie, se o Poder. Judiciário entra nós, é nacional e não local. Essa propriedade, obviamente, não seria exclusiva da ação civil pública, revestindo, ao revés, outros remédios processuais, como o mandado de segurança coletivo, que pode reunir interessados domiciliados em unidades diversas da federação e também fundar-se em alegação de Inconstitucionalidade de ato normativo, sem que essa última circunstância possa inibir o seu processamento e julgamento em Juízo* de primeiro grau que, entre nós, também exerce controle constitucional das leis.

No caso em apreço, a dano resultante da negativa do INSS em considerar como beneficiários do regime geral de previdência social os companheiros homossexuais tem, por óbvio, amplitude nacional, de modo que o ferimento ao direito somente poderá ser evitado se a decisão tiver a abrangência pretendida pelo parquet.

Frise-se, por fim, que pensar de modo diverso equivale a contrariar a própria teleologia das ações coletivas, de garantir o acesso à jurisdição a um sem-número de pessoas que se encontram à margem da tutela jurisdicional bem como de evitar a sobrecarga do Poder Judiciário com milhares de ações versando sobre matéria idêntica.

1.4. Da declaração de Inconstitucionalidade em Ação Civil Pública

Insurgiu-se o INSS contra a pretendida declaração incidental de inconstitucionalidade, aduzindo que a matéria não poderia ser objeto de ação civil pública, sob pena de usurpar-se a competência do Supremo Tribunal Federal para as declarações erga omnes de inconstitucionalidade.

Seu argumento não procede. Isso porque, sabidamente, nosso sistema de controle de constitucionalidade, misto entre o americano e o europeu, admite tanto a forma concentrada, efetivada somente pelo STF, quando a difusa, exercida por todo o Poder Judiciário.

Efetivamente, a declaração abstrata de Inconstitucionalidade, compete unicamente ao STF, Todavia, a circunstância não afasta a possibilidade de que juizes de primeiro grau, como fundamento de decidir, reconheçam violações a normas constitucionais, em especial porque, mediante o manejo do sistema recursal, possibilita-se a manifestação final sobre o tema ao STF.

No sentido da, tese ora defendida, manifestaram-se Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery:

"ACP e ADIn. 0 objeto da ACP é a defesa de um dos direitos tutelados pela CF, pela CDC e pela LACP. A ACP pode ter como fundamento a Inconstitucionalidade de lei ou ato normativa. O objeto da ADIn é a declaração, em abstrato, do inconstitucionalidade de lei/ ou ato normativo, com a conseqüente retirada da lei declarada inconstitucional do ordenamento jurídico por intermédio da eficácia erga omnes da coisa Julgada. Assim, o pedido na ACP é a proteção do bem da vida tutelado pela CF, CDC ou LACP, que pode ter como causa de pedir a inconstitucionalidade de lei, enquanto o pedido na ADIn será a própria declaração da Inconstitucionalidade da lei. São inconfundíveis os objetos da ACP e da ADIn."

De fato, objeto da ação sob exame não é a declaração de Inconstitucionalidade abstrata de dispositivo legal, mas a garantia de manutenção de um direito de ordem constitucional, cuja defesa, à evidência, pode ser manejada em ações coletivas, salientando-se que a Magna Carta atribuiu ao Ministério Público a função institucional de "zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública nos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessária a sua garantia." (art. 129, II)

2. Do pedido de medida liminar

Em que pese a previsão da Lei 7.347/85 no sentido de permitir ações civis públicas de cunho cautelar, em verdade a concessão de medidas liminares em sede de ações civis públicas não cautelares é amplamente admitida, tendo natureza evidentemente antecipatória do provimento pretendido. Em sendo assim, deve submeter-se à disciplina genérica do tema, trazida pelo art. 273 do Código de Processo Civil, somente sendo possível ante a presença concomitante dos requisitos de prova inequívoca de verossimilhança da alegação e fundado receio de dano Irreparável ou de difícil reparação. Passo a analisá-los:

2.1. Da verossimilhança das alegações

0 direito invocado pelo Ministério Público afigura-se-me plausível.

Efetivamente, a negativa do Instituto Nacional do Seguro Social em reconhecer a companheiros homossexuais direitos previdenciários, sob o argumento de que "não é devida a concessão destes benefícios nos casos de relação homossexual, face o contido no parágrafo 3º do Artigo 16 do Lei 8.213/91 e no Artigo 226, parágrafo 3º da Constituição Federal (...)", é violadora de diversos princípios e garantias constitucionais,

Não ignoro que o § 3º do art. 16 da Lei 8.213/91, ao disciplinar a condição dos dependentes de segurados da Previdência Social, somente considerou como companheiro ou companheira "a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal". Considero, porém, que a limitação não encontra suporte constitucional.

Já o preâmbulo da Carta Constitucional de 1988 deixa claro o propósito do diploma no sentido de instituir um "Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)"(sem grifo no original). Após, aponta dentre os fundamentos da República Federativa do Brasil o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), determinando constituir um de seus objetivos fundamentais a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, de raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Por fim, em seu art. 5º, inaugurando o título "Dos direitos e garantias fundamentais", dispõe que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, (...)"

Por outro lado, a previdência social encontra-se arrolada, no art. 69 da Constituição Federal, como direito social, sem qualquer cláusula restritiva. Garantias mais explícitas encontram-se no art. 201, IV e V, que dispõem:

"Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem a equilíbrio financeiro o atuariaI, e atenderá, nos termos da lei, a:

(...)

IVsalário-família o auxílio-reclusão paro os dependentes dos segurados de baixa renda;

V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º(...)"

É evidente, portanto, que a legislação infraconstitucional, ao proibir aos companheiros de mesmo sexo o direito aos benefícios devidos aos dependentes dos segurados, desrespeitou o princípio da dignidade da pessoa humana. 0 estabelecimento de rótulos - no caso, a orientação sexual - que, além de discriminarem, afastam da proteção estatal pessoas que deveriam, por imperativo constitucional, encontrar-se por ela abrangidas, equivale a dispensar tratamento Indigno a um ser humano. De fato, a intimidade e a vida privada dos cidadãos não podem ser objeto de controle ou avaliação pelo Estado, tampouco constituírem fator determinante para o reconhecimento ou não de direitos. A questão foi bem abordada pelo Juiz Roger Raupp Rios:

Independentemente do orientação sexual de um ser humano, é mister invocar o respeito devido à sua individualidade, em virtude da citada cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º inc. III). Esta (a dignidade de pessoa humana), aliás, é elemento central na sociabilidade que caracteriza o conceito de Estado Democrático de Direito, que promete aos indivíduos muita mais que abstenção de invasões Ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades."

Verifico, ainda, violação do princípio da igualdade, pois há tratamento diferenciado em situações equiparáveis, que são a união entre pessoas de sexo diverso e a união entre pessoas do mesmo sexo, ambas desprovidas do vínculo jurídico do casamento civil, mas esteadas fundamentalmente em relação de afeto, companheirismo, e mútua dependência. Enquanto aos integrantes da primeira garante-se amplo acesso ao Regime Geral de Previdência Social, considerando a legislação infraconstitucional que constituem dependentes de primeiro grau, aos integrantes da segunda veda-se a mesma benesse.

Sabe-se que o princípio da igualdade material exige, para sua perfeição, tratamento desigual em situações dispares. Todavia, isso somente pode ocorrer fundado em critérios de razoabilidade, e não arbitrariamente, como ocorreu no citado artigo da Lei 8.213/91. Realmente, a orientação sexual do indivíduo - seja voltada para o hetero, homo ou bissexualismo - não lhe confere status excepcional, que enseje tratamento diferenciado daquele dispensado à generalidade dos cidadãos.

Deve ficar claro que o princípio da igualdade não se dirige somente aos aplicadores da lei, mas também, e talvez principalmente, ao legislador. Como bem expôs Eric Heinze, a igualdade não é um conceito singular, mas um conjunto de conceitos, incluindo igualdade na lei, igualdade depois da lei e igual proteção da lei. [6]Ora, se o fundamento de validade de todo o sistema jurídico é a Constituição, e esta garantiu expressamente a isonomia, restou afastada qualquer possibilidade de limitação que não se justifique em seus próprios preceitos, veiculada através de norma infraconstitucional.

Aliás, conseqüência da igualdade é a vedação de eleição de critérios discriminatórios - desprovidos de qualquer razoabilidade - para afastar certo grupo de pessoas do gozo de direitos, que também restou desrespeitada. Efetivamente, considero a discriminação em virtude de orientação sexual como uma das espécies de discriminação em razão do sexo, expressamente proibida. Ainda que assim não fosse, resta a cláusula geral, que afasta quaisquer outras formas de discriminação.

Ademais, não se pode olvidar da força normativa dos direitos e garantias decorrentes de tratados internacionais de que o Brasil participe (§ 2º do art. 5º da Constituição Federal). A esse respeito, merecem especial atenção a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Da Declaração Universal dos Direitos do Homem, destaco os seguintes dispositivos:

"Art. 1º Todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidades e em direitos. Datados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Art. 2º. Todos os seres humanos podem Invocar os direitos o liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.

Art. 7º, Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, tem direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Art. 25. Toda a pessoa tem direito a um nível de vido suficiente para lhe assegurar e à suar família a saúde e a bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência média e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes de sua vontade"(sem grifo no original).

No mesmo sentido a Convenção Americana de Direitos Humanos:

"Art. 5 (1). Toda pessoa tem direito a que se respeito sua integridade

física, psíquica e moral.

Art. 7 (1) Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.

Art. 11 (1) Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra o ao reconhecimento de sua dignidade.

Art. 11 (2) Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ataques ilegais a sua honra ou reputação.

Art. 11 (3) Toda pessoa tem direita à proteção do lei contra essas Ingerências ou esses ataques.

Art. 24.Todas as pessoas são iguais ante a lei. Em conseqüência, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei," (sem grifo no original).

Vê-se que tais diplomas expressam particular repúdio por qualquer ato discriminatório, a indicar a fraternidade como elemento norteador das relações humanas, tenham elas natureza política, econômica ou social. Evidenciam, ainda, que alguns fatores são inaceitáveis como fundamento para distinções e classificações humanas, corno raça, religião e sexo.

No que tange especificamente aos direitos previdenciários postulados -pensão por morte e auxílio-reclusão -, deve ficar claro que têm origem diretamente no texto constitucional, que os alcança a todas as pessoas.

Não se verifica nenhum óbice em reconhecer-se, nos relacionamentos estáveis entre homossexuais, relação de dependência para fins previdenciários. Tanto é assim que, ao aludir ao direito de pensão por morte, o art. 201, V, da Constituição utiliza o termo "companheiro", não especificando a exigência de que se constitua união estável. Por outro lado, o art. 226, § 3º, ao reconhecer corno união estável somente aquela estabelecida entre homem e mulher, não se valeu do termo "companheiro". Logo, a contrario sensu, são conceitos que não se confundem.

Ainda, no que tange ao auxílio-reclusão, garantido pela Constituição (art. 201, 111) aos dependentes de segurados de baixa renda, Igualmente é direito que não pode ser negado aos companheiros homossexuais. 0 conceito de dependência, de que se valeu a Constituição, não admite restrição infundada pela legislação ordinária.

Saliente-se, por oportuno, que o princípio da obrigatoriedade da contribuição previdenciária, que expressa a relação tributária de custeio existente entre o segurado e o INSS, justifica que aquele que seja dependente do primeiro também possa ser beneficiário do regime, como indica o próprio texto constitucional. A dependência presumida, como nos casamentos e uniões estáveis, nos casos de relacionamentos homossexuais, estabelece-se pela ligação de amor, afeto e companheirismo, que não pode ser desconsiderada.

A partir do momento em que o trabalhador contribuiu para a construção de um sistema de seguridade, em respeito ao princípio da solidariedade social, é mais que legítima sue expectativa de que, diante de adversidades, seja ser garantida a manutenção de seu padrão de vida e das pessoas que com ele convivem.

Não há necessária correlação, como quer o INSS, entre a dependência para fins previdenciários e relações disciplinadas pelo direito de família. Mesmo que se pense de modo diverso, ainda assim as relações homossexuais estariam abrangidas, porquanto a família constitui-se por laços de afetividade, e não por imperativos de ordem sexual. As pessoas ligam-se por afinidades e necessidades mútuas, constituindo conjuntos microssociais que - independentemente do sexo de seus integrantes -, não podem ser ignorados pelo direito. Nesse sentido já se manifestou o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao considerar competente para a dissolução de sociedade conjugal entre homossexuais as varas especializadas em direito de família, de cujo julgamento destaco excerto do voto do Desembargador Breno Moreira Mussi:

"Creio que na entrado do milênio, não cabe mais fazer de conta que a homossexualidade não existe, nem deixar constar da Constituição uma quota vazia, de cunho meramente formal, dizendo que é proibida a discriminação por sexo, mas, ao mesmo tempo, acatar que se continue discriminando, em tal matéria."

Gize-se a existência de precedente do Egrégio Tribunal Federal da 4ª Região, recentemente confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, que, julgando ação individual bastante semelhante, entendeu possível a inclusão de companheira homossexual como dependente em plano de saúde:

"Administrativo, Constitucional, Civil a Processual Civil. Justiça Federal. Justiça do Trabalho. Competência. Ausência de Intervenção do Ministério Público. Nulidade. Inocorrência. Aplicação do art. 273 do CPC no sentença. Mera irregularidade. União Estável entre pessoas do mesmo sexo. Reconhecimento. Impossibilidade. Vedação do § 3º do art. 226 da Constituição Federal. Inclusão como dependente em plano de saúde. Viabilidade, Princípios constitucionais da liberdade, da igualdade o da dignidade da pessoa humana. Art. 273 do CPC. Efetividade à decisão judicial. Caução. Dispensa.

(...)

6. A recusa das rés em incluir o segundo autor como dependente do primeira, no plano de saúde PAMS e na Funcef, foi motivada pela orientação sexual dos demandantes, atitude que viola o princípio constitucional da Igualdade que proíbe discriminação sexual. Inaceitável o argumento de que haveria tratamento Igualitário para todos os homossexuais (femininos e masculinos), pois isso apenas reforça o caráter discriminatório da recusa. A discriminação não pode ser Justificada apontando-se outra discriminação.

7. Injustificável a recusa das rés, ainda, se for considerado que os contratos de seguro-saúde desempenham um Importante papel na área econômica e social, permitindo o acesso dos Indivíduos a vários benefícios. Portanto, nessa área os contratos devem merecer interpretação que resguarde os direitos constitucionalmente assegurados,, sob pena de restar inviabilizada a sua função social e econômica.

8. No caso em análise, estão preenchidos os requisitos exigidos pela lei para a percepção do beneficio pretendido: vida em comum, laços afetivos, divisão de despesas. Ademais, não há que alegar a ausência de previsão legislativa, pois antes mesmo de serem regulamentadas as relações concubinárias, já foram concedidos alguns direitos à companheira, das relações heterossexuais. Trata-se da evolução do Direito, que, passa a passo, valorizou a afetividade humana abrandando os preconceitos e as formalidades sociais e legais.

Negar a uma pessoa o direito de escolher um parceiro, com ele estabelecendo uma comunidade afetiva e pretendendo vê-to protegido de quaisquer eventualidades, simplesmente por terem ambos o mesmo sexo, equivale a negar sua própria condição humana. Ao Estado que se diz democrático não assiste o poder de exigir de seus cidadãos que, para que lhes sejam assegurados direitos sociais, devam adotar orientação sexual pré-determinada. Como lembrado por John Rawis, "(.. )numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas Invioláveis; os direitos assegurados pois justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de Interesses sociais. (.. ) as instituições são justas quando não se fazem distinções arbitrárias entre as pessoas na atribuição de direitos e deveres básicos e quando as regras determinam um equilíbrio adequado entre reivindicações concorrentes das vantagens da vida social. " [7]

Considero, portanto, em uma primeira análise, que as relações de companheirismo, que determinam a condição de dependente de primeira classe do segurado, para os quais a dependência econômica é presumida, podem ser decorrentes de relacionamentos hetero ou homossexuais, A comprovação do vínculo, a seu turno, deve ocorrer nos mesmos moldes utilizados para a união estável, obedecendo-se o disposto no art. 22 do Decreto n. 3.048/99.

2.2. Do perigo de dano irreparável ou de difícil reparação

Com relação ao perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, sua exegese deve ser feita não só à luz de situações de efetivo dano, mas sim aliado ao conceito de urgência na prestação jurisdicional.

Em conseqüência, encontram-se abarcadas pelo conceito de urgência as situações fáticas de risco ou embaraço à efetividade da própria jurisdição, já que casos existem em que a providência Jurisdicional é urgente não para evitar dano ao direito, como já foi dito, mas sim para disciplinar sua fruição, precipuamente nas relações de trato contínuo, como é o caso das prestações previdenciárias.

Além disso, dado o caráter nitidamente alimentar das prestações postuladas, é imperativo reconhecer que pessoas existem que, não sendo beneficiadas de imediato, ficarão desprovidas de verbas necessárias à sua subsistência. 0 perigo de dano a que se encontram sujeitas, se não deferida a liminar, é evidentemente irreparável.

Por fim, considero que a protelação das decisões judiciais quando, de imediato, verificam-se presentes os requisitos para a pronta satisfação da pretensão, revela-se como medida flagrantemente violadora do direito a uma prestação jurisdicional célere. Na senda do que já dizia Rui Barbosa, "a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta."

3. Da decisão

Com as considerações supra, DEFIRO MEDIDA LIMINAR de abrangência nacional, para o fim de determinar ao Instituto Nacional do Seguro Social que:

a)passe a considerar o companheiro ou companheira homossexual como dependente preferencial (art. 16, I, da Lei 8.213/91);

b)possibilite que a inscrição de companheiro ou companheira homossexual, como dependente, seja feita diretamente nas dependências da Autarquia, inclusive nos casos de segurado empregado ou trabalhador avulso;

c)passe a processar e a deferir os pedidos de pensão por morte e auxílio-reclusão realizados por companheiras do mesmo sexo, desde que cumpridos pelos requerentes, no que couber, requisitos exigidos dos companheiros heterossexuais (arts. 74 a 80 da Lei 8.213/91 e art. 22 do Decreto n. 3.048199).

Fixo o prazo de 10 dias para Implementação das medidas necessárias ao integral cumprimento desta decisão, sob pena de multa diária de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), com fundamento no art. 461, § 4º, do Código de Processo Civil. Entendo inviável determinação do modo corno procederá o INSS para efetivar a medida, consoante postulado pelo parquet (item 14, alínea "d"), porquanto configuraria indevida ingerência na estrutura administrativa da entidade.

Intime-se, com urgência, o Instituto Nacional do Seguro Social do inteiro teor desta decisão, por mandado a ser cumprido pelo oficial de justiça de plantão nesta Circunscrição.

Intime-se, igualmente, o Ministério Pública Federal.

Porto Alegre, 17 de abril de 2000.

Simone Barbisan Fortes

Juíza Federal Substituta da 3º Vara Previdenciária

Anexo 3 – Instrução Normativa do INSS resultante da decisão judicial

INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL

DIRETORIA COLEGIADA

INSTRUÇÃO NORMATIVA/INSS/DC nº 50, de 08 de maio de 2001.

ASSUNTO:

Estabelece, por força de decisão judicial, procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual.

FUNDAMENTAÇÃO LEGAL:

Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0

O DIRETOR-PRESIDENTE do INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS, no uso da competência que lhe foi conferida pelo artigo 86, inciso IV do Regimento Interno do INSS, aprovado pela Portaria nº 6.247, de 28 de dezembro de 1999, e

CONSIDERANDO a determinação judicial proferida em Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, da Terceira Vara Federal Previdenciária de Porto Alegre, da Seção Judiciária do Rio Grande do Sul;

CONSIDERANDO a necessidade de estabelecer rotinas para uniformizar procedimentos a serem adotados pela linha de benefícios,

Ad referendum, resolve:

Art. 1º- Disciplinar procedimentos a serem adotados para a concessão de pensão por morte e auxílio-reclusão a serem pagos ao companheiro ou companheira homossexual.

Art. 2º - A pensão por morte e o auxílio-reclusão requeridos por companheiro ou companheira homossexual, reger-se-ão pelas rotinas disciplinadas no Capítulo XII da IN INSS/DC nº 20, de 18.05.2000, republicada em 28.07.2000, com as alterações introduzidas pela IN INSS/DC nº 46, de 13.03.2001.

Art. 3º - Para comprovação da união estável e dependência econômica devem ser apresentados, no mínimo, três dos seguintes documentos:

I – declaração de Imposto de Renda do segurado, em que conste o interessado como seu dependente;

II – disposições testamentárias;

III – declaração especial feita perante tabelião (escritura pública declaratória de dependência econômica);

IV – prova de mesmo domicílio;

V – prova de encargos domésticos evidentes e existência de sociedade ou comunhão nos atos da vida civil;

VI – procuração ou fiança reciprocamente outorgada;

VII – conta bancária conjunta;

VIII – registro em associação de classe, onde conste o interessado como dependente do segurado;

IX – anotação constante de ficha ou livro de registro de empregados;

X – apólice de seguro da qual conste o segurado como instituidor do seguro e a pessoa interessada como sua beneficiária;

XI – ficha de tratamento em instituição de assistência médica da qual conste o segurado como responsável;

XII – escritura de compra e venda de imóvel pelo segurado em nome do dependente;

XIII – quaisquer outros documentos que possam levar à convicção do fato a comprovar.

Art. 4º - Os benefícios de pensão por morte e auxílio-reclusão ao companheiro/a homossexual devem ser concedidos independentemente da data de ocorrência do óbito ou encarceramento do segurado (mesmo anteriores à data da liminar), observando-se o disposto no art. 60 da IN/INSS/DC nº 20, de 18.05.2000, republicada em 28.07.2000, com as alterações introduzidas pela IN INSS/DC nº 46, de 13.03.2001.

Art. 5º - A inscrição de companheiro ou companheira homossexual, como dependente deverá ser efetuada no Instituto Nacional do Seguro Social, inclusive nos casos de segurado empregado ou trabalhador avulso.

Art. 6º - A Diretoria de Benefícios e a DATAPREV estabelecerão mecanismos de controle para os procedimentos ora estabelecidos nesta Instrução Normativa.

Art. 7º - Esta Instrução Normativa entra em vigor na data de sua publicação, revogando a Instrução Normativa, de 07 de junho de 2000.

Francisco Fernando Fontana

Diretor-Presidente


Notas

1. Reitor da Universidade do Rio de Janeiro – convidado a expor em um programa de entrevistas (jul/2002), os motivos que o fizeram determinar a derrubada de uma porta de aço que separava a reitoria do resto daquela instituição.

2. Roberto Luiz Warken – Sociólogo pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista em Educação Sexual (UDESC), Mestrando em Educação e Cultura (UDESC), membro de: NES (Núcleo de Estudos da Sexualidade) DAPE/FAED/UDESC; ABRADES (Associação Brasileira de Educação Sexual); Comissão de Direitos Humanos da OAB/SC e da Corte Catarinense de Mediação e Arbitragem.

3. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - Apelação Cível nº 70001388982 de Porto Alegre - Sétima Câmara Cível - Relator: Des. José Carlos Teixeira Georgis. Presidente: Desª. Maria Berenice Dias. julgado em 14 de março de 2.001.

4. Tribunal Regional Federal Da 4ª Região (Paraná/Santa Catarina/Rio Grande Do Sul) - Apelação Cível Nº 2000.04.01.073643-8/RS - Relator: Juiz Nylson Paim De Abreu - Órgão: Sexta Turma - Decisão: Unânime - Data: 21 De Novembro De 2000 - Publicação: DJ2 Nº 7-E, 10.01.2001, P.373

5. Tribunal de Justiça do RS - Agravo De Instrumento Nº 599075496 - Oitava Câmara Cível - Relator: Des. Breno Moreira Mussi - Julgado em 17/06/99 - Comarca De Origem: Porto Alegre - Assunto: 1. Sociedade De Fato. Dissolução. Casal Do Mesmo Sexo. Competência. Vara de Família e Sucessões. União Estável. 2. Homossexualismo. União Homossexual.

6. Ministro da Fazenda do Governo Fernando Henrique Cardoso

7. Maria Berenice Dias - Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul RS, Vice-Presidente Nacional do IBDFam - Instituto Brasileiro de Direito de Família – www.berenicedias.com.br

8. WEREBE, Maria J.G. Sexualidade, política e educação. Campinas. Autores Associados, 1998, p.3.

9. LEIVAS, Paulo G.C. e BECKHAUSEN, Marcelo V. Ação Civil Pública da Procuradoria da República contra o Instituto Nacional do Seguro Social -INSS de Porto Alegre - RS, em 10/04/2000

10. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I – a vontade de saber. Lisboa: Antropos, 1994

11. FOUCAULT, 1994, p.30

12. FOUCAULT, 1994, p.87

13. FOUCAULT, 1994, p.93

14. SAWAIA, Bader (org.). As artimanhas da exclusão – análise psicossocial e ética da desigualdade em social. Petrópolis - RJ: Vozes, 2001. 156 p. – p. 23

15. DOUTEL, Felipe. Como construir uma ética GLTS. Internet, 2002. http://www.paradasp.org.br/sexoepolitica/default.asp. 25/03/2002

16. in A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 1998, Saraiva, p. 4.

17. Tribunal Regional Federal da 4a Região, Ap. Cível nº 96.04.38388-4, Relator Juiz Carlos Sobrinho, julgamento em 23-3-1999, in Revista do TRF4a Região n. 34

18. Recurso Especial n. 95347/SE, STJ, turma, Relator Ministro Edson Vidigal, julgamento em 24-11-1998.

19. In A Abrangência Nacional de Decisão Judicial em Ações Coletivas: o caso da Lei 9.494/97, RT 755, setembro de 1998, p. 113.

20. In Código de Processo Civil Comentado, 4ª Edição, RT, 1999, p. 1504.

21. In Revista do CEJ, Brasília, n. 6, set/dez.1998, p.34

22. In Sexual Orientatio: A Human Right. Martinus Nijhoff Publishers, 1995, p.215

23. Agravo de Instrumento n. 599075496, 8º Câmara Cível, Relator Des. Breno Moreira Mussi, j. em 17-6-1999

24. Ap. Cível n. 94.04.55333-0/RS, 3ª Turma, Relatora Juíza Marga Barth Tessler, in Revista do Tribunal Regional Federal Quarta Região n. 32, pp. 72 e segs.

25. In Uma teoria da justiá. Jonh Rawis. Martins Fontes, São Paulo, 1997, p. 4 e 6

Sobre os autores
Carlos Eduardo Warken

advogado e professor em Santa Catarina

Roberto Luiz Warken

sociólogo, especialista em Educação Sexual, mestrando em Educação e Cultura

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WARKEN, Carlos Eduardo; WARKEN, Roberto Luiz. A instituição da sociedade convivencial entre pessoas de mesmo sexo.: A discriminação legalizada e a oportunidade em afastá-la. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3578. Acesso em: 24 nov. 2024.

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