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Agências regulatórias e o seu poder regulamentar em face do princípio da legalidade

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Agenda 01/01/2003 às 00:00

Sumário;1.0 Introdução. 2.0 Do Novo Papel do Estado. 3.0 As Agências Reguladoras, Suas Caracterísitcas e a Questão dos Limites do Seu Poder Regulamentar em Face do Princípio da Legalidade Administrativa. 4.0 Controle Judicial do Poder Regulamentar. 5.0. Conclusão. 6.0 Referências Bibliográficas


1.0 Introdução

            O presente texto destina-se a analisar o problema do poder regulamentar das agências reguladoras em face do princípio da legalidade, insculpido no art. 5o, II, da Constituição Brasileira.

            De fato, a criação, por lei, de entes reguladores dotados da atribuição de elaborar regras de observância obrigatória para os agentes regulados conduz o operador do direito a dúvidas atrozes sobre eventual violação à garantia de que ninguém será obrigado a fazer qualquer coisa a não ser em virtude de lei.

            Para enfrentar a questão, faz-se, inicialmente, uma breve reflexão sobre o novo papel do Estado na regulação da economia, relevante para entender-se o cenário em que proliferam os chamados entes reguladores. Posteriormente, abordam-se as características fundamentais do modelo brasileiro de agência reguladora, em especial sua independência, caráter especializado e poder normativo.

            Finalmente, enfrenta-se o núcleo duro do trabalho, no qual se expõem as novas teorias que procuram justificar a atribuição de poderes normativos às agências, bem como as objeções mais comuns que se fazem a essas novas idéias.

            Na pesquisa, as fontes utilizadas limitaram-se a material bibliográfico e coletado na internet.

            Não se tem, obviamente, a pretensão de esgotar o tema sob análise, mas apenas de estudar, com precisão, as novas propostas de leitura do princípio da legalidade e da atividade regulatória em face das limitações constitucionais.

            Adota-se, nesse trabalho, preponderantemente, o método dogmático.


2.0 Do Novo Papel do Estado.

            Especialmente após a grande crise do capitalismo que teve lugar no ano de 1929, prosperou, no mundo ocidental, a crença no Estado como ator econômico idôneo para organizar a economia (1). A insuficiência da teoria liberal clássica fundada exclusivamente no absenteísmo estatal parecera empiricamente demonstrada diante da extensão da catástrofe econômica marcada pelo crack da bolsa nova-iorquina e dos impactos depressivos que todas as economias capitalistas sofreram em sua decorrência.

            Assumindo uma nova postura, cuja base teórica foi construída por Keynes, o Estado, outrora neutro em relação à atividade econômica, enveredou diretamente pelo terreno antes reservado à iniciativa privada e passou a criar pessoas jurídicas administrativas para atuar, ora monopolística, ora, concorrencialmente, no mercado. Além disso, desenvolveram-se antigos e novos instrumentos normativos oficiais de indução e inibição da atividade econômica tais como a tributação, a fiscalização e o fomento, por meio dos quais o Estado passou a condicionar indiretamente a atuação dos particulares no mercado e, destarte, a favorecer ou limitar a proliferação das atividades econômicas na razão direta do interesse coletivo por elas representado.

            Em uma ou outra modalidade, direta ou indireta, a expressão intervenção denota a ingerência excepcional (2) do Poder Público em uma atividade que, originariamente, não lhe é própria. Isso porque próprio do Estado seria apenas a prestação do serviço público. Neste trabalho, portanto, segue-se a classificação Eros Roberto Grau (3), segundo a qual só é lícito falar em intervenção no âmbito da atividade econômica em sentido estrito. O mesmo autor classifica, ainda, as modalidades de intervenção, tendo em vista a absorção ou não da atividade econômica pelo Estado. Confira-se:

            "Afirmada a adequação do uso do vocábulo intervenção, para referir atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito (domínio econômico), reafirmo a classificação de que tenho me valido, que distingue três modalidades de intervenção: intervenção por absorção ou participação (a), intervenção por direção (b) e intervenção por indução (c). No primeiro caso, o Estado intervém no domínio econômico, isto é, no campo da atividade econômica em sentido estrito. (...). No segundo e terceiro casos, o Estado intervirá sobre o domínio econômico, isto, sobre o campo da atividade econômica em sentido estrito. Desenvolve ação, então, como regulador dessa atividade." (4)

            O primeiro caso é o que se denominou de intervenção direta, com a presença física do Estado agente econômico. Os segundo e terceiro, de intervenção indireta, por meio de normas.

            O movimento pendular da história, no entanto, cuidou de abalar profundamente a convicção de que todos os problemas econômicos seriam solucionados pela ação estatal. Especialmente a partir da década de 60, teóricos como Friedrich von Hayek começaram a questionar e a avaliar os custos da intervenção direta estatal e concluíram que estes foram mais drásticos do que os que teriam sido suportados acaso se tivesse deixado que o próprio mercado cuidasse do seu revigoramento, por causa (5) do crescimento excessivo das despesas estatais para a manutenção dos órgãos interventores e do esgotamento da capacidade estatal de investir em tecnologias novas.

            Essa revitalização do espírito liberal sistematizada em uma doutrina de princípios econômicos foi logo batizada de escola neoliberal. Esta apregoa, basicamente, a substituição do Estado interventor pelo Estado regulador, ou seja, a retração da atividade econômica estatal em prol do desenvolvimento das forças econômicas privadas, agora não mais livres, mas reguladas.

            De um lado, portanto, renasceu a convicção de que o mercado é, por excelência, o centro decisório (6) que responderá às questões de que, como e quem deve produzir, e, de outro, manteve-se viva a lembrança da perda da inocência quanto aos desdobramentos do absenteísmo. Em breve síntese, de agente econômico, o Estado transformou-se em indutor, fiscalizador e fomentador das atividades econômicas, sempre em busca da maior competitividade possível entre os particulares, bem como, a um só tempo, da defesa do consumidor.

            Como era de se esperar, o Estado Brasileiro não passou incólume diante de tais oscilações estruturais da economia global e, em cada período, acompanhou ora uma tendência de maximização, ora de restrição da sua atuação no e sobre o domínio econômico (7).

            A um longo período de intervenção direta, iniciado com a Era Vargas e cujo auge se deu sob os auspícios do regime militar instituído em 1964, se sucedeu, na trilha neoliberal, um de redução do seu papel, representado pelo Programa Federal de Desestatização, cuja implementação começou ainda antes da Constituição de 1988, por meio dos Decretos n.ºs 91.991, de 28 de novembro de 1985, e o Decreto n.º 95.886, de 29 de março de 1988.

            Tal tendência desestatizante foi radicalizada em 1990, com o advento da Medida Provisória n.º 155, de 15 de março, instituidora do Programa Nacional de Desestatização, não mais limitado à órbita federal, cuja idéia principal era precisamente a reordenação da posição estratégica do Estado na economia, com transferência aos particulares de atividades reputadas indevidamente exercidas pelo Estado (8). Tal diploma foi convertido na Lei n.º 8.031/90, que sofreu derrogações pela Lei n.º 9.491/97.

            Neste novo cenário em que predomina, hodiernamente, a intervenção indireta, o Estado brasileiro busca inspiração no modelo norte-americano e vem, paralelamente ao processo de privatização e desestatização, criando, por lei, autarquias especiais independentes hierárquica e financeiramente, as denominadas agências, às quais incumbe o papel de disciplinar, normativamente, quer a atividade econômica propriamente dita, em setores estratégicos definidos pela Constituição e pela lei, quer o serviço público, quando prestado em regime de concessão, permissão ou autorização.

            Interessante notar que intervenção indireta propriamente dita só haverá no âmbito da atividade econômica, repise-se. Quando a agência regular a prestação de serviços públicos, por particulares ou pelo Estado, por meio de sociedades de economia ou empresas públicas, haverá apenas regulação do serviço público, e não intervenção indireta na acepção estrita do termo.

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3.0 As Agências Reguladoras, Suas Características e a Questão dos Limites do Seu Poder Regulamentar

            As agências regulatórias independentes consistem em um dentre os vários mecanismos de que pode dispor o Estado – como, v.g., a tributação sobre as operações das atividades da balança comercial e financeira - no desempenho das suas atividades regulatórias. (9)

            Até o presente momento, foram criadas pela União a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL –, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL –, a Agência Nacional do Petróleo – ANP, a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT –, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS – e a Agência Nacional de Águas – ANA, que, em cada ordenamento setorial, organizam a forma de inserção e atuação dos agentes regulados. Há, ainda, a intenção de criar-se uma agência nacional de mineração.

            Tais agências reguladoras, embora disciplinem setores distintos da atividade econômica e do serviço público, possuem alguns apanágios comuns, que se podem dizer conceituais no modelo delineado pelo legislador brasileiro. Todas elas, de fato, caracterizam-se (10) pela independência, pela especialização técnica, e pela atribuição regulamentadora que a lei de instituição lhes confere no âmbito do seu ordenamento setorial.

            Cuidemos de cada uma dessas características, a fim de elucidar as principais diferenças em relação ao regime jurídico geral das autarquias.

            Por independência se deve entender que a agência tem autonomia decisória e é administrada sem que haja nenhuma espécie de sujeição hierárquica ou política de seus dirigentes ou suas decisões ao Chefe do Poder Executivo. De fato, este, em razão de tal característica, sofre limitações aos seus poderes tanto na nomeação – que tem a natureza de ato administrativo composto, pois o dirigente apontado pelo Presidente da República deve ser aprovado pelo Senado antes da posse –, bem como na exoneração, que não poderá ser ad nutum (imotivada) após os 4 primeiros meses do mandato (11). Disso decorre, pois, a estabilidade dos mandatos dos dirigentes.

            Tais tópicos relativos à independência suscitaram dúvidas quanto a sua constitucionalidade que foram dirimidas pelo Supremo Tribunal Federal, por maioria, no julgamento da medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade n.º 1949-0 A primeira consistia no procedimento de nomeação vinculado à sabatina, e a segunda tinha como fundamento a premissa de que, se o dirigente não se submete a concurso público, então não teria mandato estável. Alguns comentários sobre essa decisão são oportunos.

            Em seu voto, o Ministro Nelson Jobim, assentou que, de acordo com o art. 52, III, f, da Carta, outros titulares de cargos que a lei designasse poderiam ser submetidos à prévia chancela senatorial (12). Também a questão da limitação da exoneração foi ressuscitada, afastando-se a aplicação da Súmula n.º 25 do Supremo, que dispõe não impedir a nomeação a termo a livre demissão, pelo Presidente da República, de ocupante de cargo de dirigente de autarquia.

            Tal súmula, na verdade, não assumia contornos absolutos já ao tempo da decisão citada, pois a Súmula n.º 47 excepcionava a regra determinando que reitor de universidade não é livremente demissível pelo Presidente da República durante o período de sua investidura. Particularmente no tange a essa questão, referido magistrado recuperou voto vencido histórico do legendário Ministro Vitor Nunes Leal no qual este, magistralmente, assentou que: 1) a competência administrativa de prover cargos públicos admite configurações de investiduras outras, desde que expressamente definidas na lei criadora; e 2) no sistema presidencial, pode ser mesmo imprescindível para a implementação de determinada política legislativa que o mandato se livre da sua precariedade, e salutar, pois, rechaçar injunções da política partidária. (13)

            Ainda no tocante à independência, deve-se aduzir que esta é meramente relativa em face do Poder Judiciário, de vez que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode refugir da apreciação do Poder Judiciário. Tal questão será abordada com mais vagar em tópico específico, no tocante ao poder normativo. Por ora, vale apenas consignar que as decisões e sanções tomadas no âmbito da aplicação das normas emanadas dos órgãos deliberativos da diretoria das agências serão sempre revisáveis quanto ao aspecto da legalidade.

            No que concerne à caraterística comum especialização técnica, vale lembrar, que, à luz da economia industrial e pós industrial, a vida em sociedade deixou de apoiar-se em valores estritamente políticos para apoiar-se em standards operacionais (14). Sobre esse tema anota Alexandre Santos de Aragão que:

            "Ainda nos casos em que aqueles (valores estritamente políticos), em princípio, devam prevalecer, não podem, via de regra, ser realizados sem o necessário arcabouço técnico." (15)

            Por este motivo, requer-se, no âmbito da regulação desenvolvida pelas agências, além da especialização específica no ramo do direito, cada vez mais uma abertura cognitiva transdisciplinar dos operadores jurídicos, sendo comuns, nos dias hodiernos, os juristas-biólogos, juristas-sanitaristas, juristas-economistas, etc., muitos dos quais com mais de uma formação acadêmica-profissional (16).

            De fato, a própria legislação, diante da complexidade da vida moderna, acaba por converter-se, paulatinamente, em assunto para peritos, de modo que a interpretação adequada só se torna possível para os iniciados nas ciências mais próximas da atividade a ser regulada.

            Contentando-se em traçar valores gerais que devem presidir à elaboração das normas regulamentares e às decisões administrativas, o legislador deixa às próprias agências, com seus técnicos, a tarefa de organizar os seus ordenamentos setoriais. Trata, assim, de atribuir-lhes poderes normativos para que a regulação seja eficaz.

            Chega-se, assim, à problemática característica do poder normativo.

            De fato, as leis instituidoras das agências conferem-lhes o poder de editar normas aplicáveis aos entes regulados. Essa atribuição suscita profundas inquietações em face do princípio da legalidade estrita a que está submetida a Administração Pública e em face do princípio da reserva legal a que se sujeitam os particulares.

            É lição velha de direito que os particulares podem fazer tudo aquilo que a lei não lhes proíbe (ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer a não ser em virtude de lei), ao passo que à Administração Pública só é lícito agir de acordo com o que a lei expressamente autoriza. A diferença, portanto, reside em que a mera inexistência de proibição não basta para amparar a licitude da conduta da Administração Pública. Como bem leciona Canotilho:

            "O princípio da legalidade da administração, sobre o qual insistiu sempre a teoria do direito público e a doutrina da separação de poderes, foi erigido, muitas vezes, em cerne essencial do Estado de Direito (...) De uma forma genérica, o princípio da supremacia da lei e o princípio da reserva de lei apontam para a vinculação jurídico constitucional do poder executivo." (17).

            Como corolário, toda a atividade regulamentar só tem validade se subordinada à lei.

            Entre nós, devido à divisão constitucional de poderes delineada pela Constituição, também não são concebíveis os chamados regulamentos autônomos, que criam obrigações à revelia da existência de lei, mas só se permitem aqueles que se destinam a sua fiel execução.

            Com efeito, tal decorre do princípio da reserva legal. Este, aplicado aos particulares, funda-se na chamada regra da liberdade e é exatamente o reverso da moeda do princípio da legalidade administrativa.

            Presume-se, pois, a licitude dos comportamentos dos indivíduos, a menos que o princípio majoritário, consubstanciado na vontade geral legal, justifique a limitação dos direitos fundamentais.

            O professor Celso Antônio Bandeira de Mello elucida bem a questão:

            "O texto Constitucional brasileiro, em seu art. 5o, II, expressamente estatui que ‘ Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.’ Note-se que o preceptivo não diz ‘decreto’, ‘regulamento’, ‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade das pessoas" (18).

            Em outras palavras, a exigência de lei para a criação de obrigações lícitas é uma expressão da função de defesa (19) dos direitos fundamentais contra eventuais arbítrios do Estado, e, em especial, da Administração Pública. A função regulamentar, pois, é escrava da legislação, e não tem sentido no vazio legislativo ou no espaço da ilicitude.

            O professor Carlos Mário da Silva Velloso analisa também o mesmo problema à luz do direito positivo constitucional brasileiro:

            "O sistema constitucional brasileiro desconhece, em verdade, a figura do regulamento autônomo, que a Constituição Francesa admite. Fomos buscar, aliás, na Constituição da França, de 1958, justamente no regulamento autônomo, inspiração para a instituição, na Constituição Brasileira de 1967, do decreto-lei. (CF, art. 55). O decreto-lei, todavia, já ficou claro, não se confunde com o decreto regulamentar. No Brasil, o regulamento é simplesmente de execução" (20)

            Pois bem, dentro dessa problemática, no que interessa ao objeto deste trabalho, cumpre investigar possíveis respostas às questões abaixo formuladas:

            1) Se só a lei pode criar obrigações, como justificar que, por meio de simples regulamentação, possam as agências reguladoras impô-las aos entes regulados?

            2) Seria possível que o legislador delegasse sua função legiferante a um órgão da Administração, sem ofensa ao Princípio da Separação de Poderes?

            3) Em que medida a possibilidade de constringir a liberdade de particulares por meio de instrumentos normativos infralegais é compatível com o Estado de Direito?

            4) O Poder regulamentar das Agências, atribuído ao seu órgão diretor, é inconstitucional em face da competência regulamentar privativa do Presidente da República, na forma do art. 84 da Constituição Federal?

            Antes de enfrentar as indagações postas, faz-se mister consignar que não existem, ainda, respostas incontendíveis a nenhuma delas. Alguns autores, contudo, vêm buscando explicações minimamente aceitáveis dentro de uma perspectiva dogmática do direito, com o propósito de manter íntegra a unidade do sistema fundada na legalidade.

            Alexandre Santos de Aragão propõe a chamada teoria da delegificação para explicar o aparente paradoxo da regulamentação autônoma contido na primeira, segunda e terceira questões.

            De fato, consoante o autor referido, não se trata propriamente de deferir ao regulamento o poder de criar normas jurídicas cogentes, mas de uma disciplina legal que promove a degradação normativa da lei anterior, permitindo que seja ela derrogada pela superveniência de regulação por parte da agência.

            O argumento por ele esboçado é bastante simples do ponto-de-vista lógico: Se a lei pode revogar a lei anterior, então, com mais razão, pode reduzir o grau hierárquico de determinada norma para o nível infralegal, possibilitando, assim, que a Administração Pública discipline a matéria "enfraquecida" via regulamento. Assim, a questão não se poria em termos de regulamentos criadores de obrigações, mas sim de leis que delegam a regulamentação ao órgão regulador. Nem haveria, propriamente, regulamento autônomo, eis que este se faria nos estritos limites da lei.

            A fonte da obrigação, portanto, seria sempre a lei, e nunca o regulamento. Tanto assim que a superveniência de lei em sentido contrário à regulamentação poria este por terra. A síntese por ele feita merece, nesse particular, transcrição literal:

            "Por este entendimento, não há qualquer inconstitucionalidade na delegificação, que não consistiria propriamente em uma transferência de poderes legislativos, mas apenas na adoção, pelo próprio legislador, de uma política legislativa pela qual transfere a uma outra sede normativa a regulação de determinada matéria. E, com efeito, se este tem poder para revogar uma lei anterior, por que não o teria para, simplesmente, rebaixar o seu grau hierárquico? " (21)

            Portanto, se a delegificação por meio da própria lei é possível, então não há obrigações criadas por decretos, a não ser mediatamente, por força de lei. Igualmente, não existe propriamente uma alienação de competência legislativa, mas sim um rebaixamento da força normativa da lei para que esta seja maleável via regulamento. A terceira questão, relativa ao Estado de Direito, ficaria, também, satisfatoriamente respondida por se tratar, em última análise, apenas de uma legalidade distinta, mas ainda assim consentânea com a primazia do instrumento legal criador da agência.

            A objeção que faltaria ser elucidada, no arcabouço teórico formulado por referido doutrinador seria a referente à competência privativa do Chefe do Executivo para dispor sobre a regulamentação. A isso, obtempera que a reserva feita pela Constituição não é absoluta:

            "Tal como o art. 84, IV, da nossa Constituição, este é o único dispositivo da Constituição Italiana a respeito da competência para expedir regulamentos. Ambos os dispositivos devem ser entendidos como fixadores da competência do Chefe do Executivo para editar regulamentos, e, de fato, tal competência sempre existirá se a lei não dispuser em contrário. Noutras palavras, tal competência é, em princípio, do Chefe do Poder Executivo, mas não é exclusiva, podendo o Legislador conferi-las a outras autoridades públicas ou a entes descentralizados." (22)

            Existem, ainda, subsídios no direito comparado que poderão servir de bússola para as cortes brasileiras no enfrentamento da questão. A Suprema Corte Americana, interpretando a Constituição dos Estados Unidos, chegou à conclusão de que a delegação de função ao Poder Executivo seria lícita, desde que limitada por padrões tais como "o interesse público" ou outros valores constitucionais como o princípio da razoabilidade. Na leitura da Corte, mais importante do que discutir se se trata de um poder legiferante é saber se, na aplicação das normas, se obedece ao princípio do devido processo legal em sentidos substancial e formal. Como bem anota Bernard (23)Schwartz, citando o caso United States x Chicago:

            "Os tribunais americanos hoje se recusam a invalidar a legislação simplesmente porque ela formalmetne delega poder legislativo às autoridades administrativas. A sua concepção a respeito do problema da delegação mudou da posição da aplicação formal de uma máxima inflexível contra delegações de poder legislativo para uma posição de determinar se a outorga legislativa de poder é de fato excessiva. E, com isso, o foco do exame judiciário se tem centralizado na adequação dos padrões contidos na legislação autorizada. Segundo a tal teoria americana, o poder legislativo pode ser conferido ao ramo executivo, desde que a outorga seja limitada por determinados padrões. ‘O Congresso não pode delegar qualquer parte de seu poder legislativo exceto sob a limitação de um padrão estabelecido. O arbítrio conferido não pode ser tão amplo que se torne impossível discernir os seus limites."

            É perceptível, contudo, que tal interpretação da Constituição Americana é antes uma conseqüência de uma construção jurisprudencial, bem ao gosto da doutrina do living document e law in action, do que uma mera exegese de mandamentos constitucionais explícitos. Até porque o texto da Carta, ponto de partida da interpretação, não poderia ser mais peremptório do que é:

            "All legislative powers have granted shall be vested in a Congress of the United States, which shal consist of a Senate and House of Representatives" (24)

            Segundo o mesmo autor, o direito inglês caminhou no mesmo sentido, dando relevo a fatores absolutamente pragmáticos, como a constatação de que, não desejasse o Parlamento delegar o poder de legislar, não poderia ele "aprovar a quantidade e a qualidade de leis que a opinião pública moderna exige." (25)

            Não faltam, ainda, ilações de natureza metajurídica que se fiam sobretudo no caráter de especialização para justificar a autonomia normativa conferida às agências como própria, essencial ao direito regulatório. Cite-se, por exemplo, o professor Sebastião Botto de Barros Tojal, para quem:

            "Especialmente no campo do direito econômico, expressão do poder normativo das agências reguladoras, é absolutamente imperativo reconhecer que as suas normas típicas não se conformam aos modelos clássicos de um Direito concebido à luz de paradigmas estatutários, informados por princípios como certeza e segurança jurídicas, já que é inerente a esse processo de rematerialização da racionalidade legal o particularismo, a legitimidade determinada pela observância de critérios fundados numa ética da convicção, a partir da qual os fins acabam definindo os meios necessários para a sua consecução, tudo, frise-se, perfeitamente em consonância com os novos desígnios constitucionais." (26)

            Deve-se registrar, todavia, que, se a teoria da delegificação antes exposta, a experiência das nações americana e inglesa bem como argumentos de ordem técnica calcados na especialização legitimam a prática de delegação pretendida na instituição das agências reguladoras, não menos certo é que existem fortes argumentos em sentido contrário, a deslegitimar a atribuição de tais poderes legiferantes ao Executivo.

            De fato, acaso se leia a Constituição Brasileira no sentido tradicional que sempre se emprestou à teoria dos pesos e contrapesos, e, destarte, se parta da premissa de que todas as hipóteses normativas de atribuição de poderes legislativos ao Poderes Executivo (tais como as medidas provisórias e leis delegadas) devem ser interpretadas restritivamente, então impor-se-á a conclusão de que, pelo critério sistemático, somente aquelas agências (ANATEL e ANP) já contempladas no texto constitucional seriam aptas a exercer a atribuição criativa de normas.

            Tal argumento poria por terra qualquer delegação que se fizesse por meio de simples lei ordinária. Estaria, nesta senda, criada uma reserva de Constituição, ou seja, mudanças só seriam possíveis via emenda constitucional.

            O problema, ainda mais grave, é que, mesmo concebendo tal hipótese de emenda, haveria que se responder, ainda, aos limites ao poder constituinte derivado disciplinados pelo art. 60 da Carta Brasileira, de vez que esta situa no seu núcleo imutável qualquer tendência à abolição do Princípio da Independência e Harmonia dos Poderes.

            Há, ainda, ponderação que deve ser feita no que toca à relação do problema proposto com o conceito de democracia representativa.

            A construção de uma teoria representativa impôs-se em face da constatação da impossibilidade de recorrer-se, sempre, à vontade última do povo por meio de eleições diretas nas nações populosas ou extensas territorialmente.

            Trata-se, com efeito, de uma idéia-força que foi absorvida pelo constitucionalismo moderno de forma universal justamente por identificar uma das falhas sistêmicas da governabilidade nos sistemas democráticos: a necessidade de tomar decisões rápidas sem que se consulte, a não ser indiretamente, a vontade geral.

            Há, portanto, nisso um sacrifício da soberania popular em nome da resolução efetiva dos problemas relativos ao governo.

            No problema da regulação, a questão da crise de legitimidade citada eleva-se, com efeito, ao quadrado, pois subjaz a noção de que o próprio sistema representativo universalizado seria incapaz de dar soluções adequadas às demandas da sociedade moderna.

            Não é o Presidente da República, nem o Congresso Nacional, órgãos, portanto, vocacionados constitucionalmente a tomar decisões sobre os destinos da nação que tomam as decisões regulatórias, mas, sim, o órgão regulador.

            Como reatar, assim, o liame de legitimidade constitucional perdido? Uma das respostas possíveis talvez seja a do controle judicial amplo das disposições sancionatórias previstas pelo regulamento, com caráter substancial, do qual se tratará na seqüência.

Sobre o autor
Alexandre Vitorino Silva

advogado em Brasília (DF), mestrando em Direito e Estado na UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alexandre Vitorino. Agências regulatórias e o seu poder regulamentar em face do princípio da legalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3674. Acesso em: 23 dez. 2024.

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