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Literatura e ensino jurídicos: tecnização e decadência

Agenda 07/07/2015 às 10:38

Faz-se, aqui, uma crítica ao ensino jurídico tecnicizado da atualidade. Quem serão os futuros juristas?

No século XIX o fisiólogo Karl Vogt (1817 – 1895) foi celebrizado ao afirmar que “os pensamentos estão no cérebro como a bílis no fígado e a urina nos rins”. No entanto, esse primor de materialismo tosco não era novidade, já que outro fisiólogo, Pierre - Jean - Georges Cabanis (1758 – 1808) havia feito anteriormente a mesma comparação, chegando mais adiante a chamar os pensamentos de “excrementos do cérebro”. [1]

Efetivamente, ninguém pode culpar esses indivíduos pela barbaridade de suas afirmações, levando em conta que tenham utilizado como modelos a si próprios. Isso não quer dizer que suas conclusões a respeito dos próprios pensamentos (muito acertadas, diga-se de passagem) possam se generalizar por toda a humanidade.

É preciso ter em mente, porém, que, geralmente, em alguma afirmação, por mais absurda que soe, há pelo menos uma parcela de verdade. Realmente Vogt e Cabanis têm razão quanto ao fato de que boa parte da humanidade tem o cérebro vazio ou entulhado de excrementos. E desse vácuo ou dessa massa fedegosa costumam emanar pensamentos como os dos autores sobreditos.

Na seara jurídica, no que diz respeito ao ensino e à literatura específicos, vem se conformando, há algum tempo, e dominando o cenário universitário, seja de docentes ou de discentes, uma tecnização decadente, que reduz o ensino, os trabalhos “científicos” e didáticos e toda a cultura desse campo a um exercício de memorização de normas, de nomenclaturas e decisões jurisprudenciais. O Bacharel em Direito é formado como um rábula ou um despachante, perdendo qualquer possibilidade de ser um jurista ou um estudioso da suposta “ciência” em que se graduou.

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Os livros da área do Direito se tornaram manuais para aprendizado cada vez mais superficial e pragmático das leis e decisões jurisprudenciais. Todo o ensino e a produção bibliográfica com apelo comercial são voltados para concursos públicos e exames de ordem. Apostilas encadernadas são chamadas de “livros” e nessa barafunda se perde qualquer noção de cientificidade. Um trabalho que explore qualquer temática de forma aprofundada é relegado ao esquecimento nas prateleiras, isso quando sequer é admitido à publicação.

Há tempos o escritor Osman Lins chamava a atenção para fenômeno semelhante na área da literatura no Brasil. Apontava o autor para a transformação dos escritores em “instrumentos de produção” de “obras facilmente consumíveis” por um público estudantil, com vistas tão somente ao apelo comercial, olvidando-se qualquer preocupação com a qualidade literária do trabalho. [2]

Ora, não é o mesmo que vem ocorrendo com os trabalhos hoje indicados como “bibliografia” para os alunos de Direito? Não há a criação de uma cultura da simplificação e da superficialidade pragmática na área da formação jurídica? Autores, que até poderiam ser considerados como um norte muito inicial para jejunos, são hoje elevados à categoria de grandes mestres com suas obras desprovidas de pesquisa, suas aulas–espetáculo e suas dicas de autoajuda!

A literatura brasileira vem sobrevivendo a duras penas. Realmente, muito duras, já que a Academia Brasileira de Letras agora tem um jogador de futebol ganhando a Medalha Machado de Assis e, como componentes, uma compositora e cantora de modinhas caipiras e um autor de “best sellers” místicos!

O dano profundo que tais acontecimentos produzem na cultura de um povo é indescritível e imprevisível. Certamente, o fenômeno que aconteceu na área literária compõe parte de um todo que há algum tempo vinha fermentando na seara jurídica e que agora rebenta de forma avassaladora. Nossos “imortais” são, hoje, ao menos em parte, esse arremedo melancólico acima mencionado. Quem serão nossos futuros juristas?


REFERÊNCIAS

ARVON, Henri. O ateísmo. Trad. M. de Campos. 2ª. ed. Portugal: Europa – América, 1967.

LINS, Osman. Problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1977.


Notas

[1] ARVON, Henri. O ateísmo. Trad. M. de Campos. 2ª. ed. Portugal: Europa – América, 1967, p. 77.

[2] LINS, Osman. Problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1977, p. 55 – 59. 

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Literatura e ensino jurídicos: tecnização e decadência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4388, 7 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37711. Acesso em: 5 mai. 2024.

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