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O bem de família voluntário e o aparente conflito entre os artigos 1.711 e 1.713 do novo Código Civil

Agenda 13/04/2015 às 13:38

Os bens instituídos como bem de família voluntário (prédio, bens mobiliários etc.) não podem jamais ultrapassar o limite de 1/3 (um terço) do patrimônio líquido do instituidor, sob pena de violação do princípio da responsabilidade patrimonial.

O bem de família possui como matriz axiológica a nossa Constituição Federal de 1988, que afirma a proteção da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Brasileira (art. 1º, III), bem como a necessária e especial proteção conferida à família (art. 226).

Inspirado no homestead do direito estadunidense[1], o Código Civil Brasileiro de 1916 inseriu o referido instituto na Parte Geral, no livro dos bens (arts. 70 a 73); entretanto, devido a severas críticas de renomados civilistas (Clóvis Beviláqua, Washington de Barros Monteiro, Silvio Rodrigues e Eduardo Espínola), o bem de família, no Código Civil de 2002, foi inserido na Parte Especial do Codex, mais precisamente na parte que regulamenta o Direito de Família.

Consiste o bem de família na separação de um determinado patrimônio (móvel ou imóvel) que seja apto a garantir a sobrevivência digna do núcleo familiar, em atendimento ao respeito ao patrimônio mínimo como reforço à cláusula geral de tutela da dignidade humana (a teoria do patrimônio mínimo, desenvolvida por Luis Edson Fachin, ensina que, sob o prisma constitucional, deve ser resguardado para cada indivíduo um mínimo de patrimônio que sirva à manutenção de sua dignidade). Nas precisas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “(...) protege-se o bem que abriga a família com o escopo de garantir a sua sobrevivência digna, reconhecida a necessidade de um mínimo existencial de patrimônio, para a realização da justiça social” (Curso de Direito Civil. 5. ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2013, v. 6, p.939).  

O bem de família voluntário é aquele instituído por ato de vontade do casal, da entidade familiar ou até mesmo de terceiro, mediante registro no CRI (Cartório de Registro de Imóveis). Essa modalidade de bem de família tem previsão normativa nos artigos 1.711 e ss. do Novo Código Civil (2002). O legislador, inovando em relação ao Código Civil de 1916, com o intuito de evitar fraudes contra credores, estabeleceu como valor máximo para fixação do bem de família voluntário o limite de 1/3 (um terço) do patrimônio líquido dos seus instituidores (CC/2002, art. 1.711).

A instituição do bem de família voluntário se dá por escritura pública ou testamento, devendo ainda haver registro no CRI da circunscrição do imóvel (art. 167, I, nº 1, da Lei 6.015/73). Caso a instituição do bem de família voluntário ocorra em virtude de ato de última vontade (testamento), o bem será registrado com a apresentação do formal de partilha.

O bem de família legal, por outro lado, é disciplinado pela Lei 8.009/90, a qual, em atenção ao direito constitucional à moradia (CF/88, art. 6º) e à própria noção de patrimônio mínimo, impõe uma impenhorabilidade legal e involuntária do imóvel residencial, independente de inscrição no CRI.

A Lei 8.009/90, em seu art. 1º, traz o conceito do bem de família legal: “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”.

Já de acordo com a redação do art. 1.711, “caput”, do Novo Código Civil, versando sobre o bem de família voluntário, reza que “Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial”.

Primeiramente, a leitura do dispositivo acima transcrito traz uma conclusão de clareza meridiana: a instituição do bem de família voluntário coexiste com o bem de família legal. A própria redação do art. 1.711, “in fine”, nos ensina que há possibilidade de coexistência entre os bens de família voluntário e legal. Por todos, Flávio Tartuce: “Ainda pelo que consta da parte final desse dispositivo, o bem de família convencional não revogou o bem de família legal, coexistindo ambos em nosso ordenamento jurídico” (Manual de Direito Civil, 5. ed., São Paulo: Editora Método, 2015, p. 182).

Feita tal observação, passamos então a uma nova lição trazida pelo Novo Código Civil (2002), não existente no Diploma anterior (CC/1916): segundo o novel art. 1.713, é possível a constituição de valores mobiliários como bem de família voluntário, a fim de que tais rendimentos sejam afetados à manutenção do núcleo familiar. Sobre o tema são imprescindíveis as palavras do mestre Silvio Venosa: “O novo diploma encara o bem de família em seu sentido global e social: de nada adianta para a família ter seu prédio residencial imune à execuções se não há possibilidade de mantê-lo e de manter ali os integrantes da família. Nesse sentido, permite o novo Código que o instituidor destine recursos para essa manutenção que poderá consistir de aplicações financeiras, alugueres etc.” (Direito Civil – Parte Geral. 3. ed., São Paulo: Editora Atlas, 2003, v.1, p. 363).

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Ocorre que o Código Civil de 2002, em seu art. 1.713, dispõe que os valores mobiliários afetados não poderão exceder o valor do prédio instituído como bem de família voluntário. Diante da interpretação meramente gramatical do art. 1.713, poder parecer que tal dispositivo conflita com o art.1.711 (também do Novo Código Civil), ou seja, a redação do art. 1.713 faz parecer, erroneamente, que o instituidor poderá ultrapassar o limite de 1/3 (um terço) do patrimônio líquido quando instituir valores mobiliários como bem de família voluntário, estando adstrito apenas ao valor do prédio. Nada mais equivocado.

Esse conflito de normas (apenas aparente, repita-se), não passou despercebido por Sílvio Venosa: “O art. 1.713 dispõe que os valores mobiliários desse jaez não poderão exceder o valor do prédio instituído, à época da instituição. O texto não é muito claro e pode dar a idéia que um outro terço do patrimônio atual possa ser destacado para o bem de família, o que, em síntese, poderia somar 2/3 do patrimônio e contrariar o art. 1.711. Parece a melhor interpretação ser no sentido de que o prédio, suas pertenças e acessórios e os bens afetados à sua manutenção e sustento da família deverão, no total, limitar-se a um terço do patrimônio líquido do instituidor. No entanto, se a interpretação sistemática é essa, a interpretação gramatical não propende nesse sentido” (Direito Civil – Parte Geral. 3. ed., São Paulo: Editora Atlas, 2003, v.1, p. 363).

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald também concordam que a interpretação do art. 1.713 seja feita sistematicamente, ou seja, lecionam que a instituição do prédio e dos valores mobiliários como bens de família voluntários não podem, globalmente, superar o limite de 1/3 do patrimônio líquido existente à época da instituição. Dessa maneira, há total compatibilidade entre os dispositivos do Novo Código Civil (arts. 1.711 e 1.713), sendo o conflito apenas ilusório.

Luiz Guilherme Loureiro também concorda que não há conflito entre os dispositivos do Novo Código Civil e muito bem exemplifica a situação que ora é posta sob análise: “(...), se já foi destinado um imóvel no valor de R$ 100.000,00 como bem de família, mediante escritura pública, nada impede que, posteriormente, seja lavrada nova escritura para instituição de valores mobiliários, desde que não excedentes ao valor supracitado. (...). Além do prédio residencial e dos valores mobiliários, outros bens constantes do patrimônio líquido (v.g., veículos, direitos e ações reais, etc.) podem ser instituídos como bem de família, desde que estejam na cota de um terço do patrimônio líquido do titular” (Registros Públicos: Teoria e Prática. 6.ed. São Paulo: Editora Método, 2014, p. 434).

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, avançando no tema, ensinam ainda que “(...) somente poderá instituir o bem de família aquele que tenha patrimônio suficiente para a garantia de débitos anteriores (solvente), sob pena de invalidade” (Novo Curso de Direito Civil. 4.ed., Salvador: Editora Saraiva, 2014, v.6, p.396). Seguem os renomados professores ainda nos informando que “(...) deverão os instituidores declarar ao Oficial de Registro, sob as penas da lei civil e criminal, não haver sido desrespeitado o limite legal, sob pena, inclusive, de invalidade do ato” (p.398).    

O posicionamento aqui defendido é no sentido de que todos os bens instituídos como bem de família voluntário (prédio, bens mobiliários etc.) não podem jamais ultrapassar o limite de 1/3 (um terço) do patrimônio líquido do instituidor, sob pena de violação do princípio da responsabilidade patrimonial. De acordo com o referido princípio (previsto no CPC/73 no art. 591 e no Novo CPC – Lei 13.105/2015 - no art. 789), somente o patrimônio do devedor tem aptidão para ser objeto da atividade executiva estatal.

A humanização dos sistemas jurídicos modernos trouxe consigo o princípio da responsabilidade patrimonial, que determina que somente o patrimônio – e não o corpo do indivíduo – submete-se ao processo de execução. Fredie Didier Jr., ao elucidar o aludido princípio, nos lembra que “Houve época, como no primitivo Direito Romano, em que se permitia que a execução incidisse sobre a própria pessoa do executado, que poderia, por exemplo, virar escravo do credor como forma de pagamento da sua dívida” (Curso de Direito Processual Civil, 3. ed., Salvador: Editora Juspodivm, Salvador, 2011, v. 5, p.51).

Se por um lado a humanização ocorreu em benefício do devedor, não podemos esquecer que do outro lado há um credor à espera da satisfação do seu crédito. Portanto, permitir que o bem de família voluntário supere o limite de 1/ 3 (um terço) do patrimônio líquido do estipulante (podendo chegar até 2/3 deste patrimônio) é o mesmo que negar a possibilidade de o credor assistir ao integral adimplemento do valor que lhe é devido. Seria um brinde ao inadimplemento, à multiplicação das fraudes contra credores e à negação da função social das relações jurídicas, o que certamente não foi querido pelo Novo Código Civil (e nem pelo ordenamento jurídico como um todo). Sabemos que o Direito Civil, de acordo com as sempre iluminadas lições de Miguel Reale, hoje se pauta na valorização da eticidade, da socialidade e da operabilidade.

Portanto, em respeito aos baluartes da eticidade, da socialidade e ao princípio da responsabilidade patrimonial, pensamos em consonância com a maioria da melhor doutrina aqui mencionada, no sentido de que não há conflito entre os artigos 1.711 e 1.713, ambos do Código Civil; tais dispositivos convivem harmonicamente, e o “choque” entre eles se dá apenas no campo da aparência.


Nota

[1] De acordo com as lições de Silvio de Salvo Venosa, “O governo da então República do Texas, com o objetivo de fixar famílias em suas vastas regiões, promulgou o Homestead Act, de 1839, garantindo a cada cidadão determinada área de terras, isentas de penhora. O êxito foi grande, tanto que o instituto foi adotado por outros Estados da nação norte-americana, tendo ultrapassado suas fronteiras; hoje é concebido na grande maioria das legislações, com modificações que procuram adaptá-lo às necessidades de cada país” (Direito Civil – Parte Geral. 3. ed., São Paulo: Editora Atlas, 2003, v.1, p. 345).

Sobre a autora
Giuliana Vieira de Sá Cardozo

Oficial de Registros Públicos, Titular do Cartório de Registros de Imóveis Títulos e Documento e das Pessoas Jurídicas da Comarca de Conde - BA, Membro Fundador do IRTDPJ-BA (Instituto de Registros Públicos e Títulos e Documentos do Estado da Bahia), Graduada pela UCSAL (Universidade Católica do Salvador), Pós-graduada em Direito Processual Civil pela UCSAL e em Direito do Trabalho pela UFBA (Universidade Federal da Bahia). Ex-Procuradora do Município.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOZO, Giuliana Vieira Sá. O bem de família voluntário e o aparente conflito entre os artigos 1.711 e 1.713 do novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4303, 13 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37971. Acesso em: 24 nov. 2024.

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