Resumo: O presente artigo aborda a temática referente à possibilidade de corte do serviço de energia elétrica por inadimplemento do usuário, fazendo uma correlação com o direito do consumidor, elenca doutrinadores favoráveis e desfavoráveis ao tema abordado, bem como o posicionamento das Cortes Supremas.
Palavras-chave: corte de energia, inadimplemento, direito, consumidor.
1. INTRODUÇÃO
O Brasil, na última década, passou por diversas transformações de cunho social que se refletiram principalmente na prestação de serviços públicos. Um dos motivos que possibilitaram essas mudanças foi o processo de desestatização, iniciado na década de 90, com a transferência aos particulares à prestação de serviços públicos, através de delegação, concessão e permissão.
Essa transição possibilitou a eficiência nos serviços públicos oferecidos à população, bem como redução do déficit financeiro do setor público. A nova dinâmica criou entre os doutrinadores e os juristas diversas controvérsias acerca dos serviços públicos e sua prestação pelos particulares, sendo que uma das temáticas dizem respeito ao fornecimento de energia elétrica e a possibilidade de corte por inadimplemento.
Antes de adentrarmos na controvérsia, cabe a conceituação de serviço público. O conceito de serviço público não se encontra estatuído na Constituição Federal de 1998, no entanto, da redação do art. 175, da norma em comento, pode ser definido como a atividade de titularidade da Administração Pública direta ou indireta, podendo ser oferecido mediante concessão, delegação ou permissão, na busca da satisfação dos interesses coletivos.
Nesse sentido leciona Odete Medauar que o serviço público “[...] refere-se a toda atividade prestacional, em que o poder público propicia algo necessário à vida coletiva, como, por exemplo, água, energia elétrica, transporte urbano” (MEDAUAR, 2006, p. 313).
Os serviços públicos estão vinculados a alguns princípios do Direito Público. Assim, eles devem ser prestados com adequação e eficiência. Ou seja, “deve satisfazer, do ponto de vista técnico, a necessidade que motivou a instituição” (JUSTEN FILHO, 1997, p. 127).
Além disso, devem ser oferecidos para todos, em respeito ao princípio da generalidade. Se submetem, ainda, aos princípios da impessoalidade e isonomia, o que impede qualquer discriminação em face dos usuários. Por fim, deve ser o serviço público prestado de forma contínua, sem qualquer interrupção.
Outro tópico relevante em relação aos serviços públicos, é a subclassificação dos serviços públicos essências. A CF/88 e o CDC são omissos em pontuar quais serviços púbicos são considerados essências. O art. 9. do CF, em seu parágrafo 1, assim dispõe: “A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.”.
A doutrina pátria utiliza a Lei nº 7.783/1989, que trata do direito a greve, para reputar quais são os serviços essenciais à população. No art. 11. da lei supramencionada conceitua os serviços essências como aqueles “indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”. Já o art. 10, descreve quais serviços são considerados essências.
Art. 10. - São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; (grifou-se).
Com base na leitura do art. acima exposto, não há dúvidas que o serviço de enérgica elétrica é considerado essencial nos dias atuais, principalmente se for analisado os julgados das Cortes superiores, como o abaixo transcrito:
Administrativo - Agravo regimental - Recurso especial - Energia elétrica - Serviço público essencial - Corte de fornecimento - Consumidor inadimplente - Impossibilidade. - Esta Corte vem reconhecendo ao consumidor o direito da utilização dos serviços públicos essenciais ao seu cotidiano, como o fornecimento de energia elétrica, em razão do princípio da continuidade (CDC, art. 22). - O corte de energia, utilizado pela companhia para obrigar o usuário ao pagamento de tarifa em atraso, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar o adimplemento do débito. - Precedentes. Agravo regimental improvido. (Grifou-se).
2. O CORTE DE ENERGIA ELETRICA EM FACE DO INDIMPLEMENTO DO USUÁRIO
A classificação do serviço público de fornecimento de energia como essencial traz à tona algumas questões referentes ao corte do serviço por inadimplemento do usuário, bem como o entendimento das Cortes Superiores.
O art. art. 6º, § 3º, II da Lei nº 8.987/95, disciplinadora dos institutos da concessão e permissão dos serviços públicos, assim dispõe:
Art. 6º - Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 3º - Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade. (Grifou-se).
Na mesma linha de pensamento a Resolução 546/2000 da Aneel, no art. 91, assevera expressamente a legalidade da suspensão do fornecimento de energia quando o usuário estiver inadimplente, mediante aviso prévio ao consumidor.
Importante ressaltar que a suspensão deve ser precedida de notificação ao consumidor, em no mínimo 15 dias, oportunizados o contraditório e a ampla defesa. O aviso deve conter a fatura relativa ao mês de consumo que encontra-se pendente de pagamento, de forma clara e discriminada.
Tendo em vista que o contrato de fornecimento de energia é sinalagmático, o prestador só pode exigir o cumprimento quando tiver cumprido com sua obrigação de fornecer a energia de forma adequada, segura e eficiente.
Outro requisito para a suspensão diz respeito à atualidade dos débitos. Em respeito ao art. 42. do CDC, é indispensável a existência de débito relativo ao mês de consumo, caso contrário, o valor ser considerado pretérito e a jurisprudência tem considerado a interrupção ilegal. Com base na jurisprudência tem se identificado também que a média para se caracterizar débito pretérito é de 90 dias de vencimento da fatura e, portanto, não pode a concessionária cessar o fornecimento em razão do inadimplemento de fatura que se venceu há mais de três meses.
Apesar de tudo quanto exposto acima, existem exceções quanto à possibilidade do corte, como por exemplo, o interesse da coletividade. Assim, se a carência do serviço causar prejuízo aos interesses coletivos, fica impossibilitada a concessionária de efetuar o desligamento. Do mesmo modo, a jurisprudência tem julgado ilegal o corte por desrespeito aos princípios constitucionais, dentre outros.
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ENERGIA ELÉTRICA. SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL. CORTE DE FORNECIMENTO. CONSUMIDOR INADIMPLENTE. IMPOSSIBILIDADE. I - Esta Corte vem reconhecendo ao consumidor o direito da utilização dos serviços públicos essenciais ao seu cotidiano, como o fornecimento de energia elétrica, em razão do princípio da continuidade (CDC, art. 22). II - O corte de energia, utilizado pela Companhia para obrigar o usuário ao pagamento de tarifa, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar o adimplemento do débito. III - Precedentes. IV - Agravo regimental improvido.
(STJ - AgRg no REsp: 471757 MT 2002/0125838-7, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 25/03/2003, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 09/06/2003 p. 183). (Grifou-se).
No entanto, alguns doutrinadores entendem que a prestação de energia elétrica é classificada como serviço de consumo, o que impossibilitaria sua suspensão. O art. 22, do CDC descreve que os serviços essenciais devem ser contínuos.
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. (Grifou-se).
Referente à aplicação do CDC, cabe os ensinamento de Fernanda Stracke Moor:
Considerando que o subsistema do Direito do Consumidor e o Regime Público de Delegação são aplicáveis nas relações envolvendo serviços públicos delegados, a aplicação do art. 22. do CDC deve se sobressair como meio de garantir maior proteção ao usuário do serviço público essencial, pois, além de ser o direito do consumidor considerado direito fundamental, é esta a vontade implícita no regime público, tendo em vista que o sentido do princípio da continuidade dos serviços públicos não se resume ao disposto no art. 6º da Lei 8.987/95, pelo qual muitas decisões estão sendo fundamentadas, mas ao contrário, o princípio da continuidade dos serviços públicos decorre do princípio básico do regime público, que é o Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público. Por este o Estado não pode dispor do Interesse Público, no caso o serviço público, o que se estende ao regime de delegação, na medida em que o Estado continua titular do serviço e o delegatário passa a ser responsável pela execução desse serviço público. Com esse fundamento, a interrupção do serviço pela falta de pagamento passa a ser uma medida que afronta a ampla proteção que o regime público quer assegurar, diante da importância dos serviços públicos essenciais na vida cotidiana
(MOOR, 2005, p. 112-113). (Grifou-se).
Outro argumento fundamental usado pelos doutrinadores que apoiam essa corrente é que os débitos das concessionárias de serviço público não gozam de presunção de veracidade, devido a muitas cobranças de taxas indevidas. Assim, os débitos devem ser discutidos judicialmente, oportunizando o contraditório e ampla defesa, e, só após, ser efetuado o corte. O art. 5º, incs. XXXV da CF, prevê, ainda, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”.
Em que pese à discussão doutrinaria, o STJ tem consolidado entendimento de que é possível o corte do fornecimento de energia elétrica, no caso de inadimplência do consumidor, desde que este tenha sido notificado. Abaixo recente julgado do STJ:
ADMINISTRATIVO - SERVIÇO PÚBLICO - CONCEDIDO - ENERGIA ELÉTRICA - INADIMPLÊNCIA. 1. Os serviços públicos podem ser próprios e gerais, sem possibilidade de identificação dos destinatários. São financiados pelos tributos e prestados pelo próprio Estado, tais como segurança pública, saúde, educação, etc. Podem ser também impróprios e individuais, com destinatários determinados ou determináveis. Neste caso, têm uso específico e mensurável, tais como os serviços de telefone, água e energia elétrica. 2. Os serviços públicos impróprios podem ser prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente, por delegação, como previsto na CF (art. 175). São regulados pela Lei 8.987/95, que dispõe sobre a concessão e permissão dos serviços público. 3. Os serviços prestados por concessionárias são remunerados por tarifa, sendo facultativa a sua utilização, que é regida pelo CDC, o que a diferencia da taxa, esta, remuneração do serviço público próprio. 4. Os serviços públicos essenciais, remunerados por tarifa, porque prestados por concessionárias do serviço, podem sofrer interrupção quando há inadimplência, como previsto no art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95, Exige-se, entretanto, que a interrupção seja antecedida por aviso, existindo na Lei 9.427/97, que criou a ANEEL, idêntica previsão. 5. A continuidade do serviço, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da igualdade da partes e ocasiona o enriquecimento sem causa, repudiado pelo Direito (arts. 42. e 71 do CDC, em interpretação conjunta). 6. Recurso especial provido.
(STJ, Relator: Ministra ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 16/12/2003, T2 - SEGUNDA TURMA). (Grifou-se).
Deste modo, ainda que aos contratos de prestação de energia elétrica sejam aplicados o CDC, o uso é facultativo, mediante remuneração. Não existe no ordenamento jurídico brasileiro previsão legal que obrigue a concessionaria a oferecer os serviços gratuitamente.
3. CONCLUSÃO
A interrupção da prestação de energia elétrica, por se tratar de serviço essencial, gerou diversas controvérsias doutrinarias e jurisprudenciais, principalmente após o advento da Leis 8.987/95, art. 6º, § 3º, II, que autoriza a referida suspensão, quando notificado o consumidor, salvo em prejuízo da coletividade.
Percebe-se que a doutrina divide-se naqueles que entendem pela legalidade da lei acima mencionada, e, por conseguinte, na possibilidade da suspensão, com base no argumento de que o serviço público não poder ser prestado de forma gratuita e, por outro lado, há aqueles que demonstram que a suspensão fere os preceitos do CDC, principalmente o art. 22, que leciona sobre a obrigatoriedade da continuidade do serviço público. Assim, para essa corrente, o corte só seria possível após decisão judicial.
Apesar da divergência, o STJ tem consolidado entendimento no sentido de que o corte de energia elétrica é legal, desde que feita nos moldes da lei e respeitando o contraditório e a ampla defesa. Dessa forma, embora o serviço de energia elétrica possa ser considerado um bem essencial e protegido pelas normas do CDC, o princípio da continuidade não é absoluto, devendo prevalecer, nesses casos, o interesse público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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