Escândalos de pedofilia têm envolvido personalidades dotadas de respeito público. O erotismo de crianças e adolescentes, embora relativamente tolerado quando restrito a relações dentro da mesma faixa etária, é crime quando adultos são envolvidos. Administrar medicamento sem autorização informada constitui crime contra os direitos humanos e infração ao código de ética médica. Mas a amnésia medicamentosa, induzida pela medicação, sempre administrada pelo hebiatra, pode ter minorado, em muito, os danos emocionais a seus pacientes, decorrentes do abuso sexual - até sua divulgação na mídia. A prevenção de atos repulsivos desta natureza depende de uma melhor compreensão da natureza humana, de uma posição clara da lei e da justiça, e do fortalecimento do caráter de crianças e adolescentes, pela introjeção do valor de seguirem suas consciências e de dizerem “não” quando assim lhes parecer, entendendo que eventualmente terão de assimilar as consequências do mal julgamento.
Segue em aberto a questão se "desejo é destino." Será o Homem, mais cedo ou mais tarde, vítima dos seus desejos? Será ele capaz de encontrar sentido e emoção, em meio ao tédio e à angústia vital, longe de sua biologia, longe dos estímulos psicofisiológicos que o excitam para a vida e o afastam da morte?
A condenação social à expressão de sentimentos socialmente desaprovados, atinge com maior intensidade à personalidade publica. O público destina-lhe a responsabilidade de espelhar seus ideais comportamentais - bons ou maus. Via-de-regra, um dos lados é defendido pela personagem (um falso ser-humano, um eufemismo, fruto da imaginação).
O personagem ou pessoa pública que se apresenta como defensor do bem, é percebido também como porta-voz, indiretamente, de tudo que se confunde com o bem, a repressão, o bom-mocismo, a submissão dos instintos. Ao mesmo tempo em que, os aclamamos socialmente, nossos baixos instintos, reprimidos, emitem surdos protestos de dentro de nosso ser.
Quando peca o personagem do bem, sentimo-nos vulneráveis: se o bem pecou, quem segurará o mau? Quem segurará o mau dentro de nós? E nos sentimos traídos: quem nos considerará bons, se todos sabem que homenageamos o mal?
E nos sentimos apavorados: será que em meio à ideologia expressa nos textos do personagem que adorávamos, estará lá o germe, o virus de seu comportamento deplorável? Será que este germe contaminou minha mente, meu coração, enquanto assistia às suas palestras, ouvia suas preleções, lia seus livros?
À raiz da pedofilia encontra-se, talvez, uma enorme e erotizada paixão pela pureza, pela virgindade. O ódio, o nojo ao próprio corpo impuro, experiente, pecador - e ao dos demais adultos.
Penetrar as entranhas de uma criança poderá traduzir uma excitação ao mesmo tempo sexual e religiosa. O êxtasis religioso, às vezes percebido como uma excitação quase sexual, é comumente tido como purificador.
A pedofilia pode expressar e encobrir o inconsciente desejo de auto-purificação, de passar para o bezerro sacrificado, a sujeira e o pecado humano, enquanto toma-lhe a inocência. Breve fantasia, breve fantasia, e, muitas vezes, o resto é culpa. E compulsão.
Sim: na ideologia do pecador repousa o virus de seu pecado. Inerte, mas vivo e viável. Nós que o repetimos e o idealizamos, estamos em risco.
Não basta apedrejá-lo: há de se aprender com o pecador, encontrá-lo dentro de nós e domá-lo - quando não possível extirpá-lo. E depois, livrar também ao pecador de sua sina pecaminosa.
A repressão sexual, a idéia de que o sexo é impuro, de que a virgindade deve ser deificada, de que só as crianças são puras, que todos são pecadores, mas que Deus ama as crianças - deve ser repensada.
Hoje é consenso a necessidade de protegerem-se as crianças contra os abusos e os maus tratos sexuais. Mas na Europa Oriental, há menos de 1 século, casar-se após os 18 anos podia ser pecado, aos 13 podia ser normal.
É princípio básico da Bioética a não administração de tratamentos a pacientes sem o consentimento informado, ou seja, sem que saibam para quê e os riscos relevantes envolvidos no procedimento. As exceções são as situações em que o paciente não tem condições de lidar saudavelmente com a informação, sendo substituído por familiar ou responsável na tarefa de compreender e autorizar seu uso. E as emergências. Assim está também determinado na Lei Médica - o código de ética médica. Denomina-se o princípio da Autonomia, ou do direito à Auto-Determinação, e seu conceito emana dos Direitos Humanos.
Outro princípio da Bioética é o da Não-Maleficência - não fazer mal. É herdeiro de um antigo princípio da medicina: "primum non nócere" - antes de tudo, não causar danos.
Na forma como hoje compreendemos, administrar tratamentos sem fins terapêuticos, sem o consentimento informado, desrespeitando o direito do paciente de decidir livre e informadamente, de ser ajudado, de não ser maltratado, constituem graves atentados aos direitos humanos.
O abuso sexual poderá causar dano físico ou psíquico, o que freqüentemente ocorre; mas constitui antes e sempre um dano ao direito à integridade e à inviolabilidade corporal. Da administração não consentida de medicamento, e sem fins terapêuticos, também pode restar dano físico ou psíquico; mas incorre, também aí, necessariamente, em dano ao direito à integridade e à inviolabilidade corporal, além do direito de autodeterminação.
No caso extensamente exposto na mídia, a medicação administrada limitou enormemente o dano decorrente dos repugnantes atos perpetrados contra os pacientes. Colocava aos pacientes sem chance de se defenderem, particularmente vulneráveis, sem capacidade para concordarem ou não, e portanto sem qualquer responsabilidade frente aos atos que se sucederam. Mas além de paralisar a vítima no que interessava ao ato, esta medicação - que aqui preferimos não informar e assim sugerimos à mídia ética - tem o poder de induzir amnésia para os fatos ocorridos sob seu efeito.
Ou seja, inexistindo dano físico, e inexistindo memória para os fatos, não há qualquer dano para o paciente - nem pessoal, nem social, nem moral, nem trauma! Além do dano abstrato, sempre presente, ao direito à inviolabilidade e à autodeterminação.
Como pai, desejaria a dor e a morte àquele que abusasse ou maltratasse um filho meu. O duplo crime - bioético e sexual - resultou num dano menor. Se no desejo pedofílico, Eugênio e os Padres se equivalem, o envolvimento sexual dos padres com seus meninos pode deixar cruentas feridas psicológicas e emocionais por toda a vida. Não os de Eugênio. Nenhuma queixa até aqui havia sido formulada contra Eugênio, possivelmente devido à grande eficácia do medicamento em impedir o registro daqueles acontecimentos. E sem lembrança não há trauma.
Surge entretanto o drama das falsas lembranças: a mídia divulga o fato e os pacientes produzem fantasias. Recuperam limitados traços borrados de memória e completam, com a imaginação, aspectos faltantes - e agora sim: traumatizam-se. Completam a gestalt e traumatizam-se.
Os pais reagem à nova realidade - à da mídia - e se transformam. No olhar, no tom de voz, no silêncio - será seu filho o cordeiro sacrificado e sujo dos pecados do mundo? Do Eugênio?
Loucura e inteligência interagem, mas não se confundem. A mesma ideologia que, através de imagens, metáforas, conceitos, de pureza e pecado, reprime os instintos e converte-os em trabalho, produção, estudo e criatividade, pode gerar a perversão, ou neo-sexualidade: uma sexualidade não tradicional, não aceita, imoral, e, a um só tempo, próxima e longe do instinto que lhe deu origem.
Encontrar o justo equilíbrio entre a liberação e a contenção instintiva é tema geral, não resolvido e em permanente transformação - leia-se, liberalização e banalização.
A questão é muito complexa: para alguns grupos sub-culturais, parecem ser o nu e o sexo, em geral, tão banais, que o bizarro passa a integrar um cardápio erótico que se lhes apresenta como mais apetecível.
Afrontar o proibido, experimentar o novo: serão estes componentes inevitáveis das fantasias sexuais? À máxima liberação de nosso erotismo, seguir-se-á a serenidade sexual? Ou, ao contrário, como pareceu sugerir o Marquês de Sade: ao tédio vital só se pode vencer com o deboche (ousadias eróticas imorais, ilegais, aéticas, sádicas, bizarras)?
É certo que, inexistindo a repressão externa, a interna muito se enfraquece.
Mas como impedir que nossos filhos sejam "passados para trás" em terapias, escolas, igrejas? Ou, no futuro, no emprego, nos negócios, na política?
O ensino e a prática dos Direitos Humanos e da cidadania são ainda tão incipientes, que permanecemos alvos fáceis. Mas qualquer pai e mãe podem ensinar seus filhos a dizerem não, a valorizarem sua posição autêntica, a informarem-se para se posicionarem e a posicionarem-se por se informarem antes de decidirem por sua própria cabeça. A não serem injusta e indevidamente manipulados, mesmo quando seduzidos ou pressionados. O mercado de consumo, que apregoa desavergonhadamente que "compra é impulso", certamente não apoiará tal mudança. Nem os grupos que se servem da ignorância e da desinformação, para seduzir ou intimidar populações ignorantes, enquanto se mantêm no poder.
O temor excessivo e o respeito em demasia pelas "figuras de autoridade" podem por um jovem mais a mercê que outros, aos abusos de alguém que se investe de autoridade.
Os terapeutas, ao contrário dos padres, não devem entender-se imunes às dúvidas e inquietações - não se podem escudar na palavra de Deus, ou nos ensinamentos religiosos.
Não devem os terapeutas atribuir as dúvidas e inquietações dos pacientes, tão somente à "resistência" psicológica ao tratamento, ou seja, a um defeito na vontade dos pacientes de se curarem, que tenta fazê-los crer que, ao insistirem em suas dúvidas e inquietações, tornam-se os principais responsáveis por ainda necessitarem de tratamento.
Paradoxalmente, tal como nas religiões, muitos terapeutas instigam em seus pacientes a idéia de que é preciso “crer para ver” - e levar pacientes a cegas concessões, tal como crentes diante de um sacerdote que fala “em nome de Deus”.
Excesso de poder de um só lado de uma relação pode tornar bastante difícil a tarefa de se controlarem instintos suficientemente fortes e insatisfeitos no lado mais poderoso. Incluam-se aí todas as situações de assédio sexual - não só por terapeutas e religiosos.
Fortalecer o lado tradicionalmente mais fraco através da lei e da justiça, mas também através da formação do caráter - informando-lhes das "coisas do mundo", preparando-os para que as enfrentem com destemor, segurança e serenidade; ensinando-os a serem menos obedientes e mais inconformados, a respeitarem e lutarem por justiça. Parece ser esta uma boa receita para a prevenção contra os abusos, não só os sexuais, mas em geral, e não só de nossos filhos, mas de toda a sociedade.
Atenção: Apenas inspirado na ampla divulgação na mídia sobre o terapeuta e os padres acusados de suposta pedofilia, o primeiro supostamente administrando sedativos-amnesiante sem consentimento informado prévio, antes de supostamente abusar sexualmente dos clientes, em 3/2002. As afirmações não são relacionadas especificamente aos protagonistas do noticiário nem se lhes incluem especificamente como objetos de reflexão: apenas inspiram-se no estímulo da mídia, e teorizam sobre o fenômeno, não sobre as pessoas, caso a mídia traduza a verdade sobre os fatos.
¹ Este texto foi originalmente publicado no fórum de direito da criança e adolescente e catalogado como “pergunta” em http://jus.com.br/forum/18459/pedofilia-eugenio-e-os-padres em 28/03/2002 19:19. Devido à aparente originalidade e persistente atualidade do texto, republicamo-lo agora na forma de artigo.