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Pedofilia: Eugênio e os padres

Agenda 27/04/2015 às 02:43

Ensaio inspirado em rumoroso caso brasileiro, de 2002, em que um hebiatra foi acusado de abusar sexualmente de pacientes, enquanto múltiplos escândalos envolviam padres em acusações de abusos sexuais de crianças no mundo todo.

Escândalos de pedofilia têm envolvido personalidades dotadas de respeito público. O erotismo de crianças e adolescentes, embora relativamente tolerado quando restrito a relações dentro da mesma faixa etária, é crime quando adultos são envolvidos. Administrar medicamento sem autorização informada constitui crime contra os direitos humanos e infração ao código de ética médica. Mas a amnésia medicamentosa, induzida pela medicação, sempre administrada pelo hebiatra, pode ter minorado, em muito, os danos emocionais a seus pacientes, decorrentes do abuso sexual - até sua divulgação na mídia. A prevenção de atos repulsivos desta natureza depende de uma melhor compreensão da natureza humana, de uma posição clara da lei e da justiça, e do fortalecimento do caráter de crianças e adolescentes, pela introjeção do valor de seguirem suas consciências e de dizerem “não” quando assim lhes parecer, entendendo que eventualmente terão de assimilar as consequências do mal julgamento.

Segue em aberto a questão se "desejo é destino." Será o Homem, mais cedo ou mais tarde, vítima dos seus desejos? Será ele capaz de encontrar sentido e emoção, em meio ao tédio e à angústia vital, longe de sua biologia, longe dos estímulos psicofisiológicos que o excitam para a vida e o afastam da morte?

A condenação social à expressão de sentimentos socialmente desaprovados, atinge com maior intensidade à personalidade publica. O público destina-lhe a responsabilidade de espelhar seus ideais comportamentais - bons ou maus. Via-de-regra, um dos lados é defendido pela personagem (um falso ser-humano, um eufemismo, fruto da imaginação).

O personagem ou pessoa pública que se apresenta como defensor do bem, é percebido também como porta-voz, indiretamente, de tudo que se confunde com o bem, a repressão, o bom-mocismo, a submissão dos instintos. Ao mesmo tempo em que, os aclamamos socialmente, nossos baixos instintos, reprimidos, emitem surdos protestos de dentro de nosso ser.

Quando peca o personagem do bem, sentimo-nos vulneráveis: se o bem pecou, quem segurará o mau? Quem segurará o mau dentro de nós? E nos sentimos traídos: quem nos considerará bons, se todos sabem que homenageamos o mal?

E nos sentimos apavorados: será que em meio à ideologia expressa nos textos do personagem que adorávamos, estará lá o germe, o virus de seu comportamento deplorável? Será que este germe contaminou minha mente, meu coração, enquanto assistia às suas palestras, ouvia suas preleções, lia seus livros?

À raiz da pedofilia encontra-se, talvez, uma enorme e erotizada paixão pela pureza, pela virgindade. O ódio, o nojo ao próprio corpo impuro, experiente, pecador - e ao dos demais adultos.

Penetrar as entranhas de uma criança poderá traduzir uma excitação ao mesmo tempo sexual e religiosa. O êxtasis religioso, às vezes percebido como uma excitação quase sexual, é comumente tido como purificador.

A pedofilia pode expressar e encobrir o inconsciente desejo de auto-purificação, de passar para o bezerro sacrificado, a sujeira e o pecado humano, enquanto toma-lhe a inocência. Breve fantasia, breve fantasia, e, muitas vezes, o resto é culpa. E compulsão.

Sim: na ideologia do pecador repousa o virus de seu pecado. Inerte, mas vivo e viável. Nós que o repetimos e o idealizamos, estamos em risco.

Não basta apedrejá-lo: há de se aprender com o pecador, encontrá-lo dentro de nós e domá-lo - quando não possível extirpá-lo. E depois, livrar também ao pecador de sua sina pecaminosa.

A repressão sexual, a idéia de que o sexo é impuro, de que a virgindade deve ser deificada, de que só as crianças são puras, que todos são pecadores, mas que Deus ama as crianças - deve ser repensada.

Hoje é consenso a necessidade de protegerem-se as crianças contra os abusos e os maus tratos sexuais. Mas na Europa Oriental, há menos de 1 século, casar-se após os 18 anos podia ser pecado, aos 13 podia ser normal.

É princípio básico da Bioética a não administração de tratamentos a pacientes sem o consentimento informado, ou seja, sem que saibam para quê e os riscos relevantes envolvidos no procedimento. As exceções são as situações em que o paciente não tem condições de lidar saudavelmente com a informação, sendo substituído por familiar ou responsável na tarefa de compreender e autorizar seu uso. E as emergências. Assim está também determinado na Lei Médica - o código de ética médica. Denomina-se o princípio da Autonomia, ou do direito à Auto-Determinação, e seu conceito emana dos Direitos Humanos.

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Outro princípio da Bioética é o da Não-Maleficência - não fazer mal. É herdeiro de um antigo princípio da medicina: "primum non nócere" - antes de tudo, não causar danos.

Na forma como hoje compreendemos, administrar tratamentos sem fins terapêuticos, sem o consentimento informado, desrespeitando o direito do paciente de decidir livre e informadamente, de ser ajudado, de não ser maltratado, constituem graves atentados aos direitos humanos.

O abuso sexual poderá causar dano físico ou psíquico, o que freqüentemente ocorre; mas constitui antes e sempre um dano ao direito à integridade e à inviolabilidade corporal. Da administração não consentida de medicamento, e sem fins terapêuticos, também pode restar dano físico ou psíquico; mas incorre, também aí, necessariamente, em dano ao direito à integridade e à inviolabilidade corporal, além do direito de autodeterminação.

No caso extensamente exposto na mídia, a medicação administrada limitou enormemente o dano decorrente dos repugnantes atos perpetrados contra os pacientes. Colocava aos pacientes sem chance de se defenderem, particularmente vulneráveis, sem capacidade para concordarem ou não, e portanto sem qualquer responsabilidade frente aos atos que se sucederam. Mas além de paralisar a vítima no que interessava ao ato, esta medicação - que aqui preferimos não informar e assim sugerimos à mídia ética - tem o poder de induzir amnésia para os fatos ocorridos sob seu efeito.

Ou seja, inexistindo dano físico, e inexistindo memória para os fatos, não há qualquer dano para o paciente - nem pessoal, nem social, nem moral, nem trauma! Além do dano abstrato, sempre presente, ao direito à inviolabilidade e à autodeterminação.

Como pai, desejaria a dor e a morte àquele que abusasse ou maltratasse um filho meu. O duplo crime - bioético e sexual - resultou num dano menor. Se no desejo pedofílico, Eugênio e os Padres se equivalem, o envolvimento sexual dos padres com seus meninos pode deixar cruentas feridas psicológicas e emocionais por toda a vida. Não os de Eugênio. Nenhuma queixa até aqui havia sido formulada contra Eugênio, possivelmente devido à grande eficácia do medicamento em impedir o registro daqueles acontecimentos. E sem lembrança não há trauma.

Surge entretanto o drama das falsas lembranças: a mídia divulga o fato e os pacientes produzem fantasias. Recuperam limitados traços borrados de memória e completam, com a imaginação, aspectos faltantes - e agora sim: traumatizam-se. Completam a gestalt e traumatizam-se.

Os pais reagem à nova realidade - à da mídia - e se transformam. No olhar, no tom de voz, no silêncio - será seu filho o cordeiro sacrificado e sujo dos pecados do mundo? Do Eugênio?

Loucura e inteligência interagem, mas não se confundem. A mesma ideologia que, através de imagens, metáforas, conceitos, de pureza e pecado, reprime os instintos e converte-os em trabalho, produção, estudo e criatividade, pode gerar a perversão, ou neo-sexualidade: uma sexualidade não tradicional, não aceita, imoral, e, a um só tempo, próxima e longe do instinto que lhe deu origem.

Encontrar o justo equilíbrio entre a liberação e a contenção instintiva é tema geral, não resolvido e em permanente transformação - leia-se, liberalização e banalização.

A questão é muito complexa: para alguns grupos sub-culturais, parecem ser o nu e o sexo, em geral, tão banais, que o bizarro passa a integrar um cardápio erótico que se lhes apresenta como mais apetecível.

Afrontar o proibido, experimentar o novo: serão estes componentes inevitáveis das fantasias sexuais? À máxima liberação de nosso erotismo, seguir-se-á a serenidade sexual? Ou, ao contrário, como pareceu sugerir o Marquês de Sade: ao tédio vital só se pode vencer com o deboche (ousadias eróticas imorais, ilegais, aéticas, sádicas, bizarras)?

É certo que, inexistindo a repressão externa, a interna muito se enfraquece.

Mas como impedir que nossos filhos sejam "passados para trás" em terapias, escolas, igrejas? Ou, no futuro, no emprego, nos negócios, na política?

O ensino e a prática dos Direitos Humanos e da cidadania são ainda tão incipientes, que permanecemos alvos fáceis. Mas qualquer pai e mãe podem ensinar seus filhos a dizerem não, a valorizarem sua posição autêntica, a informarem-se para se posicionarem e a posicionarem-se por se informarem antes de decidirem por sua própria cabeça. A não serem injusta e indevidamente manipulados, mesmo quando seduzidos ou pressionados. O mercado de consumo, que apregoa desavergonhadamente que "compra é impulso", certamente não apoiará tal mudança. Nem os grupos que se servem da ignorância e da desinformação, para seduzir ou intimidar populações ignorantes, enquanto se mantêm no poder.

O temor excessivo e o respeito em demasia pelas "figuras de autoridade" podem por um jovem mais a mercê que outros, aos abusos de alguém que se investe de autoridade.

Os terapeutas, ao contrário dos padres, não devem entender-se imunes às dúvidas e inquietações - não se podem escudar na palavra de Deus, ou nos ensinamentos religiosos.

Não devem os terapeutas atribuir as dúvidas e inquietações dos pacientes, tão somente à "resistência" psicológica ao tratamento, ou seja, a um defeito na vontade dos pacientes de se curarem, que tenta fazê-los crer que, ao insistirem em suas dúvidas e inquietações, tornam-se os principais responsáveis por ainda necessitarem de tratamento.

Paradoxalmente, tal como nas religiões, muitos terapeutas instigam em seus pacientes a idéia de que é preciso “crer para ver” - e levar pacientes a cegas concessões, tal como crentes diante de um sacerdote que fala “em nome de Deus”.

Excesso de poder de um só lado de uma relação pode tornar bastante difícil a tarefa de se controlarem instintos suficientemente fortes e insatisfeitos no lado mais poderoso. Incluam-se aí todas as situações de assédio sexual - não só por terapeutas e religiosos.

Fortalecer o lado tradicionalmente mais fraco através da lei e da justiça, mas também através da formação do caráter - informando-lhes das "coisas do mundo", preparando-os para que as enfrentem com destemor, segurança e serenidade; ensinando-os a serem menos obedientes e mais inconformados, a respeitarem e lutarem por justiça. Parece ser esta uma boa receita para a prevenção contra os abusos, não só os sexuais, mas em geral, e não só de nossos filhos, mas de toda a sociedade.


Atenção: Apenas inspirado na ampla divulgação na mídia sobre o terapeuta e os padres acusados de suposta pedofilia, o primeiro supostamente administrando sedativos-amnesiante sem consentimento informado prévio, antes de supostamente abusar sexualmente dos clientes, em 3/2002. As afirmações não são relacionadas especificamente aos protagonistas do noticiário nem se lhes incluem especificamente como objetos de reflexão: apenas inspiram-se no estímulo da mídia, e teorizam sobre o fenômeno, não sobre as pessoas, caso a mídia traduza a verdade sobre os fatos.

¹ Este texto foi originalmente publicado no fórum de direito da criança e adolescente e catalogado como “pergunta” em http://jus.com.br/forum/18459/pedofilia-eugenio-e-os-padres em   28/03/2002 19:19. Devido à aparente originalidade e persistente atualidade do texto, republicamo-lo agora na forma de artigo.

Sobre o autor
Sander Fridman

Psiquiatra Forense titulado pelo Departamento de Psiquiatria Legal da Associação Brasileira de Psiquiatria; Doutorando em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ, Laboratório de Mapeamento Cerebral e Integração Sensório-Motora.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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