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Paternidade socioafetiva: direitos dos filhos de criação

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Agenda 18/05/2015 às 13:13

3. PRINCÍPIOS JURÍDICOS DO DIREITO DE FAMÍLIA

As divisões que fazemos no direito possuem razões metodológicas, visando facilitar seu estudo e sua sistematização, pois a verdade é que o direito é e deve ser encarado como um todo harmônico. Essa realidade é ainda mais verdadeira quando se trata de estudar princípios, pois possuem como um de seus atributos a irradiação de seus efeitos para todas as searas do conhecimento jurídico.

No que tange o Direito de Família, não se olvidando da observação anterior, é possível distinguir princípios gerais que lhe são aplicáveis e princípios que lhe são específicos. Essa divisão é sugerida pelos doutrinadores Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona20. Então, apesar de não existir unanimidade acerca de quais são os princípios aplicáveis ou mesmo os específicos do Direito de Família, trataremos daqueles cuja aceitação é mais ampla.

Assim, dentre os gerais, citaremos os Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e o da Igualdade. Quanto aos específicos, abordaremos os Princípios da Solidariedade Familiar; o da Proteção Integral a Crianças, Adolescentes e Idosos; o da Afetividade e o da Boa-Fé nas Relações Familiares.

3.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A dignidade da pessoa humana foi eleita como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal e é, sem dúvida, o mais importante princípio de nosso ordenamento jurídico.

Todos os princípios próprios do direito de família são, em última análise, desdobramentos desse. Isso é facilmente constatado no princípio da paternidade responsável, no da solidariedade familiar, bem como no da proteção a idosos, crianças e adolescentes.

O ilustre doutrinador Rolf Madaleno21, em seu Curso de Direito de Família, pontua a especial importância desse princípio para o ramo jurídico aqui estudado:

O Direito de Família tem a sua estrutura de base no princípio absoluto da dignidade humana e deste modo promove a sua ligação com todas as outras normas ainda em vigorosa conexão com o direito familista, pois configurando um único sistema e um único propósito, que está em assegurar a comunhão plena de vida, e não só dos cônjuges, dos unidos estavelmente, mas de cada integrante da sociedade familiar.

O STJ aplica amplamente esse princípio como fundamento de seus julgamentos. É o que se pode observar da ementa que segue:

PROCESSO CIVIL. DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE GUARDA DE MENOR AJUIZADA PERANTE O JUÍZO DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE JOINVILLE-SC, SUSCITANTE. PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS DEDUZIDO PELO CONSELHO TUTELAR PERANTE O JUÍZO DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE CACHOEIRA PAULISTA-SP, SUSCITADO. PEDIDO DE GUARDA PROVISÓRIA DEFERIDO. DOUTRINA JURÍDICA DA PROTEÇÃO INTEGRAL. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA SOLIDARIEDADE E DA BUSCA DA FELICIDADE. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITANTE. (...) o Poder Judiciário, em um ato surpreendente, determina a busca e apreensão de um ser humano com menos de cem dias de vida, arrancando-o do convívio de amor, carinho e afeição, para jogá-lo em um abrigo de menores, onde, sabemos todos, a esperança nos olhos de tantas crianças, de ter uma família, já nasce morta. - Incumbe, ao Poder Judiciário, com um olhar humano e sensível, defender o lado da esperança na sua expressão mais pura, acenando com a real perspectiva de um futuro mais digno àqueles que estão nascendo sem reais expectativas de consolidação de seus direitos mais básicos. - Por isso, com base no melhor interesse da criança, considerando que os autores são os detentores da guarda provisória do menor, bem como, atenta às peculiaridades da lide, em que os genitores não demonstram ostentar condições para cuidar do infante, e, sobretudo, considerando os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da busca da felicidade, deve ser fixada a competência do Juízo suscitante, para o julgamento das ações que envolvem os interesses do menor, o qual deve ser imediatamente entregue ao casal detentor da guarda. (...)22.

Enfim, ressalte-se ainda que, para o Direito de Família, ganha especial relevância a questão da “despatrimonialização”23 do direito – que é umbilicalmente ligada à concretização do Princípio da Dignidade Humana –, a partir do reconhecimento de que os bens e direitos patrimoniais deixam de ser o fim do ordenamento jurídico e passam a ser considerados apenas “(...) como meios para a realização da pessoa humana”. Esta é a lição do Professor Daniel Sarmento24.

3.2. Princípio da Igualdade

Dentre as alterações trazidas pela Constituição Federal de 1988 ao Direito de Família, é a partir da concretização do Princípio da Igualdade que se observam as principais e mais numerosas modificações.

É o caso dos filhos que, independente da origem, passaram a gozar dos mesmos direitos e deveres. Também podemos citar a igualdade entre os cônjuges, seja no tocante às questões mútuas, como também com relação aos filhos, aos bens, à colaboração financeira entre outros que foram, por fim, confirmados com o advento do atual CC.

Não poderia ser diferente, pois o Princípio da Igualdade guarda em seu conteúdo o clamor pela Justiça, não a meramente formal, mas a verdadeira, real. É, nos dizeres da Professora Maria Berenice25, “(...) um dos sustentáculos do Estado Democrático de Direito”.

Está disposto tanto no caput quanto no inciso I do artigo 5º da Constituição Federal que não haverá tratamento desigual. É certo, outrossim, que a igualdade deverá considerar as diferenças inerentes aos seres humanos, ou ainda, “(...) não podem apagar ou desconsiderar as diferenças naturais e culturais que há entre as pessoas e entidades”, como ressalta Paulo Lôbo26.

Hans Kelsen, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello27, na obra “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, trata da interpretação dessa regra/princípio:

A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devem ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível.

Não se pode olvidar, por outro lado, de que a igualdade ou a desigualdade dependem de um critério, ou seja, de um parâmetro, pois duas pessoas são iguais ou desiguais a partir de determinado ponto de vista, escolhido em face do fim almejado. É a lição de Humberto Ávila, em sua Teoria dos Princípios:

Vale dizer que a aplicação da igualdade depende de um critério diferenciador e de um fim a ser alcançado. Dessa constatação surge uma conclusão, tão importante quanto menosprezada: fins diversos levam à utilização de critérios distintos, pela singela razão de que alguns critérios são adequados à realização de determinados fins; outros, não. Mais do que isso: fins diversos conduzem a medidas diferentes de controle. Há fins e fins no Direito.

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Trata-se, portanto, de princípio de fundamental relevância para todo o sistema e, em especial, para o Direito de Família, com preponderante importância na correção que se deve fazer em face do triste histórico de menosprezo a determinados grupos e classes de pessoas, entre eles as mulheres, os idosos, as crianças, os filhos fora do casamento, entre outros.

3.3. Princípio da Solidariedade Familiar

Antes de adentrarmos nos aspectos jurídicos desse princípio, cumpre tratar do que é a “solidariedade”.

O Dicionário Michaelis28, dentre outros significados, aponta os seguintes:

Dir: Compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas pelas outras e cada uma delas por todas.

Sociol: Condição grupal resultante da comunhão de atitudes e sentimentos, de modo a constituir o grupo unidade sólida, capaz de resistir às forças exteriores e mesmo de tornar-se ainda mais firme em face da oposição vinda de fora.

Com essa explicação, é possível ter uma ideia do que significa esse princípio para o Direito de Família, ou seja, parafraseando o dicionário, em decorrência da comunhão de sentimentos, pessoas se obrigam umas pelas outras, numa unidade sólida “capaz de resistir às forças exteriores”. Há a solidariedade ligada não só à atitude de um cuidar do outro, reciprocamente, mas também aos sentimentos como a compaixão e o amor ao próximo.

Para Augusto Cury29, a solidariedade é “(...) enxergar no próximo as lágrimas nunca choradas e as angústias nunca verbalizadas.” Já a Bíblia nos relata que, quando três amigos de Jó souberam de todos os males que lhe tinham acontecido, foram ao seu encontro para consolá-lo e prestar solidariedade (Jó 2:11).

Trata-se, então, de uma simbiose de atitude e sentimento. Amar, gostar, simpatizar, apreciar, mas também ajudar, cooperar, cuidar, auxiliar, consolar. Dentro do âmbito familiar e afetivo, Rolf Madaleno30 considera que a “solidariedade é princípio e oxigênio”.

A construção de uma sociedade solidária está prevista na Constituição Federal como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (I, art. 3º, CF). Logo, se a família é a “base da sociedade” (caput, art. 226, CF), é indispensável que um dos seus pilares seja o Princípio da Solidariedade Familiar.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

O CC reflete de maneira direta esse princípio nos artigos 1.511 e 1.694, que preveem a comunhão plena de vidas e a solidariedade alimentar entre parentes, cônjuges ou companheiros.

Art. 1511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.

Em diversos outros dispositivos e regras, vê-se esse princípio permeado e irradiando efeitos.

3.4. Princípio da Proteção Integral a Crianças, Adolescentes e Idosos

Trata-se de um nítido desdobramento dos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia. Indubitável que as crianças, os adolescentes e os idosos, por conta de suas fragilidades, necessitam de proteção especial, inclusive jurídica. Não se trata de favorecimento imerecido, mas sim de desigualar os desiguais, como ensinado por Rui Barbosa, em sua Oração aos Moços.

O artigo 227 da Carta Magna impõe como dever da família (também da sociedade e do Estado) assegurar uma série de direitos fundamentais voltados a possibilitar um desenvolvimento pleno e saudável da personalidade das crianças e dos adolescentes.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Quanto aos idosos, o artigo 230 da Constituição Federal enfoca a garantia da dignidade e do bem-estar.

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Ambos os princípios foram disciplinados no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto do Idoso, além das disposições em legislações esparsas.

3.5. Princípio da Afetividade

Há unanimidade entre os doutrinadores de que o atual Direito de Família tem na afetividade sua “mola propulsora31, sua viga mestra, a lente pela qual deve ser interpretada, analisada e julgada cada situação de fato. O direito precisa acompanhar o desenvolvimento social, e hoje se vê um emaranhado de combinações familiares (matrimonial, homoafetiva, monoparental, anaparental etc.) nas quais o ponto de identificação é, justamente, o afeto.

O afeto está imiscuído em todo o Direito de Família, no reconhecimento das próprias formas de família, até na filiação, na guarda e na adoção. Além do mais, é a principal característica que diferencia os relacionamentos familiares das demais relações civis, comerciais, societárias, obrigacionais, entre outras. Rolf Madaleno32 diz o seguinte acerca do tema:

O afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana.

O objetivo deste trabalho é, justamente, analisar uma das consequências desse princípio, que é o reconhecimento da filiação em que não há laço sanguíneo, biológico, mas há o afeto.

Mas o que se entende por “afeto”? Qual seu significado? Nas palavras de Marco Túlio Carvalho Rocha33, “(...) numa doutrina que pretende tê-lo como núcleo do Direito de Família (...)”, é de esperar uma conceituação.

Esse doutrinador explica a existência de dois significados. O afeto na linguagem comum seria sinônimo para carinho, simpatia, amizade, ternura, amor. Já para a filosofia e para a psicologia, designa sentimento, emoção e paixão, tanto no que é bom (carinho, ternura etc.) quanto no que é repudiado (ódio, inveja, rancor etc.). Etimologicamente, provém do latim affectus, formado pela preposição ad (para) mais o verbo facere (fazer). Isto é, “fazer para”. Arremata o autor dizendo que é o estado de algo que sofre a influência de outro ser.

No Dicionário Michaelis34, há o seguinte significado:

afeto

a.fe.to

sm (lat affectu) 1 Sentimento de afeição ou inclinação para alguém. 2 Amizade, paixão, simpatia. adj 1 Afeiçoado. 2 Entregue ao estudo, ao exame ou à decisão de alguém: Essa função está afeta à Assembléia.

Pois bem, se estamos tratando da significação do “afeto” dentro de uma discussão jurídica, é certo que devemos nos guiar pelos nortes e caminhos oferecidos pela ciência jurídica. Assim, considerando que o maior e mais importante princípio jurídico de nosso ordenamento é o da Dignidade da Pessoa Humana, então por afeto devemos considerar aquilo que seja coerente com esse princípio.

Portanto, por afeto devemos considerar aquilo que expressa e exalta a dignidade humana, como o companheirismo, o amor, a ternura, o carinho, e, aproveitando a etimologia da palavra, que todos esses sentimentos sejam um “fazer para”, não ficando apenas no interior, mas sendo expressos e externados, com o objetivo de influenciar (positivamente) o pleno desenvolvimento da pessoa humana.

Paulo Lôbo35 explica que “(...) a afetividade não se confunde com o fato psicológico ou anímico do afeto, pois aquela, diferentemente deste, é um dever-ser e não apenas um ser”. Arremata o autor que a “afetividade é um dever jurídico”. A afetividade é usada como critério e é considerada e também referida em várias disposições legais, entre elas: no Estatuto da Criança e do Adolescente – parágrafo 3º do artigo 28; parágrafo único do artigo 25; parágrafo 4º do art. 42. e incisos II e III do parágrafo 13 do artigo 50. No atual CC, parágrafo quinto do artigo 1.584.

Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.

Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.

Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.

(...)

§ 3º Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as consequências decorrentes da medida.

Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil.

(...)

§ 4º Os divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros podem adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com aquele não detentor da guarda, que justifiquem a excepcionalidade da concessão.

Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção.

§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando:

II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;

III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237. ou 238 desta Lei.

Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:

§ 5º Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade.

Enfim, mesmo onde o Princípio da Afetividade não é explicitamente citado, percebe-se que está presente em vários temas do Direito de Família, principalmente nos assuntos de filiação, de constituição de família e na guarda dos filhos.

3.6. Princípio da Boa-Fé nas Relações Familiares

O atual CC traz, como um de seus pilares, a eticidade, de modo que doravante todas as normas e temas devem ser interpretados sob a ótica da boa-fé objetiva, da ética, da lealdade. Isso certamente representa uma grande evolução em vista do caráter eminentemente patrimonialista e individualista do CC de 1916.

O artigo 113 determina que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé (...)”. Já o artigo 187 esclarece que “(...) comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

A aplicabilidade desses dispositivos às relações jurídicas do Direito de Família é vista sem qualquer dificuldade pelo eminente doutrinador Flávio Tartuce:

Não encontramos qualquer óbice legal em aplicar os arts. 113. e 187 do novo Código Civil já que se trata de dispositivos genéricos, constantes da Parte Geral da codificação, no capítulo que regulamenta os negócios jurídicos36.

Além do que, seria incoerente aplicar o princípio da boa-fé objetiva a todas as searas do direito privado, excluindo apenas o Direito de Família que, conforme reconhecido pela Constituição Federal, é um dos pilares de maior importância da sociedade, sua célula mater. Poder-se-ia dizer até que melhor seria deixar de aplicar a boa-fé objetiva ao campo contratual do que à seara familiar, dados os nefastos efeitos que em médio e em longo prazos sua inaplicabilidade causaria na sociedade.

Em vários dispositivos do CC, é possível confirmar a aplicação desse princípio às relações familiares: (1) fidelidade; (2) respeito e consideração mútuos; (3) nas regras do casamento anulável; (4) no dever de indenizar, no caso de rompimento abusivo/injustificável de noivado; (5) união estável putativa; (6) no reconhecimento de filhos etc.

No que diz respeito ao tema deste texto, da filiação socioafetiva, a boa-fé objetiva deve ser efetivamente buscada e evidenciada, mesmo porque é inadmissível que alguém seja tratado como filho, receba um lar, educação, respeito, alimento e, em escondido, esteja na verdade apenas buscando um futuro reconhecimento de filiação, provavelmente com algum interesse patrimonial.

Certamente que não é prova fácil de ser apresentada, por isso deve ser presumida a boa-fé, mesmo porque a má-fé normalmente “salta aos olhos” processuais, hipótese em que o julgador deve enfaticamente rejeitá-la e censurá-la.

3.7. Direitos fundamentais nas relações familiares

A partir do reconhecimento de que os direitos fundamentais não estão adstritos apenas ao artigo 5º da Carta Magna, é possível buscá-lo em todo o texto constitucional, mas com a ressalva de Carl Schmitt37, citado por Marco Túlio de Carvalho Rocha38, o qual explica que “(...) somente poderiam ser considerados direitos fundamentais aqueles que, por sua importância, devessem ser considerados anteriores ao próprio Estado”.

O mesmo autor germânico ainda explica que a família, por si só, não possui direitos fundamentais, pois estes são previstos para proteger os indivíduos. À família há uma garantia institucional prevista no artigo 226 de nossa Carta Magna:

Dentro do Estado não pode haver direitos fundamentais de uma comunidade, natural ou organizada; nestes chamados direitos fundamentais há uma garantia institucional. A família, como tal, não tem nenhum direito fundamental em sentido autêntico, e muito menos um seu membro como tal. Só pode ser constitucionalmente protegida como instituição39.

São vários os direitos dessa categoria, ou seja, voltados a proteger as pessoas, individualmente consideradas: (1) direito à igualdade; (2) direito à vida; (3) direito à liberdade; (4) direito de resposta e à indenização; (5) liberdade de consciência e crença; (6) inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem; (7) inviolabilidade do sigilo da correspondência e de todos os meios de comunicação – e-mails, mensagens de texto etc.; (8) liberdade para o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão; (9) direito de herança; (10) o exercício em igualdade dos direitos e deveres da sociedade conjugal, entre outros.

Todos esses direitos são passíveis de irradiar seus efeitos nas relações entre os familiares. Os filhos podem alegar que há tratamento desigual e pedir a correção disso. Um cônjuge pode escolher, livremente, a crença que seguirá. Os familiares podem, no máximo, influenciar a profissão a ser escolhida, mas não obrigá-la.

É certo que, em alguns momentos, haverá o que se costuma chamar “colisão de direitos fundamentais”, em que duas partes, ou dois familiares, aleguem estarem sendo preteridos em suas garantias fundamentais. Então, nesses casos a técnica aplicada para resolver o conflito é conhecida como ponderação, em que é feito um balanço valorativo entre os direitos “ameaçados” e aquilo que estão a tutelar para então decidir qual, naquele caso específico, deve ter preponderância, porém sem que implique eliminar o outro. Trata-se, apenas, de flexibilizá-lo para fortalecê-lo.

Um cônjuge desrespeita o direito ao sigilo da correspondência e encontra em sua “caixa” de e-mail fotos ou informações que invadam sua mais profunda intimidade e sua honra. Há dois direitos fundamentais em “cena”, e é uma situação comum nos litígios familiares.

No texto de Jane Reis Gonçalves Pereira40, inserta na obra organizada pelo professor Luís Roberto Barroso, há ainda dois exemplos de colisão de direitos fundamentais na área de família: “(...) quais os poderes de sancionamento que os pais podem exercer sobre os filhos menores” e “se é legítima cláusula testamentária que estabeleça que o direito de herança não poderá ser exercido caso o herdeiro se case com uma israelita”.

A professora Maria Berenice Dias41 assim trata o tema:

A partir do transbordamento dos princípios constitucionais para todos os ramos do direito, passou-se a enfrentar o problema do conflito de princípios ou colisão de direitos fundamentais. Nessas hipóteses – que não são raras, principalmente em sede de direito das famílias –, é mister invocar o princípio da proporcionalidade, que prepondera sobre o princípio da estrita legalidade. Não cabe a simples anulação de um princípio para a total observância do outro. É preciso preservar, tanto quanto possível, as garantias momentaneamente antagônicas, sem privar qualquer delas de sua substância elementar. Quando dois princípios incidem sobre um determinado fato, o conflito é solucionado levando-se em consideração o peso relativo de cada um. Há ponderação entre os princípios de igual importância hierárquica, o fiel da balança, a medida de ponderação, o objetivo a ser alcançado já está determinado, a priori, em favor do princípio, hoje absoluto, da dignidade da pessoa humana.

São questões da mais alta relevância e que diante da falta ou da insuficiência de uma normatização infraconstitucional acabam por se apresentar aos julgadores que precisam lançar mão de conceitos indeterminados e, a partir da tábua de valores constitucionais, resolverem a lide.

Sobre o autor
Henrique Lima

HENRIQUE LIMA. Advogado (www.henriquelima.com.br). Mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e pós-graduado em Direito Constitucional, Civil, do Consumidor, do Trabalho e de Família. Autor de livros e artigos, jurídicos e sobre temas diversos. Membro da Comissão Nacional de Direito do Consumidor do Conselho Federal da OAB (2019/2021). Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5217644664058408

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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