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A legitimidade ativa da pessoa jurídica no habeas corpus

Agenda 31/05/2015 às 14:36

O habeas corpus é um sucedâneo recursal usado largamente para a proteção da liberdade de locomoção. Mas seria esta a via adequada para evitar violação dos direitos da pessoa jurídica?

I – A PESSOA JURÍDICA E SUA LEGITIMIDADE PARA AJUIZAR  HABEAS CORPUS

Denomina-se  impetrante aquele que ajuíza a ação de habeas corpus, e paciente a pessoa em favor de quem a ordem é solicitada, podendo, numa só pessoa, haver a concentração das duas figuras jurídicas.

Pontes de Miranda[1] somente admite como impetrante do habeas corpus a pessoa física.

Digo isso porque qualquer pessoa, física ou jurídica, nacional ou estrangeira, pode impetrar habeas corpus, seja em seu próprio benefício, seja em favor de outrem, independente de possuir habilitação técnica pra tanto. É o que dispõe o artigo 654 do Código de Processo Penal onde se lê que o habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público.

Dir-se-á, inclusive, que o direito constitucional de impetrar habeas corpus é atributo da personalidade e que,  quando se tratar de impetração em favor de terceiro, há caso de substituição processual.

Tal é a investidura do habeas corpus como ação popular constitucional, que o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) reconhece a importância desse remédio constitucional, estabelecendo que não se inclui na atividade privativa da advocacia a impetração do habeas corpus em qualquer instância ou tribunal.

Já se entendeu que, sendo o habeas corpus remédio processual que visa proteger o ir e vir de pessoa física, não poderia a pessoa jurídica impetrá-lo em seu favor.[2]

Por outro lado, considerou a jurisprudência que a pessoa jurídica poderia impetrar habeas corpus a favor de uma pessoa ou funcionário.[3]

Fico com a posição de Eduardo Espínola Filho[4] para quem o habeas corpus pode ser impetrado tanto pela pessoa jurídica em favor de pessoa natural, cuja soltura, em muitos casos, interessa diretamente àquela; como em casos de prisão, ou ameaça de diretor, sócio, associado, confrade, por exemplo.

Júlio Fabbrini Mirabete[5] é peremptório ao aduzir que não há impedimento que pessoa jurídica impetre habeas corpus em favor de quem está submetido a constrangimento ilegal da liberdade de locomoção, uma vez que o artigo 654 do Código de Processo Penal faz referência a qualquer pessoa, compreendendo-se inclusive aquela.

No mesmo sentido, conclui Guilherme de Souza Nucci[6], para quem qualquer pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira, pode impetrar o remédio heróico em defesa da liberdade de locomoção, ir e vir.

Paulo Rangel[7] faz uma excelente abordagem sobre a possibilidade de legitimação da pessoa jurídica no habeas corpus. Diz ele que a resposta é afirmativa:

a) A uma, porque o legislador não restringiu e, onde a lei não restringe, não cabe ao intérprete restringir;

b) A duas, porque tratando-se de regra concessiva de direito, é admissível a interpretação extensiva e analógica;

c) A três, porque, por força do artigo 12, VI, do Código de Processo Civil, as pessoas jurídicas podem ser representadas em juízo, por seus diretores ou quem os estatutos indicarem.

Magalhães Noronha[8] diz que, caso seja presente a violência consumada ou iminente, qualquer pessoa é guardião da lei e defensor da liberdade, seja ou não capaz. Assim, pode requerê-lo o menor, o surdo-mudo, o interditando etc., independente de autorização do pai ou curador. E arremata, aduzindo que não há  nenhum impedimento para a impetração pela pessoa jurídica, trazendo, como exemplo, julgamento de 17 de dezembro de 1964, das Câmaras Conjuntas do Tribunal de Alçada de São Paulo, no HC 49.743, em que foi Relator o Ministro Azevedo Franceschini, quando se disse que a pessoa jurídica (na hipótese, uma Fundação) tinha legitimidade processual ativa para impetrar habeas corpus em favor de um Diretor ameaçado de coação ilegal.

A decisão se concilia com outra do Tribunal de Justiça de São Paulo, no RHC 27.125-3, Relator Desembargador Cunha Camargo.[9]

No julgamento do HC 79.535 – MS, Relator Ministro Mauricio Corrêa, DJ de 20 de dezembro de 1999, foi reconhecida a legitimidade das pessoas jurídicas para impetrar habeas corpus em favor de pessoas físicas, sobretudo, pelos fins a que se destina, seja porque tais pessoas estão expressamente autorizadas a fazê-lo, do que se lê do artigo 654 do Código de Processo Penal e artigo 189, I, do Regimento Interno do STF.

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Em verdade, como bem disse o Desembargador Geraldo Apoliano, no julgamento do HC 223 – CE, DJ 27/11/1992, Tribunal Regional Federal da 5ª Região,  a expressão qualquer pessoa, do que se lê no artigo 654 do Código de Processo Penal, deve ser entendida em sentido amplo, alcançando a pessoa física ou a jurídica.

A matéria foi discutida pelo Superior Tribunal de Justiça, no RHC 3.716 – 4/PR[10], Relator Jesus Costa Lima, quando se entendeu possível a impetração de habeas corpus por pessoa jurídica em favor de um de seus sócios, uma vez que não se deve antepor restrições a uma ação cujo escopo fundamental é preservar a liberdade do cidadão contra quaisquer ilegalidades ou abusos de poder.

 Cediço é o entendimento de que a legitimidade ativa do habeas corpus, uma verdadeira garantia constitucional (artigo 5º, LXVIII), é ampla. Assim qualquer pessoa, seja física ou jurídica, ciente da liberdade de locomoção de alguém, pode mover esta ação constitucional.

A pessoa jurídica pode impetrar ordem de habeas corpus, objetivando sentença mandamental concessiva, em favor de qualquer pessoa física e, em especial, daqueles que integrarem seus quadros.

II – A PESSOA JURIDICA COMO PACIENTE E IMPETRANTE EM HABEAS CORPUS: OS CRIMES AMBIENTAIS

Vem a pergunta: Pode pessoa jurídica, em caso de acusação por crime ambiental, impetrar habeas corpus, em matéria em que é paciente?

Para Pontes de Miranda[11], a pessoa jurídica não pode ser paciente, pois o habeas corpus protege, direta ou indiretamente, a liberdade de locomoção, o que não lhe diz respeito.

Guilherme de Souza Nucci[12] bem argumenta que, com a edição da Lei 9.605/98, Lei de Crimes Ambientais, prevendo a possibilidade de ser a pessoa jurídica autora de crime ambiental no Brasil, pode surgir uma situação de constrangimento ilegal que a atinja, como é o caso de ação penal ajuizada sem justa causa, onde seria hipótese de trancamento, via habeas corpus. Disse ele que, à falta de recurso próprio contra o recebimento da denúncia, poder-se-ia pensar na impetração de mandado de segurança, que é instrumento constitucional para coibir ilegalidades ou abuso de poder não amparados por habeas corpus, como se lê do artigo 5º, LXIX, da Constituição Federal, diante de um direito líquido e certo, que a leve a trancar a ação penal e não ser processada arbitrariamente.

Acrescento que o recurso em sentido estrito, remédio recursal próprio de decisões interlocutórias simples e mistas, não se presta a resolver o caso, uma vez que lhe faltaria o efeito suspensivo, próprio dos recursos de agravo. Ora, diante do evidente de risco de dano irreparável e da ilegalidade, seria caso de ajuizar o mandado de segurança. Afinal, o recurso em sentido estrito, da forma como está no Código de Processo Penal, requer respeito ao elenco inscrito no artigo 581 do Código de Processo Penal. Ora, se a denúncia é recebida e é caso de absolvição sumária, a teor do artigo 397 do Código de Processo Penal, pensa-se no remédio heróico do habeas corpus, sem contar que a matéria trata de uma exceção de pré-cognição.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 92.921 – 4/BA, 19 de agosto de 2008,  em que funcionou como Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, em que foi um dos pacientes a empresa Cortume Campelo S/A e impetrante a mesma pessoa jurídica, enfrentou a matéria.

 Tratava-se de writ ajuizado em face de decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que denegou ordem de habeas corpus sob a justificativa de que o trancamento da ação penal por essa via processual somente seria cabível quando se manifestasse a atipicidade de conduta, a extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria e prova da materialidade, o que, para o caso, entendeu que não se verificava.

O Ministro Lewandowski traz importantes ilações sobre o caso:

a) a responsabilidade penal da pessoa jurídica, para ser aplicada, exige alargamento de alguns conceitos tradicionalmente empregados na seara criminal, a exemplo da culpabilidade, estendendo-se a elas também as medidas assecuratórias, como o habeas corpus;

b) writ que deve ser havido como instrumento hábil para proteger pessoa jurídica contra ilegalidades ou abuso de poder quando figurar ainda como ré em ação penal que apura a prática de delitos ambientais, para os quais é cominada pena privativa de liberdade;

c) por certo, em crimes societários, a denúncia deve pormenorizar a ação dos denunciados no quanto possível. Não impede a ampla defesa, entretanto, quando se evidencia o vínculo dos denunciados com a ação da empresa denunciada.

O ministro Lewandowski restou vencido no caso, após ter concedido liminar para a suspensão da ação penal, que corria perante a primeira instância, até julgamento do habeas corpus e, ao final, a concessão de ordem definitiva para seu trancamento. Para ele, havia  falta de aparelhamento do sistema penal para receber a responsabilidade penal da pessoa jurídica, concluindo por afirmar inviável processar criminalmente pessoa jurídica sem que haja um microssistema próprio para tanto. Assim, enquanto não forem criadas normas penais e processuais penais específicas para a responsabilidade de pessoa jurídica, não pode ela  figurar no polo passivo da ação penal.

Argumentou que a pessoa jurídica pode figurar como paciente em habeas corpus, conjuntamente com pessoa física, uma vez que o artigo 3º da Lei 9.605/98 determina ser necessária a dupla imputação, envolvendo a responsabilização simultânea da pessoa jurídica com a pessoa física que realizou ou determinou a realização do ato. Sendo as pessoas física e jurídica rés em um mesmo processo-crime, podem também as duas figurarem, conjuntamente, como pacientes em habeas corpus, que abarcaria os efeitos reflexos, que recairão sobre pessoa física, decorrentes de sua imputação em ação penal. 

Porém, realço que o Ministro Marco Aurélio se posicionou contrariamente à possibilidade de se conceder habeas corpus para a pessoa jurídica, pois o remédio heróico tutela, de forma exclusiva, a liberdade de locomoção e a Lei de Crimes Ambientais não coloca em risco essa liberdade. Para ele, para impedir que sanções penais recaiam sobre a esfera de direito das pessoas jurídicas, a via apropriada seria recurso. Ao final, ao contestar a possibilidade de imputação reflexa, entende que a via adequada para tutelar direito de pessoa jurídica envolvida em ação penal instaurada, flagrantemente, sem justa causa é o mandado de segurança.

O Ministro Marco Aurélio foi acompanhado pelos Ministros Menezes Direito e Cármen Lúcia. 

A matéria não me parece tranquila.

Digo isso porque o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 628.582 AgR/RS, Relator Ministro Dias Toffoli, 6 de setembro de 2011[13], entendeu que é possível a condenação de pessoa jurídica pela prática de crime ambiental, ainda que haja absolvição da pessoa física relativamente ao mesmo delito. Assim, seria possível a continuidade de ação penal em relação à  pessoa jurídica, mesmo que a pessoa física fosse absolvida.  

Tal entendimento conflita com entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no RMS 16.696[14], que reconheceu que, na hipótese em que fosse excluída a imputação em relação aos dirigentes responsáveis pelas condutas incriminadas, o trancamento da ação penal seria, a rigor, no que concerne à pessoa jurídica. E se não houvesse tal trancamento? O caminho, sem dúvida, diante da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é a pessoa jurídica ajuizar mandado de segurança na defesa de seu direito líquido e certo.   


[1] PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. História e prática do habeas corpus, Borsoi, pág. 443.

[2] RT 569/393 e 561:367.

[3] RT 598:322.

[4] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo.Código de processo penal anotado, volume III, Borsoi, pág. 08.

[5] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo penal, 1992, ed. Atlas, pág. 678.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado, 2011, ed. RT, pág. 1130.

[7] RANGEL, Paulo. Direito processual penal, São Paulo, 2012, Atlas, pág. 1032.

[8] NORONHA, E.Magalhães. Curso de direito processual penal, 1979, ed. Saraiva, pág. 410 e 411.

[9] RT 598/322.

[10] LEXSTJ vol. 65, pág. 460.

[11] Obra citada, pág. 371.

[12] Obra citada, pág. 1.130.

[13] Informativo 639/2011. 

[14] Sexta Turma, DJ de 13 de março de 2006. 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A legitimidade ativa da pessoa jurídica no habeas corpus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4351, 31 mai. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39605. Acesso em: 22 nov. 2024.

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