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Internet e uma nova interpretação do delito de vilipêndio a cadáver.

Agenda 16/05/2017 às 15:00

A publicação de conteúdos relacionados com morte cada vez mais ganha espaço na rede, sem que tal prática receba o adequado debate constitucional e criminal. Buscamos debater a casuística frente ao delito de vilipêndio a cadáver.

Na Faculdade de Direito, estudamos muito rapidamente o delito de vilipêndio a cadáver. Nos livros, também verificam-se apenas velozes passagens – até pouco interessantes - por não ser tipo penal de reiterada (ou divulgada) prática em nossa sociedade atual.

Afinal de contas, é necessário mais do que apenas intenção para vilipendiar um cadáver: é preciso também coragem, visto que o corpo sem vida para muitos é um tabu.

Ocorre que nos parece que a rede mundial de computadores deu outro sentido ao delito, fazendo-o renascer com muita força. Mas parece que poucos notaram esse ressurgimento potencializado, talvez pelo viés indevidamente restrito com que estudamos o tipo. 

Sobram debates, porém.

Inicialmente, observemos o tipo em si: “Art. 212 - Vilipendiar cadáver ou suas cinzas: Pena - detenção, de um a três anos, e multa”.

Apesar de a legislação dever ser escrita para o povo compreender, o verbo apresentado pouco significado tem até para um leitor mais estudado, opondo-se, pois, a ideia de que in claris cessat interpretatio. Necessário, pois, buscar-se o significado do delito nos intérpretes.

DE PLACIDO E SILVA, analisando etimologicamente o núcleo do tipo, aponta que o verbo “vilipendiar” significa praticar gesto ou ato com a intenção de desprezo, pouco caso, menoscabo ou conspurcação .

O objetivo do agente seria profanar o morto, pois, com gestos desprezíveis, atos indecorosos e/ou palavras ultrajantes. É ato de manchar a imagem da pessoa falecida através de seu corpo, desonrando-a.

PAULO JOSÉ DA COSTA JUNIOR aponta que são circunstâncias que configuram o tipo aqueles ato materiais como defecar sobre o cadáver, tirar-lhes as vestes, praticar atos de necrofilia, entre outros . VICTOR EDUARDO RIOS GONÇALVES acrescenta a necessidade de presença do cadáver ou cinzas e soma aos exemplos o xingamento, a gargalhada apontando para o falecido , cuspir sobre o corpo, desarrumar-lhe a roupa ou os cabelos, chutar o corpo morto, colocar fruta na boca para retratar um leitão, urinar sobre as cinzas, etc .

NUCCI defende que a conduta pode ser praticada por gestos e palavras, inclusive na forma escrita, o que entendemos poder ocorrer em situações em que, por exemplo, um papel com dizeres ofensivos é colocado por sobre o corpo inanimado. Nesse sentido, a inexistência do delito de injúria ou difamação de mortos manteria coerência com o sistema, posto que sua memória permaneceria com proteção jurídica, na forma do bem jurídico sentimento de respeito à memória dos mortos.

A doutrina não aborda sobre a necessidade de o corpo guardar ainda as características físicas do indivíduo falecido, o que nos faz entender que o desrespeito se dá de modo ideológico e não material. NORONHA apresenta que não só corpo e cinzas, mas também o esqueleto poderia ser objeto de vilipêndio. No mesmo sentido, partes do corpo como bem retratado por BITENCOURT.

O sujeito passivo do delito é a coletividade e os familiares e amigos . Portanto trata-se de crime de ação penal pública incondicionada. Isso, a priori, nos faz crer que não é necessário conhecimento do agente em relação à imagem ou reputação do sujeito, quando vivo. Bastaria que a memória do morto genericamente considerada seja intencionalmente aviltada e o tipo penal estaria preenchido, sendo igualmente considerado o escarro sobre o corpo de um morto qualquer ou sobre um cadáver que tivesse sido inimigo do agente.

Não nos parece clara na doutrina a necessidade de o ato chegar a conhecimento de terceiros. Porém, com base no princípio da ofensividade, apenas se pode concluir pela violação do bem jurídico “sentimento de respeito à memória” quando terceiros identificarem o ato de vilipêndio do agente e tiverem, assim, o sentimento violado.

Neste momento chamamos a atenção para um fenômeno bastante crescente na Internet, que nos parece não ter tido ainda a devida atenção da doutrina e guarda total relação com o delito em comento: a existência de sites que divulgam vídeos de acidentes de trânsito, necrópsias, acidentes de trabalho, assassinatos, suicídios, catástrofes, tragédias, deformações, cirurgias, brigas, linchamentos e flagras policiais. Nesse sentido, www.theync.com, www.vidmax.com, www.rotten.com e tantos outros. Um caso emblemático no Brasil foi o vazamento das fotos e vídeos da necrópsia do cantor sertanejo Cristiano Araújo, com debate sobre o impacto disso no Direito do Trabalho (http://noticias.band.uol.com.br/cidades/noticia/100000758326/hospital-vai-investigar-vazamento-de-fotos-de-cristiano-araujo-.html) 

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Em linhas gerais, os vídeos tratam de flagrantes de situações calamitosas em que alguém tem seu corpo ou parte dele destruído e encontra-se em situação de morte ou agonia. Para fins deste artigo, consideraremos apenas situações de óbito . O cinegrafista passeia pelo local e demonstra os destroços eventuais, órgãos espalhados, ossos esmigalhados, faces em desespero, e assim por diante. Não raro ouve-se expressões e risos sobre o estado da vítima.

Por certo, veículos de comunicação tradicionais não têm interesse e nem poderiam eticamente divulgar vídeos com tal nível de detalhe e horror. Mas o ser humano é curioso por natureza e a Trainwreck Syndrome (ou síndrome da curiosidade mórbida) é algo presente na sociedade. Assim, sites especializados surgem e ganham dinheiro explorando tal viés, estimulando pessoas a gravarem e enviarem vídeos altamente chocantes e altamente violentos.

Aqueles que enviam tais mídias podem ser remunerados ou podem ganhar reputação na rede. Em todo o caso o envio tem finalidade de gerar vantagem ao cinegrafista.

Seriam tais vídeos situações de vilipêndio a cadáveres? Estará a Internet servindo de estímulo para o desprezo à morte e desrespeito ao morto tragicamente?

É preciso considerar o que faz parte da memória de qualquer indivíduo para então verificar se há a conduta. As realizações de um cidadão, sua reputação, sua imagem perante a sociedade, certamente tudo isso faz parte de sua memória e a forma como era enxergado por sua personalidade construída. Mas também integra sua memória a identidade visual humana; a aparência faz parte de como somos e seremos lembrados.

Por isso, ao se filmar uma pessoa em pedaços, com seus intestinos pela estrada, olhos fora das órbitas e ossos esmigalhados, o cinegrafista arrisca ser responsabilizado pelo vilipêndio àquele cadáver por macular a imagem do falecido. Ainda que não seja intenção direta daquele que filma, é possível que a intenção egoística de ter lucros com a publicação da imagem deteriore a memória do morto e isso seja de conhecimento do agente, que, agindo em dolo eventual – ou até mesmo dolo indireto -, remeta a mídia para o site.

Como se trata de delito de forma livre, o meio informático pode certamente ser utilizado para o menosprezo ao cadáver retratado, pois, violando o sentimento. Mais: por ser meio de potencialização enorme de resultados, o dano cometido pode ser ainda mais grave e alastrado causando lesão em níveis altíssimos. Some-se a isso a questão da não regulamentação do direito de esquecimento na rede (e a dificuldade da justiça brasileira em conseguir retirar do ar conteúdos hospedados fora do país) e se está diante de um vilipêndio de características perenes.

Todos aqueles que divulgam, compartilham e impulsionam tais vídeos, contribuiriam com a violação, na forma do art. 29 do Código Penal, potencializando o dano.

Finalmente, uma rápida reflexão constitucional. O ser humano que grava vídeos amadores de acidentes e tragédias estaria exercendo direito de informar a sociedade? O consumidor de tais vídeos, estaria acobertado pelo direito de acesso à informação constante no inciso XIV do artigo 5o da Constituição Federal?

Ainda que este não seja o mote do artigo, entendemos que toda a informação prestada e acessada deve ser analisada sob um contexto sistemático e, pois, de acordo com pesos de conveniência. Se a informação – no caso, os vídeos – pode causar terror na população, estado de medo e mal estar, se estimularia comportamentos agressivos ou ações delinquentes, não acreditamos ser adequado alegar amplo direito de informar, senão sob forte alerta de restrições de idade e de conteúdo. E mesmo assim, restrições podem ser impostas.

Uma coisa é informar a sociedade sobre um linchamento com apedrejamento, outra coisa é exibir detalhes do ato.

A informação nos parece admitir camadas de profundidade que exigem trato diferenciado.

Assim o direito à respeito da memória dos mortos parece-nos prevalecer sobre o direito de informar com qualquer profundidade, para que a lógica sistêmica se mantenha. A filmagem de uma pessoa que inclui sua perna destacada do corpo, entranhas aparentes, caixa craneana aberta, cérebro exposto parece-nos vilipendiar a memória do morto.

A mesma Constituição Federal que admite o direito à informação, também veda a submissão de alguém a tratamento degradante e garante o direito à privacidade, intimidade e imagem das pessoas. 

A morte e o corpo sem vida compõem, em nossa opinião, parte da imagem e memória do indivíduo e podem ser protegidas sem prejuízo do conhecimento da sociedade. A existência de tipo penal protetivo de tal bem jurídico pode ajudar a compor uma internet menos desgovernada e menos lesiva.

As autoridades federais, por serem competentes para apurar e julgar delitos informáticos, têm como desafio atentar a tal crescimento, especialmente pelo fato de que mais e mais brasileiros contribuem para tais sites, violando direta ou indiretamente o sentimento dos mortos, a imagem dos acidentados ou envolvidos em catástrofes, e denegrindo, inclusive, a imagem do país.

A mesma internet que contrói, destrói e assusta. Apesar de todas as dificuldades nas investigações digitais, a autoria dos vídeos fica normalmente clara nas postagens – o postador tem interesse em ser conhecido – e seria bom que a imagem de que o ambiente virtual continua descontrolado fosse relativizada, pelo menos no que se refere aos delitos que já existem desde 1890.


REFERÊNCIAS:

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, parte especial, volume 3, 4a edição, Editora Saraiva, São Paulo, 2008.

COSTA JR, Paulo José da. Curso de Direito Penal, 9a Edição Revista e Atualizada, Editora Saraiva, São Paulo, 2008. 

RIOS GONÇALVES, Victor Eduardo. Direito Penal Esquematizado. Editora Saraiva, São Paulo, 2011.

SILVA, De Placido e. Vocabulário Jurídico, volume IV. Editora Forense, São Paulo, 1967.

SYDOW, Spencer Toth. Crimes Informáticos e suas Vítimas, 2a Edição, Editora Saraiva, São Paulo, 2015.WALL, David S. Cybercrime: the Tr

Sobre o autor
Spencer Toth Sydow

Advogado, professor de graduação e pós graduação, mestre e doutor pela USP, parecerista, articulista e autor do blog LEG@L de Direito e Tecnologia da Revista EXAME. Autor da Editora Saraiva (Crimes Informáticos e suas Vítimas - 2015)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SYDOW, Spencer Toth. Internet e uma nova interpretação do delito de vilipêndio a cadáver.: A publicação da necrópsia de Cristiano Araújo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5067, 16 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40372. Acesso em: 25 nov. 2024.

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