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Responsabilidade civil pela perda indevida do tempo útil do consumidor

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Agenda 28/03/2016 às 12:40

2 FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA-FÉ OBJETIVA

O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil impactou profundamente o direito das obrigações e, por conseguinte, o contrato. Lembra-se que a relação obrigacional é o conteúdo do contrato.

O modelo clássico de contrato – praticamente imutável desde o Estado liberal até meados do século passado – baseava-se na autonomia privada, onde os interessados (formalmente iguais) possuíam plena liberdade contratual e, celebrado o negócio, este fazia lei entre as partes (pacta sunt servanda). O contrato era um átomo e só dizia respeito aos contratantes. Em resumo, o contrato clássico era um negócio jurídico bilateral ou multilateral que visava a criação, a modificação ou a extinção de direitos e deveres (entre as partes) com conteúdo patrimonial.

Atualmente, já sob a influência do Direito Civil constitucionalizado, alterou-se a percepção da relação obrigacional. O trato axiológico do instituto foi modificado, emergindo o contrato com fundo na função social e na boa-fé objetiva.

O contrato não perdeu sua relevantíssima função de suporte à circulação de riquezas e de atendimento aos interesses particulares, porém a autonomia privada deve ser mitigada, caso o negócio jurídico atente contra o solidarismo constitucional.

Cabe ao Poder Judiciário, uma vez provocado, pronunciar se as cláusulas contratuais e a própria raiz do negócio jurídico sob análise observam – para além do prisma individualista de utilidade para os contratantes – um sentido social de utilidade para a comunidade (VENOSA, 2003, p. 376).

Dessa forma, o contrato funcionalizado afasta o individualismo das partes, mitiga a autonomia privada e a pacta sunt servanda, obsta o abuso de direito e rechaça a vantagem desproporcional. Enfim, na contemporaneidade, segundo Nalin (2005, p. 255), o contrato caracteriza-se por ser uma relação intersubjetiva (entre pessoas) baseada no solidarismo constitucional e que traz efeitos existenciais e patrimoniais não somente em face das partes contratantes, mas também em relação a terceiros.

Apesar de inexistir regra constitucional expressa sobre a função social do contrato, entende-se que ela encontra sede no princípio da dignidade da pessoa humana, nos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e nos direitos fundamentais (arts. 1º, 3º e 5º da CF/88). Ademais, o fundamento legal da função social da propriedade – previsto nos arts. 5º, incisos XXII e XXIII e 170, inciso III, ambos da CF/88 – pode ser transportado sem qualquer perda para o instituto do contrato.

Não se olvide também que, o Código Civil vigente, numa leitura conforme a Constituição, dispõe expressamente que: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (art. 421); “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos” (art. 2.035, parágrafo único).

Ressalta-se que a função social do contrato reverbera efeitos tanto para dentro (eficácia interna, intersubjetiva ou intra partes) quanto para fora da entabulação (eficácia externa ou extra partes).

A eficácia interna preocupa-se com a formação do contrato, não se admitindo firmamentos que abusem da liberdade contratual – materializados, no mais das vezes, em cláusulas abusivas, extorsivas ou desproporcionais – e que neguem a igualdade material entre os partícipes contratuais, servindo de mecanismo de exploração social. Contempla ainda que, em uma relação obrigacional, para que se evite uma crise de cooperação entre as partes, estas devem ser leais uma com a outra. Traduzindo, no plano interno, o contrato funcionalizado guarda umbilical conexão com o princípio da boa-fé, da equivalência material e da dignidade da pessoa humana.

Para sedimentar a aludida eficácia intra partes, o Enunciado n. 360, aprovado na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, consignou que “o princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes”.

No que toca à eficácia externa, projetar o princípio da função social para fora do ato negocial significa estudar a interface entre a relação obrigacional e a sociedade. Nessa perspectiva, todo negócio jurídico deve respeitar os valores sociais predominantes. A autonomia privada dos contratantes deve estar em sintonia com os valores do corpo social que lhe rodeia.

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O contrato tende a gerar efeitos perante terceiros – individual ou metaindividualmente considerados, bem como condutas de terceiros podem repercutir dentro da entabulação. Diante disso, a função social trabalha como um freio à autonomia privada atravancadora da construção de uma sociedade solidária e, ao mesmo tempo, exerce uma tutela externa do crédito.

O Enunciado n. 23 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, reconhece a eficácia extra partes do contrato funcionalizado. Senão vejamos: “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”.

A respeito dos planos ou dimensões de eficácia do princípio da função social dos contratos, Rosenvald (2007, p. 12) sintetiza:

Parte dos autores que investem sobre a temática, reportam a uma bipartição da função social interna e externa dos contratos. Cláudio Luiz Bueno de Godoy, filia-se a esta corrente, enunciando que a função social atua ‘primeiro entre as partes, de maneira a assegurar contratos mais equilibrados e, assim, envolventes de partes substancialmente mais iguais, com o que se garanta uma igual dignidade social aos indivíduos’.

Em sentido complementar, há relativo consenso entre os doutrinadores acerca da função social externa do contrato, como reflexo de sua eficácia perante a comunidade, transcendendo à polarização entre as partes. Reporta-se ao diálogo de cooperação entre os contratantes e os ‘terceiros’, prevenindo-se ofensas recíprocas através da edificação de um ambiente de cooperação.

Outro vetor que limita os direitos subjetivos dos integrantes da relação obrigacional é a boa-fé objetiva. Salienta-se que o princípio da boa-fé objetiva também foi protagonista no delineamento do atual modelo contratual.

A boa-fé objetiva traça um padrão de comportamento à coletividade e, em especial, aos contratantes, a fim de que estes reservem – em suas relações jurídicas – condutas pautadas pela honestidade, lealdade e cooperação. Em poucas palavras, a boa-fé objetiva conforma um standard ético de vida (ROSENVALD, 2007, p. 12).

Anota-se que a boa-fé objetiva está intimamente relacionada aos princípios-âncora do Código Civil de 2002, a saber: princípios da eticidade, socialidade e operabilidade. A boa-fé objetiva é uma concreção do princípio da eticidade, porquanto impõe aos contratantes um agir leal e probo (condutas éticas) na consecução de qualquer ato negocial. O princípio da socialidade informa que os negócios e demais institutos civis devem ser interpretados de acordo com o contexto social e, por óbvio, a boa-fé objetiva orienta que o contrato e a conduta humana sejam temperados segundo os valores vigentes na sociedade. No mais, o princípio da operabilidade mostra que o atual Código Civil foi baseado em um sistema de cláusulas gerais e de conceitos abertos ou indeterminados, que devem ser preenchidos pelo aplicador do direito caso a caso. E a boa-fé objetiva nada mais é do que uma cláusula geral que deve ser preenchida pelos operadores do direito conforme a evolução da conduta humana.

Merece relevo o fato de que o princípio da boa-fé já estava presente no Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, inciso III), tendo esse preceito sido transposto para o Código Civil de 2002 em três artigos, quais sejam: arts. 113, 187 e 422.

A boa-fé objetiva é uma evolução do conceito de boa-fé. Afasta-se da ideia de boa-fé ligada ao plano intencional (boa-fé subjetiva) para conectá-la ao plano de conduta de lealdade dos envolvidos (boa-fé objetiva). A boa intenção negocial é insuficiente; negócios jurídicos justos demandam condutas éticas, cooperativas e leais entre as partes envolvidas.

O aprofundamento do estudo do princípio da boa-fé objetiva levou à percepção de que os atos negociais desencadeiam uma relação jurídica que pode ser comparada a um processo (administrativamente considerado), porque, além da prestação de dar, fazer ou não fazer, os contratantes assumem – conjuntamente com a obrigação principal – deveres anexos, também chamados de implícitos, colaterais, laterais ou de proteção.

Esses deveres anexos – inerentes a qualquer obrigação/contrato – determinam uma boa conduta dos participantes do firmamento. Podem, assim, ser arrolados: (i) dever de cuidado em relação à outra parte; (ii) deveres de lealdade e respeito mútuos; (iii) dever de informação; (iv) dever de colaboração ou cooperação; (v) dever de transparência; (vi) dever de confiança; (vii) dever de agir com honestidade e razoabilidade.

Com efeito, a boa-fé objetiva e os deveres anexos que ela impõe devem ser observados em todas as fases contratuais, isto é, na fase pré-contratual, contratual e pós-contratual (vide art. 422 do CC). Aliás, uníssono que a quebra dos deveres anexos em qualquer fase contratual constitui modalidade de inadimplemento. É a chamada violação positiva do contrato, que não se confunde nem com o inadimplemento absoluto nem com o relativo (mora). Acresça-se que essa espécie de inadimplemento acarreta responsabilidade civil independentemente de culpa (responsabilidade objetiva). Nesse particular, preciso o Enunciado n. 24 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.

Noutro viés, pondera-se que a boa-fé objetiva exerce três importantes funções no Código Civil de 2002. A primeira, prevista no art. 113 do CC, é a função de interpretação que ensina que os contratos devem ser interpretados da maneira mais favorável a quem esteja de boa-fé. A segunda, disposta no art. 187 do CC, é a função de controle que expressa que aquele que viola a boa-fé objetiva comete abuso de direito. Lembra-se que o abuso de direito é uma nova modalidade de ilícito e que sua prática enseja responsabilidade civil independentemente de culpa (vide Enunciado n. 37 da I Jornada de Direito Civil). A terceira, insculpida no art. 422 do CC, é a função de integração que advoga que a boa-fé objetiva deve integrar todas as fases do contrato – pré, contratual e pós-contratual (vide enunciados n. 25 e 170 da I e III Jornada de Direito Civil, respectivamente).

Costurando todas as informações acima apresentadas, Rosenvald (2007, p. 12) discorre que:

[…] a boa-fé objetiva é horizontal, concerne às relações internas dos contratantes. Ela atende ao princípio da eticidade, pois polariza e atraí a relação obrigacional ao adimplemento, deferindo aos parceiros a possibilidade de recuperar a liberdade que cederam ao início da relação obrigacional. Mediante a emanação de deveres laterais – anexos, instrumentais ou de conduta –, de cooperação, informação e proteção, os parceiros estabelecem um cenário de colaboração desde a fase pré-negocial até a etapa pós-negocial, como implicitamente decorre da atenta leitura do art. 422, do Código Civil. Dentro de sua tridimensionalidade (funções interpretativa, integrativa e corretiva), a boa-fé ainda exerce uma função de controle, modelando a autonomia privada, evitando o exercício excessivo de direitos subjetivos e potestativos, pela via do abuso do direito (art. 187, CC).

Dignas de atenção ainda são as chamadas figuras parcelares da boa-fé objetiva, que são antigos institutos do direito comparado com grande aplicação no arcabouço jurídico nacional. Como exemplos, citam-se: (i) venire contra factum proprium: vedação do comportamento contraditório; (ii) supressio: perda de um direito ou de uma posição jurídica pelo seu não exercício no tempo; (iii) surrectio: surgimento de um direito diante de práticas, usos e costumes. Esses institutos já apontavam para a função de controle a ser exercida pela boa-fé objetiva no Código Civil de 2002 (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 170).

Posto isso, dissecadas a função social do contrato e a boa-fé objetiva, não resta dúvida de que esses princípios, ao revolucionarem o direito das obrigações e dos contratos brasileiro, orientam ser abusivas as malversações dos negócios jurídicos praticadas por negligência exclusiva dos fornecedores de produtos e/ou serviços que levem à perda indevida do tempo útil do consumidor.

Sobre o autor
Alan Monteiro Gaspar

Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil: Universidade Anhanguera – Uniderp (2014/2015). Especialista em Direito Processual Civil: Universidade Anhanguera – Uniderp (2011/2012). Especialista em Direito Processual: grandes transformações: Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (2008/2009). Bacharel em Direito: Centro Universitário de Sete Lagoas – UNIFEMM (1998/2002).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASPAR, Alan Monteiro. Responsabilidade civil pela perda indevida do tempo útil do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4653, 28 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40639. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada à Universidade Anhanguera-Uniderp, Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Civil, na modalidade à distância, como requisito parcial à obtenção do grau de especialista em Direito Civil.

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