3 RESPONSABILIDADE CIVIL
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Irrefragável que a defesa da tese ora proposta perpassa pelo estudo prévio da responsabilidade civil no âmbito do direito pátrio. Assim, far-se-á uma análise do instituto evidenciando seus pressupostos e fundamentos básicos.
Pontua-se que a concepção tradicional da responsabilidade civil vem sofrendo alterações ao logo dos anos. De início, enraizada no fundamento “culpa”, mas atualmente em franca objetivação, sobretudo em virtude da influência dos fenômenos da constitucionalização do Direito Civil e da funcionalização das relações privadas (daí a importância do estudo dos capítulos anteriores).
O Direito Romano foi o precursor da estruturação jurídica da responsabilidade civil. A Lex Aquilia, amplamente utilizada na época de Justiniano, classificava como ato ilícito as condutas culposas provocadoras de diminuição patrimonial de terceiro. A culpa era demarcada pela noção rudimentar de dolo ou de imprudência, negligência ou imperícia. Essa norma “possibilitou atribuir ao titular de bens o direito de obter o pagamento de uma penalidade em dinheiro de quem tivesse destruído ou deteriorado seus bens” (VENOSA, 2004, p. 22-23). Acresça-se que a contribuição romana foi aperfeiçoada pelo Direito Francês, dando à responsabilidade civil contornos mais modernos.
Tanto no passado quanto na contemporaneidade, o cerne da responsabilidade civil, penal ou administrativa é a busca da reparação de danos injustamente provocados. A vida em comunidade é orientada por regras comportamentais que se violadas (intencionalmente ou não), gerando prejuízos a terceiros, fazem nascer no ofendido a pretensão reparatória. Destarte, vigora um dever jurídico de não produção de atos ilícitos danosos (dever jurídico originário) que, caso infringido, gera um dever jurídico de indenizar o prejuízo (dever jurídico sucessivo).
Logo, a responsabilidade civil “é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 02).
Válido frisar que nem todo prejuízo causado a um terceiro impõe o dever de indenizar, mas tão somente um dano proveniente da violação de um dever jurídico previamente previsto pela ordem jurídica.
A partir dessas ponderações, extraem-se os elementos ou pressupostos gerais configuradores da responsabilidade civil: a conduta humana, o nexo causal e o dano.
A conduta representa um comportamento humano voluntário – positivo (ação) ou negativo (omissão) – capaz de produzir consequências jurídicas. Cavalieri Filho (2010, p. 24) adiciona que “a ação ou omissão é o aspecto físico, objetivo, da conduta, sendo a vontade o seu aspecto psicológico, ou subjetivo”. Salienta-se que a voluntariedade está ligada ao discernimento da prática da conduta e não à consciência de causar um resultado danoso.
Para a materialização da responsabilidade civil, não basta a prática do ato ilícito pelo ofensor e nem a causação do dano à vítima. É imprescindível a aferição do liame entre a conduta e o dano, ou melhor, de que o dano foi causado pela conduta ilícita do agente. Esse raciocínio sintetiza o nexo causal que é a relação de causa e efeito entre a conduta praticada e o resultado produzido.
O terceiro pressuposto da responsabilidade civil é o dano. Ele é elementar e determinante do dever de indenizar. Não há se falar em responsabilização civil sem a ocorrência de dano à vítima. A propósito, traz-se a lume:
[…] o ato ilícito nunca será aquilo que os penalistas chamam de crime de mera conduta; será sempre um delito material, com resultado de dano. Sem dano pode haver responsabilidade penal, mas não há responsabilidade civil. Indenização sem dano importaria enriquecimento ilícito; enriquecimento sem causa para quem a recebesse e pena para quem a pagasse, porquanto o objetivo da indenização, sabemos todos, é reparar o prejuízo sofrido pela vítima, reintegrá-la ao estado em que se encontrava antes da prática do ato ilícito. E, se a vítima não sofreu nenhum prejuízo, a toda evidência, não haverá o que ressarcir. Daí a afirmação, comum a praticamente todos os autores, de que o dano é não somente o fato constitutivo mas, também, determinante do dever de indenizar. (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 73)
Ocorre que, não obstante a histórica identificação do prejuízo como pressuposto indispensável à responsabilidade civil, jamais houve uma definição legal de dano. Desde o Código Civil Francês e demais legislações por ele informadas (inclusive a brasileira), limitou-se a mencionar o dano como um dos elementos da responsabilidade civil, sem lhe conferir contornos e especificidades.
Coube, então, à doutrina e jurisprudência fixar os matizes e lindes do sentido jurídico de dano. Seguindo o vetor patrimonialista, que guiou a construção da legislação civil até o segundo pós-guerra, os operadores do direito conceituavam dano como sendo a efetiva diminuição do patrimônio da vítima. Os atos ilícitos sempre teriam repercussão patrimonial (unidimensional) e, partindo de um simples critério matemático, a reparação seria igual ao decréscimo econômico suportado pelo ofendido.
Nessa esteira, o Código Civil Brasileiro de 1916 tutelava apenas o dano material, na figura dos danos emergentes (o que efetivamente se perdeu) e dos lucros cessantes (o que razoavelmente se deixou de lucrar).
Frente a evolução da sociedade – estampada, primordialmente, pelo avanço tecnológico e pela elevação do grau de complexidade das relações jurídico-sociais – verificou-se, a partir da década de sessenta, que o conceito de dano cunhado sob o prisma patrimonial era insuficiente para atender também os interesses existenciais dos jurisdicionados.
A constitucionalização do Direito Civil foi a responsável pela ampliação do conceito de dano, pois esse fenômeno afiançou que, a par dos direitos patrimoniais, há relações jurídicas que não traduzem uma expressão econômica, mas que, se violadas, impõem a reparação civil, porquanto representam para o seu titular um valor maior ou existencial, por serem tocantes à própria natureza humana (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 82).
Assim, dando o patrimônio lugar ao homem no vértice do ordenamento jurídico, sedimentou-se a reparabilidade do dano extrapatrimonial. Não por acaso a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002 asseguram o direito à indenização por lesões ainda que exclusivamente morais.
O dano moral emerge de condutas que firam os direitos da personalidade. Esses direitos constituem a proteção básica/elementar das pessoas, garantindo o exercício da própria personalidade jurídica. Os direitos da personalidade são a categoria jurídica fundamental das legislações genuinamente democráticas, pois, além de significarem a aptidão para a prática de atos jurídicos, estão fundamentados na dignidade da pessoa humana. Anota-se que o conteúdo mínimo do princípio da dignidade da pessoa humana abrange a proteção da integridade física e psíquica, a garantia da liberdade e igualdade substancial das pessoas e o reconhecimento do direito a um patrimônio mínimo.
Para Schreiber (2011, p. 13), a expressão direitos da personalidade é empregada “na alusão aos atributos humanos que exigem especial proteção no campo das relações privadas, ou seja, na interação entre particulares, sem embargo de encontrarem também fundamento constitucional e proteção nos planos nacional e internacional”; já Cavalieri Filho (2010, p. 82) os conceitua como “direitos inatos, reconhecidos pela ordem jurídica e não outorgados, atributos inerentes à personalidade”, tais como o direito à vida, liberdade, igualdade, saúde, intimidade, enfim, à própria dignidade humana.
Nota-se que a promoção de um valor à categoria de direito da personalidade depende da consciência coletiva de que determinado fato ou bem da vida – antes irrelevante socialmente – passou a impactar de tal forma o exercício da personalidade jurídica que clama pela tutela estatal. Nesse diapasão, o conceito de direito da personalidade permanece estável, entretanto os bens que lhe dão contorno variam de acordo com os anseios da sociedade.
Nesse contexto, inegável que o tempo (estaticamente considerado) é um bem da vida que assumiu relevante papel no mundo contemporâneo. A dinâmica da vida moderna – forjada sob as bases da globalização, da evolução dos meios de comunicação e da especialização das atividades humanas – catapultou a importância do tempo como jamais imaginado. Conforme dito alhures, o tempo se tornou uma espécie de moeda não oficial mundial altamente valorizada e, por isso, sua usurpação representa – ante o cenário político, econômico e social atual – grave injusto.
Destarte, o tempo interfere no exercício da própria personalidade jurídica, o que comprova sua integração aos direitos da personalidade. Ocorre que ainda não houve o reconhecimento expresso do tempo como um direito da personalidade em nosso sistema legal, todavia nada impede o encontro e a tutela desse valor em direitos da personalidade já constitucionalmente consagrados (v.g.: direito à cidadania, ao trabalho, ao estudo, ao lazer etc.), bem como nos princípios da função social, da boa-fé objetiva e, sobretudo, da dignidade da pessoa humana.
A usurpação do tempo, portanto, é capaz de provocar um dano temporal (modalidade de dano moral) e o suposto vazio legislativo não pode servir de justificativa para que vítimas fiquem irressarcidas.
Em vista de todo o exposto, Cavalieri Filho (2010, p. 73) lança o conceito hodierno de dano:
Conceitua-se, então, o dano como sendo a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, dano é lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo daí a conhecida divisão do dano em patrimonial e moral.
3.2 RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA E OBJETIVA
A responsabilidade civil subjetiva encontra-se arrimada no fundamento “culpa”. Por óbvio, os pressupostos gerais devem estar presentes, contudo, aqui, a conduta desencadeadora do ato ilícito deve ser adjetivada pela culpa lato sensu. Em revista, a cristalização da conduta culposa liga-se tanto à negligência, imprudência ou imperícia (culpa stricto sensu) quanto ao dolo.
A culpa nada mais é do que a falta de diligência do agente na observância de uma norma de conduta. A detecção da conduta culposa passa por um juízo de valor que mescla critérios morais e psicológicos. No magistério de Schreiber (2013, p. 14), muitos autores se valem, ao definir a noção jurídica de culpa, “de elementos psicológicos ou anímicos, típicos de uma avaliação moral e subjetiva da conduta individual”.
O Código Civil em vigor trata da responsabilidade civil subjetiva nos artigos 186 e 927, caput. Senão vejamos:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Ocorre que as relações de massa, o avanço tecnológico, as novas modalidades e formas de prestação de serviços etc. revelaram que a teoria subjetiva não era mais suficiente ou eficiente para diagnosticar a responsabilidade civil. Provar a culpa nessas situações tornou-se praticamente impossível, sobretudo porque, na maioria dos casos, as vítimas careciam de respaldo financeiro, técnico ou intelectual para demonstrar o nexo causal entre a conduta e o dano.
Com efeito, “a associação da conotação psicológica da culpa com uma rigorosa exigência de sua demonstração conduziu, gradativamente, à modelagem jurisprudencial e doutrinária de um obstáculo verdadeiramente sólido para a reparação dos danos” (SCHREIBER, 2013, p. 16).
Em razão desse entrave, a doutrina desenvolveu uma nova perspectiva da responsabilidade civil, onde se prescindiria da avaliação do comportamento do sujeito causador do dano. Assim, criou-se a ideia de uma responsabilidade objetiva, fundada na teoria do risco.
A teoria do risco firma que aquele que exerce uma atividade potencialmente causadora de dano deve assumir os riscos e reparar os danos dela decorrente, independentemente de ter ou não agido com culpa. Então, “resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente causou o dano” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 142).
O Código Civil de 2002, ajustando-se à citada evolução, apesar de não ter abandonado por completo a responsabilidade fundada na culpa, inovou ao estabelecer a responsabilidade objetiva em seu art. 927, parágrafo único. In verbis:
Art. 927. […]
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Perceptível que a responsabilidade subjetiva mantém o status de regra geral, somente sendo afastada pela responsabilidade objetiva nas situações elencadas no dispositivo legal supra. Portanto, os fundamentos da culpa e do risco convivem em harmonia na legislação.
Ressalta-se que a regra do art. 927, parágrafo único, do Código Civil apresenta a cláusula geral “atividade de risco” que contempla tanto as atividades naturalmente perigosas (v.g.: mineração, transporte, produção e fornecimento de energia etc.) quanto as atividades não perigosas, mas que geram riscos no seu desenvolvimento (v.g.: produção de medicamentos, serviços de estacionamento etc.). Com efeito, a interpretação e integração da expressão “atividade de risco” é essencial para a correta aplicação dessa modalidade de responsabilidade civil, na medida em que na sociedade moderna todas ou quase todas as atividades implicam algum risco.
Nos contornos dessa cláusula deve-se considerar a potencialidade do risco criado pela atividade normalmente desenvolvida, isto é, o risco induzido pelo exercício de certa atividade lícita, seja ela naturalmente perigosa ou apenas precursora de riscos.
Independentemente da natureza da atividade (de perigo ou somente de riscos), há responsabilidade quando seus produtos ou serviços tornam-se perigosos em decorrência de um defeito. São bens ou serviços que: (i) sem o defeito não seriam perigosos; (ii) infringem o dever jurídico de segurança que se espera; (iii) apresentam riscos superiores àqueles legitimamente esperados pelo usuário; (iv) criam riscos imprevisíveis e anormais na concepção média da sociedade.
Na trilha dessas ponderações, o Código Civil de 2002, orientado por uma tendência à objetivação, não economizou na extensão e no aprofundamento da responsabilidade objetiva. Esse fato é confirmado através da conversão das hipóteses de culpa presumida do codex anterior – in vigilando, in eligendo, in contrahendo – em fundamento objetivo (v.g.: arts. 932, 936, 937), bem como na adoção de cláusulas gerais e conceitos abertos (abuso de direito: art. 187; boa-fé objetiva: arts. 113 e 422; função social do contrato: arts. 421 e 2.035, parágrafo único; exercício de atividade de risco ou perigosa: art. 927, parágrafo único; danos causados por produto: art. 931 etc.) que estribam uma responsabilização independentemente de culpa.
3.3 RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
O ideal capitalista de consumo desenvolveu-se a partir da Revolução Industrial, porém o consumismo de massa, tal qual o conhecemos hoje, tomou corpo a partir da segunda metade do século XX. A globalização, os avanços tecnológicos e o desenvolvimento das técnicas de marketing foram fatores que impulsionaram a massificação do consumo em escala global. Em síntese, atualmente, a quase totalidade da população mundial é um consumidor em potencial.
Não obstante a positiva democratização das relações de consumo, revelou-se a outra face da moeda, de cunho negativo, encarnada na fragilidade do consumidor que ficou submisso às vontades de um fornecedor técnico e economicamente mais forte. Em linhas gerais, o consumo massificado deixou o consumidor fragilizado na relação negocial, pois pouco interfere na entabulação, sendo-lhe reservado, no mais das vezes, apenas a faculdade de aderir ou não a um contrato pré-redigido (contrato de adesão).
Desse modo, os consumidores – maior grupo econômico na economia – foram identificados como hipossuficientes nas relações de consumo. Caberia, então, ao Estado tutelar os direitos básicos dessa classe, promovendo uma igualdade material entre os atores consumeristas.
A Constituição Federal de 1988, em consonância com o pacífico entendimento da vulnerabilidade do consumidor, previu a tutela da categoria nos títulos “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” e “Da Ordem Econômica e Financeira”.
Potencializando a cláusula constitucional de proteção aos direitos do consumidor (arts. 5º, inciso XXXII e 170, inciso V, da CF/88 e art. 48 do ADCT), em 11 de setembro de 1990, foi promulgada a Lei n. 8.078, que editou o Código de Defesa do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor é uma lei principiológica, porquanto edificado sobre uma base de princípios e cláusulas gerais. Isso permite a vastidão de sua incidência, sendo aplicável em qualquer ramo do Direito onde ocorram relações de consumo. Aliás, sequer há colisão entre o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor. Primeiro, porque aquele consagra os mesmos princípios editados neste, em especial o princípio cardeal da boa-fé. Depois, porque “cada um tem a sua razão de ser, o seu campo de atuação e a sua finalidade, e ainda porque, […] a missão do Código do Consumidor é constitucional” (CAVALIERI FILHO, 2011, p. 28).
São princípios e cláusulas gerais estruturantes do sistema jurídico estabelecido no Código de Defesa do Consumidor: a boa-fé objetiva, a transparência, a confiança, a vulnerabilidade e a segurança.
A boa-fé objetiva, segundo visto em capítulo próprio, indica um padrão de comportamento objetivamente considerado. Independentemente das intenções, os sujeitos, na relação de consumo, devem guardar entre si padrões de conduta ética, honesta, leal e de colaboração. Lembra-se que a boa-fé objetiva é o princípio máximo das relações contratuais.
A transparência carrega o dever de informar do fornecedor e o direito à informação do consumidor. A informação deve ser clara e precisa; veiculada com qualidade e na quantidade necessária para atender a justa expectativa do consumidor. Os direitos e obrigações oriundos da relação consumerista devem ser nítidos, eliminando-se surpresas no negócio.
O princípio da confiança reside na credibilidade depositada pelo consumidor no fornecedor de que o produto ou serviço contratado atingirá os fins que dele razoavelmente se espera. Esse princípio “prestigia as legítimas expectativas do consumidor no contrato” (CAVALIERI FILHO, 2011, p. 45).
Sobre o princípio da vulnerabilidade, ele é a pedra angular do sistema legal de proteção ao consumidor. Aferido que o consumidor é vulnerável econômica, técnica e juridicamente perante o fornecedor, o legislador criou prerrogativas para garantir a igualdade material entre os sujeitos dessa relação (v.g.: art. 6º, inciso VIII, do CDC). Frisa-se que tais prerrogativas não significam privilégios, mas tão somente meios de as forças serem equilibradas no embate tratativo.
Por fim, apresenta-se o princípio da segurança, o qual estrutura todo o sistema de responsabilidade civil das relações de consumo. Conforme dispõem os arts. 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor – regramentos de fato do produto e de fato do serviço, respectivamente – a responsabilidade civil em voga é objetiva e seu fundamento é o risco. Aqui, o risco é informado pela noção de segurança, pois o produto ou o serviço é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera (§ 1º dos artigos retromencionados).
Portanto, o defeito do produto ou do serviço causador de dano material e/ou moral é o fato gerador da responsabilidade no âmbito consumerista e o entendimento de defeito está na violação do dever jurídico de segurança imposto ao fornecedor.
A segurança tutelada em lei não é absoluta, visto que o invencionismo humano ainda não foi capaz de criar um produto ou serviço cem por cento seguro. A segurança – como princípio e dever jurídico – é aquela esperada pela coletividade e não pelo consumidor individual. Sob a ótica de Benjamin (1991, p. 60), “o que se quer é uma segurança dentro dos padrões da expectativa legítima dos consumidores”.
Arrematando de maneira exemplar sobre o princípio da segurança e a responsabilidade civil nas relações de consumo, Cavalieri Filho (2011, p. 53-54) pontifica:
A produção de produto defeituoso é, portanto, a violação do dever jurídico de zelar pela segurança dos consumidores. Aí reside a contrariedade da sua conduta ao direito, e com isso fica caracterizada a ilicitude como elemento da responsabilidade civil. Em suma, para quem se propõe fornecer produtos e serviços no mercado de consumo, a lei impõe o dever de segurança; dever de fornecer produtos e serviços seguros, sob pena de responder independentemente de culpa (objetivamente) pelos danos que causar ao consumidor. Esse dever é imanente ao dever de obediência às normas técnicas de segurança. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece no mercado de consumo. Aí está, em nosso entender, o verdadeiro fundamento da responsabilidade do fornecedor.
Traçados os contornos da responsabilidade na esfera consumerista, pondera-se que a usurpação indevida do tempo útil do consumidor conforma um defeito que compromete a segurança do produto ou serviço. A postergação irrazoável de problemas negociais pelo fornecedor, desviando o consumidor de suas atividades básicas (v.g.: trabalho, estudo, descanso etc.), não pode ser considerado fato normal e aceitável pela ordem jurídica. A não resolução a tempo e modo desses percalços, além de violar direito da personalidade, representa quebra dos princípios da função social dos contratos, da boa-fé objetiva e da segurança, já que fere as legítimas expectativas dos consumidores.
Nesse passo, o desvio/perda do tempo do consumidor com problemas absolutamente evitáveis ou solucionáveis, caso houvesse maior qualidade no fornecimento de produtos e/ou serviços, viola o dever jurídico de segurança, evidencia o defeito do negócio e provoca lesão de ordem moral.
Não por outro motivo, o Poder Público, consciente do dano temporal, elaborou o RGC – Regulamento Geral de Direitos do Consumidor dos Serviços de Telecomunicações (Resolução da Anatel n. 632/2014). Esse ato administrativo normativo tem por condão efetivar as normas de proteção ao consumidor na seara da prestação dos serviços de telecomunicações. A especialização deveu-se ao fato do massivo consumo dos serviços de telecomunicações pela população e dos infindáveis problemas de má prestação do serviço pelas respectivas concessionárias.
O RGC impõe às operadoras a diligência na prestação do serviço. As respostas às reclamações dos consumidores não podem ser postergadas sine die. Se o usuário do sistema necessita focar boa parte do seu tempo na solução de um problema e este se prolonga irrazoavelmente, aqui está a insegurança e o defeito do serviço. Contra isso, o RGC dispõe sobre o cancelamento automático do serviço, o retorno das ligações que caem pelo call center, a facilitação da contestação de cobranças etc., tudo com claro intuito de evitar o dano temporal.
De mais a mais, reforçando a preocupação estatal com a perda indevida do tempo útil do consumidor, o Governo Federal criou, recentemente, o sítio “https://www.consumidor.gov.br” – espaço destinado a agilizar a resolução de conflitos nas relações de consumo. O usuário registra sua reclamação, a qual é encaminhada para a empresa previamente cadastrada. O sistema faz a intermediação das tratativas, fixando prazos de reposta. O resultado das demandas alimenta uma base de dados pública, destacando os fornecedores que obtiveram os melhores índices de resolução e satisfação no tratamento das reclamações.