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Responsabilidade civil pela perda indevida do tempo útil do consumidor

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28/03/2016 às 12:40
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4 O DIREITO E O TEMPO

4.1 VALOR SOCIAL DO TEMPO

O tempo e a vida são indissociáveis, esta transcorre através daquele. Muito mais que um elemento influenciador da vida humana, o tempo expressa a própria vida.

Nos primórdios, a relação entre tempo e vida atuava de forma inconsciente no homem, já que o cotidiano deste resumia-se à mera sobrevivência. A partir do desenvolvimento da noção de finalidade social – aflorada no homem assim que fixou residência, passando a viver em comunidade –, emergiu, naturalmente, nos indivíduos, o entendimento de que o tempo influenciava todo o espectro das relações humanas.

Enfim, verificou-se o tempo como suporte à vida e daí a necessidade de compreendê-lo a fundo. Desse exame foi percebida a dúplice dimensão do tempo, a saber: (i) objetiva ou concretamente considerado; (ii) subjetiva ou intersubjetivamente considerado. No primeiro caso, “fala-se em tempo dos relógios, igual, quantitativo”; no segundo, “diz-se tempo social, desigual, qualitativo” (BEZERRA, 2005, p. 40).

Não resta dúvida de que a fragmentação do tempo em segundos, minutos, horas, dias, anos etc. foi essencial para o avanço político, social e econômico das nações, na medida em que permitiu a parametrização das relações entre os indivíduos. Noutras palavras, organizou o cotidiano do homem de forma matemática, permitindo aos governos extrair índices para orientar a criação de políticas públicas.

Já o tempo social ou qualitativo não pode ser medido, é o tempo emocional de cada ser. Sua duração varia de acordo com o juízo de valor feito pela pessoa, segundo as experiências que vivencia ou desfruta naquele dado instante.

Cumpre frisar que o tempo atômico ou dos relógios convive pacificamente com aquele subjetivamente vivido. E mais, conclui-se, no fim das contas, que o tempo artificial (dos relógios) tem justamente como objetivo subsidiar a eficácia do tempo social/existencial. Vale a colocação feita por Bezerra (2005, p. 41):

O tempo dos relógios como dimensão do tempo em sua concepção geral se apresenta como algo definido e mensurável, independendo da opção humana. Por outro lado, a dimensão subjetiva do tempo está relacionada com a expectativa humana e ‘é precisamente o seu tempo, tanto na maneira como você lida com ele, como na maneira de encará-lo – seja em seus pensamentos, seja nos sentimentos’. Pode-se afirmar, então, que ‘o tempo vivido e pessoal é o que há de mais importante para o indivíduo. Alguns meios são mais apropriados ou menos apropriados para a percepção do tempo e do ritmo pessoal’. Aqui, a eficiência da artificialidade técnica (tempo objetivo), sempre depende da experiência humana, desde as suas fases etárias até os seus estágios cognitivos.

Nessa perspectiva, as metas que traçamos que dão sentido à vida são executadas conforme o decurso do tempo objetivamente considerado. É a própria vida traduzida no passar do tempo (MELLO, 2013, p. 56). Logo, irrefragável que a dedicação à determinada atividade para o atingimento de metas pessoais demanda tempo. Caso o sucesso seja alcançado, deu-se sentido à vida (sinônimo de tempo); caso haja insucesso; despendeu-se parte da própria existência (sinônimo de tempo) em vão.

Diante da infinidade de ambições e aspirações dos indivíduos, é natural que estes, por culpa exclusiva, não atinjam todos os objetivos almejados, perdendo parte do seu precioso tempo. Entretanto, grave problema existe quando as metas não são alcançadas em razão de interferências de terceiros que acabam por furtar o tempo útil do interessado.

A gravidade em questão está no fato de que perder tempo significa perder vida (nos moldes acima citados). Se ocorre por culpa do próprio cidadão, gera insatisfação particular; mas se ocorre por ato de terceiro, constitui quebra de um dever jurídico.

O reconhecimento do tempo, em seu aspecto estático, como um bem jurídico é notável. Na atualidade, o tempo não é só inestimável, mas irrecuperável. Uma vez perdido, impossível o retorno ao status quo ante. A sua usurpação interfere negativamente na existência humana e, por conseguinte, no exercício dos direitos da personalidade. Assim, nas fronteiras do estudo proposto, a perda indevida do tempo útil do consumidor perpetrada pelo fornecedor conforma um dano temporal, indenizável, e não um simples dissabor. Nesse particular, convém estampar as ponderações de Mello (2013, p. 57):

[…] não se diga mais que esse tempo é algo de menor importância, uma incomodação socialmente aceitável, ou, como preferem os juristas, um mero dissabor que não implica em ressarcimento. Esse tempo representa não só a vida, em seu decurso natural, mas todas as atividades que poderiam ser desempenhadas durante esse período que fora tirado de quem detinha o direito de escolher como perdê-lo, como investi-lo, ou como utilizá-lo. Pouco importa a expressão que se usa ou o que se faz com o tempo do qual se dispõe. O importante é que essa escolha caiba ao seu titular, e a mais ninguém.

4.2 TUTELA JURÍDICA DO TEMPO

O patrimônio jurídico dos consumidores, ou melhor, de todos nós – consumidores em potencial – é amplíssimo. A Carta Magna de 1988 e a norma infraconstitucional reservam uma série de direitos a essa classe, tudo com vistas à mitigação da vulnerabilidade dos consumidores frente os fornecedores de bens e/ou serviços.

O tempo integra esse patrimônio jurídico, apesar de inexistir previsão explícita nesse sentido. Ele é o suporte para o exercício das competências do consumidor, as quais também são protegidas constitucionalmente. Em suma, o tempo está intrinsecamente ligado ao desempenho das atividades e prerrogativas dos consumidores, sendo impossível não o considerar no sistema de proteção jurídico-consumerista.

As referidas competências significam a mobilização do consumidor na busca de mais conhecimento e habilidades, bem como no esforço de atitudes voltados para a consecução de um objetivo – seja laboral, intelectual ou de lazer.

Ao assegurar a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados como direitos sociais, a Constituição Federal, reflexamente, tutelou o exercício das multicitadas competências.

Ocorre que a mobilização do consumidor para determinado fim demanda tempo livre, matéria cada vez mais escassa. O tempo é o padrão-ouro da vida, constitui o verdadeiro capital do homem moderno (JÖNSSON, 2004, p. 15). Ele (o tempo) figura entre os bens mais valiosos da sociedade contemporânea, como expressa Dessaune (2011, p. 108):

Possuindo essa combinação singular de características – escassez, inacumulabilidade e irrecuperabilidade –, o recurso produtivo “tempo” revela-se então o bem primordial e, possivelmente, mais valioso de que cada pessoa dispõe em sua existência terrena – só comparável à sua saúde física e mental, necessária para gozá-lo plenamente.

Nesse diapasão, vê-se o tempo, para além de suporte do exercício das competências do consumidor, como bem essencial à efetivação do solidarismo constitucional e da dignidade da pessoa humana. O fato de interferir no exercício da própria personalidade jurídica justifica sua tutela legal e comprova sua integração aos direitos da personalidade.

A questão de os jurisdicionados sempre quererem mais tempo ou que seu pouco tempo livre seja preservado da irrazoável interferência de terceiros, para que invistam em qualidade de vida (v.g.: trabalho, estudo, lazer etc.), é um bom exemplo da correlação entre o exercício dos direitos da personalidade e o tempo. A propósito, colaciona-se:

[…] ao deparar com situações de mau atendimento, o consumidor geralmente se vê impelido a desviar suas competências – de atividades indispensáveis ou mais desejadas em sua vida – para tentar resolver esses problemas cotidianos criados por muitos fornecedores, a um custo de oportunidade indesejado. (Dessaune, 2011, p. 111)

O reconhecimento da tutela constitucional do tempo obviamente se espraia para o Código de Defesa do Consumidor. Em que pese o CDC também não dispor expressamente sobre o tempo, certo é que os princípios informadores desse codex – em sintonia com os princípios constitucionais – reconhecem-no como um bem merecedor de proteção jurídica.

Pontua-se que a força normativa dos princípios deve ser observada pelos operadores do direito, especialmente quando a solução da lide não encontre resposta em regra expressa. O reconhecimento de um dano temporal e sua tutela legal é um notável exemplo do uso dos princípios como fonte normativa.

Assim, na concretização da defesa do consumidor, deve o fornecedor comercializar bens e serviços “adequados”, ou seja, com padrões de qualidade, segurança, durabilidade, desempenho e tudo mais que o consumidor deles possa razoavelmente esperar (art. 4º, inciso II, alínea d, do CDC). O conceito de “serviço adequado” é extraído da Lei n. 8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos. Senão vejamos:

Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

§ 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço.

Destarte, viola o dever jurídico originário o fornecedor que – ao assumir os riscos de uma prática comercial em troca do lucro – conduz desidiosamente o negócio jurídico celebrado com o consumidor. A condução desidiosa justapõe-se na violação de consagrados princípios de direito e na ineficiência da comercialização do produto ou da prestação do serviço (v.g.: falta de segurança, informação, cortesia etc. = serviço inadequado), causando um prejuízo temporal ao consumidor, que é obrigado a desviar suas competências para tentar solucionar um imbróglio provocado exclusivamente pelo fornecedor.

Acresça-se que a tutela jurídica do tempo também encontra arrimo nas cláusulas gerais da boa-fé objetiva e da função social do contrato, que devem permear as relações comerciais mesmo antes do seu nascimento até após o seu término, tudo em prol da dignidade e da melhoria da qualidade de vida do maior grupo econômico na economia mundial: os consumidores (art. 4º do CDC).

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4.3 PERDA INDEVIDA DO TEMPO ÚTIL DO CONSUMIDOR E RESPONSABILIDADE CIVIL

Antes de adentrar propriamente no tópico, de suma importância repisar que o instituto da responsabilidade civil vem se flexibilizando ao longo dos tempos. Os pressupostos da responsabilidade civil têm sido redimensionados para que não se tornem entraves à reparação de “novos danos” que outrora eram considerados irrelevantes jurídicos.

A ampliação da gama de danos indenizáveis surge da consciência coletiva de que novos valores se tornaram caros à sociedade, devendo estes receber tutela estatal. Esse evento ocorre naturalmente, não dependendo de chancela oficial. Todavia, a comprovação de sua relevância social, a delimitação de suas características e efeitos, bem como a sua estruturação no arcabouço jurídico dependem do trabalho intelectual dos estudiosos do direito (v.g.: legisladores, advogados, magistrados, doutrinadores etc.).

Nesse cenário – em repulsa ao irressarcimento: fato gerador de injustiça social e de enriquecimento sem causa – o Direito tem reconhecido maior importância ao dano, em detrimento da culpa e do nexo causal. Percebeu-se que a necessidade cabal de se produzir prova tanto da culpa do ofensor quanto do liame entre a conduta ilícita e o dano dificultava sobremaneira o ressarcimento do ofendido. No mais das vezes, por questões de ordem econômica e de complexidade técnica, a produção dessa prova tangenciava o impossível, ceifando as pretensões reparatórias das vítimas. Assim, na tutela progressiva do ofendido, flexibilizou-se: (i) a culpa, mediante a sua presunção em hipóteses legais e via o estabelecimento da responsabilidade objetiva; (ii) o nexo causal, através da aplicação, pelo julgador, das teses doutrinárias da causalidade alternativa, da causalidade concorrente e da causalidade parcial. Nesse sentido, transcreve-se:

A responsabilidade civil precisou se adaptar à nova realidade social, econômica e tecnológica, onde as causas não são plenamente conhecidas e os efeitos não são imediatamente visíveis, o que dificulta sobremaneira a verificação plena do liame entre causa e consequência. (MELLO, 2013, p. 46)

O dano, segundo já dito, teve sua importância potencializada. A doutrina e a jurisprudência passaram a percebê-lo como o objeto e a razão da reparação civil. No passado, sua constatação era facilitada, já que ligado à perda patrimonial; contudo, hoje, o dano vai além, servindo de amparo às vítimas dos mais diversos infortúnios.

Sob a orientação do direito civil constitucionalizado, o dano ressarcível expandiu qualitativamente. Os interesses existenciais atinentes à pessoa humana também são interesses tuteláveis pelo Direito posto e, se violados, ensejam reparação traduzida em indenização pecuniária.

A eficácia horizontal dos direitos fundamentais conduziu a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana (fundamento supremo da CF/88) às relações privadas. Isso fez surgir um novo universo de interesses merecedores de proteção jurídica, para os quais se reservou o tratamento de direitos da personalidade. O delineamento, o alcance e a tutela legal desses novos interesses foi bem demarcada por Schreiber (2013, p. 91-92):

[…] a aplicação direta da norma constitucional de tutela da dignidade humana veio abrir caminho à proteção de outros interesses existenciais que, há muito, demandavam reparação. Por exemplo, doutrina e tribunais brasileiros passaram, mesmo à margem de previsão legislativa específica, a considerar como dano ressarcível o dano à imagem, o dano estético e o dano à integridade psicofísica. Consolidou-se, na experiência brasileira, a efetiva tutela reparatória destes aspectos da personalidade, constitucionalmente protegida.

Com efeito, perceptível a inter-relação entre interesses existenciais e direitos humanos, direitos da personalidade e direitos fundamentais. Para a correta compreensão do todo, imperioso salientar que:

[…] a expressão direitos humanos é utilizada no plano internacional, independentemente, portanto, de modo, como cada Estado nacional regula a matéria. Direitos fundamentais, por sua vez, é o termo normalmente empregado para designar ‘direitos positivados numa mesma constituição de um determinado Estado’. E, por isso mesmo, a terminologia que tem sido preferida para tratar da proteção à pessoa humana no campo do direito público, em face da atuação do poder estatal. Já a expressão direitos da personalidade é empregada na alusão aos atributos humanos que exigem especial proteção no campo das relações privadas, ou seja, na interação entre particulares, sem embargo de encontrarem também fundamento constitucional e proteção nos planos nacional e internacional. (SCHREIBER, 2011, p. 13)

Ancorado no raciocínio exposto, conclui-se que o tempo – suporte implícito da vida e bem primordial da vida humana – é um valor ou interesse existencial atinente à pessoa humana. Desse modo, a conduta que o viola deve ser entendida como um ato ilício e o dano daí advindo classificado como “dano temporal” – de cunho extrapatrimonial, integrado ao espectro qualitativo dos “novos danos” indenizáveis.

Agregando ao debate, imperativo também salientar que o capitalismo, propositadamente, vinculou a ascensão social ao mérito profissional (meritocracia), instigando a competição entre os cidadãos. Destarte, impôs-se ao jurisdicionado o dever incessante de qualificar os seus conhecimentos, habilidades e atitudes.

Nesse contexto, as relações de consumo representam um pilar onde a meritocracia se apoia. Isto é, o cidadão-consumidor tende a adquirir produtos ou serviços que lhe facilitem a vida, liberando ou otimizando seu tempo útil, com vistas a melhor empregá-lo nas atividades de seu interesse.

Em sintonia com o asseverado, o doutrinador Dessaune (2011, p. 129) – ao discorrer sobre a escassez, inacumulabilidade e irrecuperabilidade do tempo – afirmou que o fornecedor tem a missão implícita de liberar os recursos produtivos do consumidor, o que consiste em dar-lhe, através de um produto final, “condições de empregar o seu tempo e as suas competências nas atividades de sua preferência, assim possibilitando que ele se realize como ser humano”.

Os mencionados recursos produtivos são o tempo e as competências, sendo estas “o conjunto de conhecimentos ou saber, habilidades ou saber-fazer e atitudes ou saber-ser, necessário para o desempenho de uma atividade, seja ela qual for” (DESSAUNE, 2011, p. 95). Assim, caso o fornecedor, independentemente de culpa, forneça um produto ou serviço viciado ou defeituoso ou exerça uma prática abusiva, infringindo seu dever de prestar um serviço adequado, levando o consumidor a desperdiçar seu tempo útil, haverá um desvio produtivo do consumidor. Em suma, cristalizar-se-á um dano de natureza temporal indenizável.

Nos termos do subitem 4.2 deste capítulo, vê-se o tempo, para além de suporte do exercício das competências do consumidor, como bem essencial à efetivação do solidarismo constitucional e da dignidade da pessoa humana. O fato de interferir no exercício da própria personalidade jurídica justifica sua tutela legal e comprova sua integração aos direitos da personalidade.

Sob a ótica acima, o tempo revela-se um valor inestimável e indisponível, o que o liga à noção de dignidade, segundo conhecida e sempre lembrada lição de Kant (1986, p. 77). In verbis:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está cima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.

Nessa esteira, os deveres do fornecedor de prestar um serviço adequado, de veicular informações claras e objetivas sobre o produto ou serviço, de agir com boa-fé e de responsabilizar-se pelos vícios ou acidentes de consumo existem não só para proteger o consumidor vulnerável, mas também para reverberar os ditames constitucionais da justiça social e da dignidade da pessoa humana.

Não é mera coincidência que o Capítulo II do CDC, reservado à Política Nacional de Relações de Consumo, praticamente reitera o Título I da CF/88, enunciador dos princípios fundamentais de nosso Estado Democrático de Direito. Dessa substância jurídica, extrai-se que “a missão de qualquer fornecedor, hoje, é contribuir para a existência digna, promover o bem-estar e possibilitar a realização humana do seu consumidor, sujeito em função do qual existe” (MELLO, 2013, p. 59).

Nessa ordem de ideias – reconhecendo-se o tempo como um fator que interfere na personalidade jurídica, como um elemento escasso, inacumulável e irrecuperável, como um “recurso produtivo limitado” (Dessaune, 2011, p. 93) e como suporte de uma vida digna – impossível não identificá-lo como um valor, ou melhor, um bem jurídico integrante dos direitos da personalidade.

Então, os recorrentes casos de comercialização de produtos e/ou serviços defeituosos, onde os fornecedores – seja por despreparo, desatenção, descaso ou má-fé – esquecem-se de sua missão de proporcionar o bem estar dos consumidores, frustrando as legítimas expectativas destes e fazendo com que eles (consumidores) percam seu tempo na solução do problema, caracterizam ato ilício.

O ato ilícito é colmatado pela usurpação do tempo útil, enquanto violação a direito da personalidade, pelo afastamento do dever de segurança que deve permear as relações de consumo, pela inobservância da boa-fé objetiva e seus deveres anexos, pelo abuso da função social do contrato (seja na fase pré, contratual ou pós-contratual) e, em último grau, pelo desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Consequentemente, essa prática ilícita fará nascer na vítima a pretensão reparatória, exsurgindo um dano temporal, decorrente da ampliação das hipóteses de dano moral. Em síntese, a perda indevida do tempo útil do consumidor provocada pelo fornecedor gera responsabilidade civil. Nesse sentido, é lapidar a preleção de Dessaune (2011, p. 135):

[…] se um fornecedor violar seu dever jurídico originário – fornecendo ao consumidor um produto ou um serviço viciado/defeituoso –, ou mesmo se aquele cometer outros atos ilícitos – especialmente expondo este a uma prática abusiva legalmente vedada – e, em qualquer dessas hipóteses, ocasionar um ‘desvio produtivo’ ao consumidor, entendo que nascerá para o primeiro, em tese, o dever jurídico sucessivo de indenizar tal dano que causou ao segundo, da mesma maneira que surgirá para este o direito subjetivo de exigir daquele uma compensação pecuniária compatível com o prejuízo irreversível que sofreu.

São exemplos de mau atendimento perpetrados por fornecedores de produtos e/ou serviços que insistem em postergar irrazoavelmente a solução de problemas oriundos da relação de consumo, ainda que os consumidores empreguem parte de seu tempo livre/útil na busca de solução do impasse que não deram causa:

[…] a espera demorada em uma fila de banco, em que somente dois dos dez guichês encontram-se abertos para atendimento ao público; ter um procedimento cirúrgico ou exame reiteradamente negado pelo plano de saúde, mesmo quando abarcado pela cobertura contratada; telefonar insistentemente para o Serviço de Atendimento ao Consumidor de uma determinada empresa para cancelar uma cobrança indevida, sendo repassado de atendente para atendente; ter de chegar com antecedência ao aeroporto e aguardar horas pelo voo que está atrasado (ou mesmo aguardar para obter um lugar em outro voo em decorrência da conhecida prática de overbooking); retornar à loja repetidas vezes, procurar uma assistência técnica ou reclamar perante o PROCON em razão da compra de um produto defeituoso […]. (MELLO, 2013, p. 60)

Na contramão do dever de prestar um serviço adequado, crescem dia a dia as ocorrências de mau atendimento – seja por desídia, despreparo, desatenção ou má-fé do fornecedor – que levam o consumidor a desperdiçar seu tempo, desviando-lhe de suas atividades indispensáveis ou preferidas para tentar resolver um problema criado exclusivamente pelo fornecedor.

Em janeiro de 2014, a empresa eCRM123 entrevistou oitocentas pessoas distribuídas pelo país a fim de apurar a qualidade do atendimento ao consumidor no Brasil. Nessa pesquisa, 97% dos entrevistados disseram já ter passado por experiências ruins com atendimento; numa escala de 0 à 10, 81% deram nota de 2 à 5 para o atendimento ao consumidor; 83% informaram que pagariam mais caro para ter um atendimento diferenciado. Os entrevistados disseram ainda que o setor com pior atendimento ao consumidor é: (i) telefonia: 55%; (ii) empresas “.com”: 14%; (iii) varejo: 8%; (iv) serviços: 7%; (v) público: 6%; (vi) hospitalar: 6%; (vii) transporte aéreo: 4%.

A Rede Globo de Televisão, na edição do Jornal Nacional de 28 de maio de 2014, também noticiou uma pesquisa sobre a qualidade do atendimento ao consumidor no país. O estudo, que é realizado há quinze anos, foi feito junto a duzentas empresas de todos os setores da economia. Apurou-se que os resultados têm piorado ano a ano. Nos serviços de atendimento ao consumidor (SAC) pesquisados, pouco mais de 50% deles atenderam dentro dos limites máximos estabelecidos pelo Poder Público, contra 62% em 2013 e 90% em 2010. Entre 2013 e 2014, nas reclamações feitas por telefone, o tempo médio de espera aumentou mais de 30%. Já no caso de consultas feitas por e-mails, 44% das empresas simplesmente não responderam.

Ambas as pesquisas comprovam a via crucis enfrentada pelo consumidor para solucionar problemas advindos da relação de consumo. A usurpação do tempo do consumidor é patente. A falta de tutela jurídica explícita do tempo estaticamente considerado não pode escudar os fornecedores negligentes. Essa negligência impacta negativamente a sociedade, afastando o consumidor – que na prática somos todos nós – de sua busca por realizar-se como ser humano.

Em vista do exposto, não é mais possível conceber o dano temporal como um indiferente legal; algo rotulado como um mero aborrecimento ou dissabor na vida do consumidor. Contudo, tão importante quanto racionalizá-lo como um dano tutelável, é ter a consciência de que nem toda situação que gere perda de tempo conduz à responsabilização civil. Somente o desperdício injusto e intolerável delineará o dano temporal e legitimará a indenização. O caráter aberto dos conceitos de “injusto” e “intolerável” se faz necessário, pois possibilita sopesá-los de acordo com as especificidades do caso concreto (STOLZE, 2013, p. 05-06). Nessa perspectiva, Andrade (p. 10), em sensível análise, orienta:

Muitas situações da vida cotidiana nos trazem a sensação de perda de tempo: o deslocamento entre a casa e o trabalho, as filas para pagamentos em bancos, a espera de atendimento em consultórios médicos e dentários e tantas outras obrigações que nos absorvem e tomam um tempo que gostaríamos de dedicar a outras atividades. Essas são situações que devem ser toleradas, porque, evitáveis ou não, fazem parte da vida em sociedade.

Dessa forma, a criação de critérios de identificação do dano temporal é indispensável, sob pena de banalização do instituto e de esvaziamento de sua importância jurídica. Ante o silêncio legislativo acerca do tema, essa árdua tarefa recaiu sobre a doutrina e a jurisprudência. Destaca-se que alguns tribunais do país têm considerado certos problemas recorrentes de mau atendimento ao consumidor como capazes de gerar dano temporal. Esse dano tem sido enquadrado como uma nova espécie de dano moral. Além disso, os magistrados têm enfocado o caráter compensatório da respectiva indenização e, sobretudo, sua utilidade pedagógico-punitiva (teoria do desestímulo).

O tribunal que mais tem aceitado e desenvolvido a tese sub examine é o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, entretanto outras cortes pátrias também têm sinalizado positivamente para a reparabilidade do tempo usurpado, ainda que em grau menos expressivo. A título meramente exemplificativo, pinçam-se, a seguir, alguns julgados de diferentes colegiados do país, os quais revelam o reconhecimento da existência de um novo dano existencial que não deve ser tolerado pelo ordenamento jurídico.

No julgamento da apelação cível n. 0400326-67.2012.8.19.0001 – litígio de consumidor contra a Net Rio Ltda. e a Empresa Brasileira de Telecomunicações S.A. (Embratel) em razão da não efetivação do pedido de cancelamento dos serviços de TV por assinatura e de telefonia, o que redundou em cobranças indevidas e inclusão do nome do consumidor nos cadastros restritivos de crédito – o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, citando expressamente a “Teoria da Indenização pela Perda do Tempo Livre”, ponderou que a falta de resposta das rés a doze protocolos de atendimento do consumidor transborda o razoável, cristalizando um dano temporal.

Em demanda com causa de pedir próxima e remota praticamente idêntica à supracitada, porém proposta contra a Sky Brasil Serviços Ltda., a Turma Recursal da Comarca de Porto Alegre/RS, ao julgar o recurso inominado n. 71004406427, certificou a responsabilidade civil da prestadora de serviços com expressa menção à obra de Marcos Dessaune: Desvio produtivo do consumidor e arrematou que o tempo desperdiçado pelo consumidor na resolução do impasse, que deveria ter sido solvido rapidamente pelo fornecedor, viola bem jurídico e provoca danos morais.

Já o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao analisar a apelação cível n. 0007852-15.2010.8.26.0038, a qual debatia vício do produto (máquina de lavar roupas) alegado por consumidora contra a Electrolux do Brasil S.A., entendeu que a ré tratou com descaso a cliente, pois não solucionou com a agilidade necessária o vício de qualidade do bem, em que pese as inúmeras tentativas de resolução administrativa, inclusive perante o Procon. O órgão julgador disse que a absurda morosidade na solução do vício consumiu tempo superior a seis meses e – citando explicitamente a tese de “Desvio Produtivo do Consumidor”, do doutrinador Marcos Dessaune – firmou que a consumidora não contou com a lealdade e o respeito da fornecedora, resultando em afronta à boa-fé objetiva e ao princípio da dignidade da pessoa humana, o que acarretou um dano indenizável.

Posto isso, não obstante tímida e lenta, percebe-se uma gradual construção de balizas hermenêuticas para a aplicação adequada do instituto da responsabilidade civil pela perda indevida do tempo útil do consumidor.

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Sobre o autor
Alan Monteiro Gaspar

Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil: Universidade Anhanguera – Uniderp (2014/2015). Especialista em Direito Processual Civil: Universidade Anhanguera – Uniderp (2011/2012). Especialista em Direito Processual: grandes transformações: Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (2008/2009). Bacharel em Direito: Centro Universitário de Sete Lagoas – UNIFEMM (1998/2002).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASPAR, Alan Monteiro. Responsabilidade civil pela perda indevida do tempo útil do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4653, 28 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40639. Acesso em: 18 abr. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada à Universidade Anhanguera-Uniderp, Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Civil, na modalidade à distância, como requisito parcial à obtenção do grau de especialista em Direito Civil.

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