CONSIDERAÇÕES FINAIS
O sistema econômico capitalista, propositadamente, correlacionou a ascensão social ao desenvolvimento das competências dos cidadãos. Quanto mais os jurisdicionados incrementem as suas competências – sendo estas entendidas como o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes arduamente desenvolvido ao longo da vida –, maiores as chances de escalada social.
Essa correlação convém ao sistema, porque a qualificação intelectual imposta às pessoas serve de combustível para a expansão sustentável do capitalismo. Daí os avanços tecnológicos que permitiram/permitem a elevação do grau de complexidade das relações jurídico-sociais, o aumento da velocidade da informação e, sobretudo, a massificação do consumo, que é a mola mestra do capitalismo.
Com efeito, o conceito de meritocracia, cunhado pelo ideal capitalista, traduz a incessante cobrança do mercado de desenvolvimento das citadas competências. Isso expõe uma faceta sombria do sistema que é a promoção do acirramento competitivo entre os indivíduos.
Nesse ambiente de competição, o tempo assumiu papel de notável relevância, pois se tornou a variável que norteia nossas vidas. Todos os compromissos assumidos pelas pessoas o levam em consideração. Daí as legítimas expectativas dos jurisdicionados de perda mínima de tempo em filas de banco, no conserto ou revisão de seu veículo, no embarque e desembarque em aeroportos, no restabelecimento do fornecimento de serviços públicos essenciais (v.g.: água e luz), enfim na resolução de problemas advindos quase que exclusivamente das relações de consumo.
O sentido da expressão “perda de tempo” acima mencionada não é figurado, mas real. Explica-se: a realização das atividades indispensáveis ou preferidas do cidadão-consumidor (competências) demanda tempo e este, dia a dia, notabiliza-se pela escassez, inacumulabilidade e irrecuperabilidade. Por conseguinte, as situações cotidianas de mau atendimento que levam o consumidor a desviar suas diretivas habituais para tentar solucionar problemas criados exclusivamente pelos fornecedores significam perda de um bem altamente valorizado na sociedade: o tempo.
O presente trabalho buscou demonstrar que a perda indevida do tempo útil do consumidor acarreta responsabilidade civil. Necessário pontuar que essa demonstração ensejou a construção de um raciocínio jurídico, visto que o tempo, estaticamente considerado, não goza de regramento explícito na legislação nacional. Não é por acaso que, nas ações judiciais, em regra, os magistrados subavaliam os argumentos do cidadão-consumidor de que seu tempo (do consumidor) foi usurpado ante o mau atendimento perpetrado pelo fornecedor do produto e/ou serviço. Em poucas palavras, o defeito na comercialização do produto ou na prestação do serviço que provoca a perda irrazoável do tempo livre do consumidor tem sido classificado pela jurisprudência majoritária como mero dissabor, contratempo, percalço ou aborrecimento.
Para a superação desse posicionamento e respectiva comprovação da tese aqui defendida, considerou-se o tempo e suas implicações jurídico-sociais na perspectiva da vigente ordem da constitucionalização do direito civil, da evolução do instituto da responsabilidade civil e da ampliação qualitativa dos “novos danos” indenizáveis. Dessa maneira, fulcrado na eficácia horizontal dos direitos fundamentais, percebeu-se o tempo – para além de suporte do exercício das competências do consumidor – como um bem essencial à efetivação do solidarismo constitucional e da dignidade da pessoa humana.
A aproximação do tempo aos valores constitucionais de primeira linha, dentre os quais se destaca o princípio da dignidade da pessoa humana, notabilizou sua interferência no exercício da própria personalidade jurídica, o que indica sua integração aos direitos da personalidade.
Nesse diapasão, apoiado no raciocínio construído ao longo desta pesquisa, conclui-se que o arcabouço jurídico pátrio considera o tempo um valor ou um bem tutelável, apesar de não o ter positivado explicitamente no sistema. Ademais, arremata-se que o locus jurídico onde o tempo reside como um bem é nos direitos da personalidade (seja extraído daqueles expressamente consagrados na Constituição Federal de 1988, seja reconhecido como um direito da personalidade autônomo implícito) e/ou nos princípios da função social, da boa-fé objetiva e, sobretudo, da dignidade da pessoa humana (força normativa dos princípios).
Então, a perda injusta e intolerável do tempo útil do consumidor provocada por desídia, despreparo, desatenção ou má-fé (abuso de direito) do fornecedor de produtos ou serviços deve ser entendida como dano temporal (modalidade de dano moral) e a conduta que o provoca classificada como ato ilícito.
Cumpre reiterar que o ato ilícito deve ser colmatado pela usurpação do tempo livre, enquanto violação a direito da personalidade, pelo afastamento do dever de segurança que deve permear as relações de consumo, pela inobservância da boa-fé objetiva e seus deveres anexos, pelo abuso da função social do contrato (seja na fase pré, contratual ou pós-contratual) e, em último grau, pelo desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim sendo, certificado que o tempo é um bem jurídico reconhecido e protegido pelo sistema legal, a conduta que irrazoavelmente o viole produzirá uma nova espécie de dano existencial, qual seja, dano temporal, fazendo nascer na vítima a pretensão reparatória. Caso o dano temporal decorra de relação de consumo, o fornecedor do produto ou serviço será obrigado a reparar o dano independentemente de culpa (responsabilidade objetiva).
Portanto, não é mais possível entender o dano temporal como um indiferente legal; algo rotulado como um mero aborrecimento ou dissabor na vida do consumidor. Todavia, deve-se ter a consciência de que nem toda situação que gere perda de tempo é capaz de produzir um dano temporal. Somente as ocorrências que violem um padrão de razoabilidade suficientemente assentado na sociedade é que darão ensejo à lesão. O delineamento dessa razoabilidade – conceito jurídico aberto – deve ser preenchido pelo julgador levando em consideração as especificidades do caso concreto. Caberá também à doutrina dar contornos a essa razoabilidade objetiva, colmatando-lhe com requisitos que mitiguem o invencionismo do intérprete, tudo com vistas a evitar a banalização do instituto e o esvaziamento de sua importância jurídica.
Não se olvide ainda do mérito dos advogados no amadurecimento do thema probandum. Afinal, foram eles os precursores do debate da matéria no Poder Judiciário, buscando o reconhecimento da tutela jurídica de um bem até então pouco explorado pelo Direito. Ninguém mais poderia aceitar este grande desafio, na medida em que quem forma a jurisprudência, em primeiro lugar, não são os juízes e sim os advogados na defesa de suas teses nas demandas que propõem.
Dessa forma, havendo a construção de uma jurisprudência significativa sobre todos os aspectos que envolvem a responsabilidade civil pela violação injusta do tempo, isso inevitavelmente pressionará o legislador a atuar. Até lá, é papel de todos os operadores do direito enfrentar o tema de forma sensata e, acima de tudo, em harmonia com o principio matricial da dignidade da pessoa humana.
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