3.Qual sistema o Direito Brasileiro adotou?
É chegado o momento de expor qual modelo, de fato, foi adotado pelo Brasil. Espera-se, destarte, conseguir, não obstante as divergências doutrinárias, chegar a uma conclusão hígida. Nesse sentido, por meio de comparações, procurar-se-á identificar quais as características do sistema processual pátrio e, depois, compará-las com as correspondentes nos sistemas já estudados. Sem retórica alguma, far-se-ão, somente com as informações expostas, confrontações para, ao final, buscar, se é que seja possível, uma resposta à pergunta título do presente tópico.
Pois bem, no Brasil, para que se possa punir alguém, deve haver, por força do princípio da necessidade, um devido processo penal – nulla poena sine judicio. Destarte, conforme se lê nos diversos manuais de processo penal, para que Estado exercite seu jus puniendi, há a chamada persecução penal, que é o caminho percorrido para a imposição da sanção àquele que violou as normas penais incriminadoras.
A persecução penal, no sistema pátrio, é composta por duas fases: a primeira – o inquérito policial – é um procedimento de natureza administrativa, de caráter inquisitivo (não há contraditório), cujo objetivo é angariar elementos de informação que sirvam de subsídio ao titular da ação penal, para que este possa ingressar em juízo; já a segunda fase – o processo judicial propriamente dito – é onde ocorrerá a produção de provas, onde haverá o contraditório e a ampla defesa, enfim, há nessa fase o cumprimento de todas as garantias constitucionais.
Por essa exposição inaugural, é possível afirmar, ainda que de forma intuitiva, que no Brasil adota-se o sistema misto ou, como também é conhecido, acusatório formal. Certamente, se se adotar essa postura, não haverá “equívoco”, visto que vozes fortes na doutrina afirmam ser o sistema brasileiro acusatório formal – ou misto, como se disse alhures.
Nesse sentido, por todos, cita-se Guilherme de Souza Nucci que, dissertando sobre o tema, afirma peremptoriamente:
O sistema adotado no Brasil, embora não oficialmente, é o misto. Registremos desde logo que há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal, poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimento, recursos, provas, etc.) é regido por Código específico, que data de 1941, elaborado em nítida ótica inquisitiva (encontramos no CPP muitos princípios regentes do sistema inquisitivo, como veremos a seguir).
Logo, não há como negar que o encontro dos dois lados da moeda (Constituição e CPP) resultou no hibridismo que temos hoje. Sem dúvida se trata de um sistema complicado, pois é resultado de um Código de forte alma inquisitiva, iluminado por uma Constituição Federal imantada pelos princípios democráticos do sistema acusatório. Por tal razão, seria fugir à realidade pretender aplicar somente a Constituição à prática forense. Juízes, promotores, delegados e advogados militam contando com um Código de Processo Penal, que se estabelece as regras de funcionamento do sistema e não pode ser ignorado como se inexistisse. Essa junção do ideal (CF) com o real (CPP) evidencia o sistema misto.[10]
Torna-se difícil sustentar a adoção, pelo Brasil, do sistema acusatório. De fato, muito se tem a evoluir para se chegar a esse sistema, que é o ideal em um estado Constitucional e Democrático de Direito. Malgrado os fortes argumentos levantados por Nucci, há grande parte da doutrina, senão a maioria, que afirma ser o sistema acusatório o adotado pelo direito pátrio.
Para alguns autores, determinados “detalhes” do Código de Processo Penal não desnaturam a característica acusatória do sistema processual brasileiro. Nesse sentido, vale a pena conferir os escólios de Eugênio Pacceli que, em seu Curso de Processo Penal, aduz:
A doutrina brasileira costuma referir-se ao modelo brasileiro de sistema processual, no que se refere à definição da atuação do juiz criminal, como um sistema de natureza mista, isto é, com feições acusatórias e inquisitoriais. Alguns alegam que a existência do inquérito policial na fase pré-processual já seria, por si só, indicativa de um sistema misto; outros, com mais propriedade, apontam determinados poderes atribuídos aos juízes no Código de Processo Penal como justificativa da conceituação antes mencionada (NUCCI, 2005, p.101). [...] Com efeito, não é porque o inquérito policial acompanha a denúncia e segue anexado à ação penal que se pode concluir pela violação da imparcialidade do julgador ou pela violação ao devido processo legal. [...] De todo modo, e, sobretudo, a partir da possibilidade de participação do acusado e de seu defensor no ato do interrogatório, não vemos como não se reconhecer, ou não vemos por que abdicar de um conceito acusatório de processo penal na atual ordem constitucional. (Sem grifo no original)[11]
Em que pese a autoridade do autor, com ele, data máxima venia, não se pode concordar. Ora, momento algum a doutrina se refere, para dizer que o sistema pátrio não acusatório, somente à questão de o inquérito seguir, ou não, a denúncia e a ação penal. Entrar em celeuma tão grande como essa, tendo somente esse argumento, seria empresa deveras arriscada, fadada ao insucesso.
A questão vai muito mais além. Como se viu, para haver um sistema acusatório é importante verificar se há ou não a divisão de tarefas. Sem essa divisão de tarefas, compromete-se a imparcialidade do julgador, e o processo, que era para ser algo ordenado, com cada parte agindo nos limites da lei e fazendo o que lhe incumbe, vira uma coisa sem limites, sem parâmetros. É por isso que se busca, no sistema acusatório, que cada um faça o que lhe compete. Acusação, acusando; defesa, defendendo; e julgador, julgando (só julgando!).
Ademais, não é porque o acusado tem direito a participar do processo com um defensor lhe dando suporte que o sistema será o acusatório. Ora, até mesmo no processo inquisitivo, embora simbólica, havia a defesa. O ponto fulcral da questão, repita-se, é a posição adotada pelo juiz. O juiz deve ser imparcial! Não deve pender para lado algum, sob pena de ofensa ao postulado do due process of law.
Expor-se-ão alguns “pequenos detalhes” que, na visão de alguns doutrinadores, em nada prejudicam a imparcialidade do juiz. Assim, como exemplo, citam-se: a) possiblidade de conversão, ex officio, da prisão em flagrante em preventiva, consoante o art. 310, CPP; b) possibilidade de decretação da prisão preventiva de ofício no curso do processo (observação pertinente é feita por Aury Lopes Jr. Para ele, “o problema não está na fase, mas, sim, no atuar de ofício![12]); c) busca e apreensão, art. 242; d) sequestro, art. 127; e) ouvida de testemunhas, além do número indicado pela defesa e acusação, art. 209; f) possibilidade de fazer o interrogatório do réu a qualquer tempo, art. 196; g) determinação de diligências, ex officio, durante a faze processual, bem como até mesmo na investigação preliminar, art. 156, I e II, CPP; h) reconhecimento de agravantes ainda que não tenham sido alegadas pela acusação, art. 385 (clara sentença ultra petita, haja vista que o juiz concede além do que lhe foi pedido); i) possiblidade de condenar o acusado, ainda que o parquet tenha postulado sua absolvição, art. 385, CPP. Ora, “Condenar sem pedido é violar, inequivocamente, a regra do fundante do sistema acusatório que é o ne procedat iudex ex officio.”.[13]
Por todos esses exemplos – que não foram exauridos, ressalte-se –, pergunta-se: será mesmo que se adotou no Brasil o sistema acusatório?
Ora, a título de argumento, indaga-se: se o juiz deve ser inerte, espectador, para que conceder-lhe o poder de determinar diligências de ofício durante a fase processual ou, até mesmo, extrapolando os limites do razoável, em sede de investigação preliminar?
É consabido, e isso se aprende nas primeiras aulas de Direito Penal, que há um princípio em Direito chamado in dubio pro reo, e que, por esse preceito, estando o magistrado em dúvida, deve absolver. E mais, a condenação somente pode se dar quando houver juízo de certeza. Assim, pergunta-se: se o magistrado não tem certeza, vale dizer, se está em dúvida, não precisa requerer diligências, basta absolver; a menos que queira, de fato, “achar” algo que incrimine o acusado.
Nessa senda, Aury Lopes Jr., dissertando sobre a Teoria da dissonância cognitiva, observa:
É elementar que ao se atribuir poderes instrutórios ao juiz, fere-se de morte a imparcialidade, pois ‘quem procura, procura algo’ (Geraldo Prado). Transforma-se o processo em uma encenação simbólica, pois o juiz– desde o momento em que decide ir atrás da prova de ofício – já tem definida a hipótese acusatória como verdadeira. Logo, com ensina Franco Cordero, esse juiz não decide a partir dos fatos apresentados no processo, senão da hipótese acusatória inicialmente eleita (pois se fosse a defensiva ele não precisava ir atrás da prova). Quando o juiz, em dúvida, afasta o in dubio pro reo e opta por ir atrás da prova (juiz-ator=inquisidor), ele decide primeiro e depois vai atrás dos elementos que justificam a decisão que ele já tomou. Portanto, ‘ele é a prova’ e, depois, decide a partir da prova por ele mesmo produzida. Sem falar que a dúvida deve dar lugar a absolvição (o in dubio pro reo é fruto de evolução civilizatória!) e, quando um juiz afasta essa regra de julgamento e decide ‘ir atrás da prova’, não é preciso maior esforço para compreender que está buscando prova para condenar, pois se fosse para absolver, ele parava no momento anterior... [14]
Afirmar que o Brasil adotou o sistema acusatório, olvidando-se de todos os argumentos supramencionados é, de duas, uma: ou se está incorrendo em ingenuidade, ou se está a sofismar, visto que não há como negar o viés inquisitivo que impregna o CPP.
Destarte, em conclusão, como se viu, não é correto afirmar que o Brasil adota um sistema acusatório, tampouco, consoante as lições de Jacinto Coutinho, misto. Assim, “Pensamos que o processo penal brasileiro é essencialmente inquisitório, ou neoinquisitivo se preferirem, para descolar do modelo histórico medieval. Ainda que se diga que o sistema brasileiro é misto, a fase processual não é acusatória, mas inquisitória ou neoinquisitória, na medida em que o princípio informador é o inquisitivo, pois a gestão da prova está nas mãos do juiz.”.[15]
4. Conclusão
Por tudo que foi exposto, nota-se que não há consenso na doutrina brasileira acerca de qual o sistema adotado pelo Direito Pátrio. Muitos autores de renome na seara jurídica sustentam com maestria suas posições, adotando, para tanto, relevantes argumentos.
Com efeito, embora haja certa celeuma, não se pode negar que o Direito Brasileiro vem, ainda que a passos lentos, evoluindo. Hoje, por exemplo, para se poder aplicar qualquer norma jurídica a algum caso concreto, deve-se, obrigatoriamente, fazer uma interpretação à luz da Constituição Federal.
Nesse passo, hodiernamente, tendo em vista o espírito democrático da Carta Cidadã de 88, não se pode dela descuidar um segundo sequer, sob pena de, por negligencia aos seus mandamentos, incidir em retrocesso, atravancando a tão querida evolução levada a afeito quando de sua elaboração.
Destaca-se, por fim, sobretudo em Direito Penal e Processo Penal, a importância da observação aos princípios informadores da CF, ela, sim, como era de se esperar, adotou um sistema acusatório, com todas as garantias processuais que devem alicerçar um Estado Constitucional e Democrático de Direito. Contudo, como alerta Guilherme de Souza Nucci, não obstante os princípios constitucionais, o operador do direito lida, diariamente, com um Código de Processo Penal do outro milênio, esse código – antigo e de espírito inquisitivo – é, portanto, sua ferramenta de trabalho.
A priori, deve-se tentar conformar, através de uma leitura constitucional, os diplomas ou, como sugere Aury Lopes Jr., “fazer uma ‘filtragem constitucional’ dos dispositivos incompatíveis com o princípio do acusatório (como o art. 156, 385 etc.), pois são “substancialmente inconstitucionais[16]”.
Em arremate, como solução, conclui o autor “Assumido o problema estrutural do CPP, a luta passa a ser pela acoplagem constitucional e pela filtragem constitucional, expurgando de eficácia todos aqueles dispositivos que, alinhados ao núcleo inquisitório, são incompatíveis com a matriz constitucional acusatória.”.[17]
5.Bibliografia
BORGES, Clara Maria Roman. Um olhar para além dos sistemas processuais penais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 104/2013, p. 147 Set / 2013.
DICIONÁRIO AURÉLIO. http://dicionariodoaurelio.com/sistema. Acesso em 02 de julho de 2015, às 08h58min.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015
__________http://www.conjur.com.br/2014-jul-11/limite-penal-dissonancia-cognitiva-imparcialidade-juiz. Acesso em 15/07/15 às 21h40min.
___________http://www.conjur.com.br/2014-dez-05/limite-penal-juiz-nao-condenar-quando-mp-pedir-absolvicao. Acesso em 15/07/15 às 21h03min.
MUCCIO, Hidejalma. Curso de processo penal. Bauru/SP: Edipro, 2000.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 9.ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. atual. de acordo com as leis nº 12.403, 12.432, 12.461, 12.483 e 12.529, todas de 2011, e Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. São Paulo: Atlas, 2012.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal.10. ed. rev., ampl. e atualizada de acordo com: - EC 45/04. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.
Notas
[1]http://dicionariodoaurelio.com/sistema. Acesso em 02 de julho de 2015, às 08h58min.
[2]RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal.10. ed. rev., ampl. e atualizada de acordo com: - EC 45/04. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p.49.
[3]BORGES, Clara Maria Roman. Um olhar para além dos sistemas processuais penais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 104/2013, p. 147 Set / 2013.
[4]Ibidem.
[5]LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 42.
[6] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 44.
[7] Ibdem.
[8] MUCCIO, Hidejalma. Curso de processo penal. Bauru/SP: Edipro, 2000. p.65
[9] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. págs. 46 e 47.
[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 9.ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 126.
[11] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. atual. de acordo com as leis nº 12.403, 12.432, 12.461, 12.483 e 12.529, todas de 2011, e Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. São Paulo: Atlas, 2012. p. 13 e 15.
[12] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 48.
[13] http://www.conjur.com.br/2014-dez-05/limite-penal-juiz-nao-condenar-quando-mp-pedir-absolvicao. Acesso em 15/07/15 às 21h03min.
[14] http://www.conjur.com.br/2014-jul-11/limite-penal-dissonancia-cognitiva-imparcialidade-juiz. Acesso em 15/07/15 às 21h40min.
[15] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 47.
[16] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 49.
[17] Ibidem. p. 49.