3.O estado plurinacional como uma alternativa para uma nova ordem nacional constitucional e internacional (mundial) democrática.
A América Latina vem sofrendo um processo de transformação social democrática importante e surpreendente. Direitos historicamente negados às populações originárias agora são conquistados. Em meio a estes variados processos de transformação social, percebemos que cada país, diante de suas peculiaridades históricas, vem trilhando caminhos diferentes, mas nenhum abandonou o caminho institucional da democracia representativa, somando a está uma forte democracia dialógica participativa.
Vamos apenas introduzir este conceito como fruto de um processo democrático que se iniciou com revoluções pacíficas, onde os povos indígenas, finalmente, após 500 anos de exclusão radical, reconquistam gradualmente sua liberdade e dignidade.
Como vimos a formação dos estados nacionais na América Latina ocorreu de maneira bastante diferente do processo Europeu. A formação do Estado moderno na América Latina os Estados nacionais ocorrem a partir das lutas pela independência no decorrer do século XIX. Um fator comum nestes Estados é o fato de que, quase invariavelmente, foram Estados construídos para uma parcela minoritária da população, onde não interessava para as elites econômicas e militares, que a maior parte da população se sentisse integrante, se sentisse parte de Estado. Desta forma, em proporções diferentes em toda a América, milhões de povos originários (de grupos indígenas os mais distintos) assim como milhões de imigrantes forçados africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer idéia de nacionalidade. O direito não era para estas maiorias, a nacionalidade não era para estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se sentissem nacionais.
Neste sentido, as revoluções da Bolívia e do Equador, seus poderes constituintes democráticos, fundam um novo Estado, capaz de superar a brutalidade dos estados nacionais nas Américas: o Estado plurinacional, democrático e popular.
A idéia de Estado Plurinacional pode superar as bases uniformizadoras e intolerantes do Estado nacional, onde todos os grupos sociais devem se conformar aos valores determinados na constituição nacional em termos de direito de família, direito de propriedade e sistema econômico entre outros aspectos importantes da vida social.
A grande revolução do Estado Plurinacional é o fato que este Estado constitucional, democrático participativo e dialógico pode finalmente romper com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucional e democrático representativo (pouco democrático e nada representativo dos grupos não uniformizados), uniformizador de valores e logo radicalmente excludente.
O Estado plurinacional reconhece a democracia participativa como base da democracia representativa e garante a existência de formas de constituição da família e da economia segundo os valores tradicionais dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais) existentes.
Nas palavras de Ileana Almeida[17] sobre o processo de construção do Estado Plurinacional no Equador:
“Sin embargo, no se toma en cuenta que los grupos étnicos no luchan simplemente por parcelas de tierras cultivables, sino por un derecho histórico. Por lo mismo se defienden las tierras comunales y se trata de preservar las zonas de significado ecológico-cultural.”
Certamente este Estado joga por terra o projeto uniformizador do Estado moderno que sustenta a sociedade capitalista como sistema único fundado na falsa naturalização da família e da propriedade e mais tarde da economia liberal.
Nas palavras de Ileana Almeida:
“Al funcionar el Estado como representación de uma nacion única cumple también su papel en el plano ideológico. La privación de derechos políticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva al desconocimiento de la existência misma de otros pueblos y convierte al indígena em vitima del racismo. La ideología de la discriminación, aunque no es oficial, de hecho está generalizada em los diferentes estratos étnicos. Esto empuja a muchos indígenas a abandonar su identidad y pasar a forma filas de la nación ecuatoriana aunque, por lo general, en su sectores más explotados.”[18]
A Constituição da Bolívia, na mesma linha de criação de um Estado Plurinacional dispõe sobre a questão indígena em cerca de 80 dos 411 artigos. Pelo texto, os 36 “povos originários” (aqueles que viviam na Bolívia antes da invasão dos europeus), passam a ter participação ampla efetiva em todos os níveis do poder estatal e na economia. Com a aprovação da nova Constituição, a Bolívia passou a ter uma cota para parlamentares oriundos dos povos indígenas, que também passarão a ter propriedade exclusiva sobre os recursos florestais e direitos sobre a terra e os recursos hídricos de suas comunidades. A Constituição estabelece a equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça ordinária do país. Cada comunidade indígena poderá ter seu próprio “tribunal”, com juízes eleitos entre os moradores. As decisões destes tribunais não poderão ser revisadas pela Justiça comum.
Outro aspecto importante é o fato da descentralização das normas eleitorais. Assim os representantes dos povos indígenas poderão ser eleitos a partir das normas eleitorais de suas comunidades.
A Constituição ainda prevê a criação de um Tribunal Constitucional plurinacional, com membros eleitos pelo sistema ordinário e pelo sistema indígena.
A nova Constituição democrática transforma a organização territorial do país. O novo texto prevê a divisão em quatro níveis de autonomia: o departamental (equivalente aos Estados brasileiros), o regional, o municipal e o indígena. Pelo projeto, cada uma dessas regiões autônomas poderá promover eleições diretas de seus governantes e administrar seus recursos econômicos.
O projeto constitucional avança ainda na construção do Estado Plurinacional ao acabar com a vinculação do estado com a religião (a religião católica ainda era oficial) transformando a Bolívia em um Estado laico (o que o Brasil é desde 1891).
Outro aspecto importante é o reconhecimento de várias formas de constituição da família.
Além de importante instrumento de transformação social, garantia de direitos democráticos, sociais, econômicos plurais, e pessoais diversos, a Constituição da Bolívia é um modelo de construção de uma nova ordem política, econômica e social internacional. É o caminho para se pensar em um Estado democrático e social de direito internacional.
Citando novamente Ileana Almeida:
“En contra de los que podría pensarse, el reconocimiento de la especificidad étinica no fracciona la unidad de las fuerzas democráticas que se alinean en contra del imperialismo. Todo lo contrario, mientras más se robustezca la conciencia nacional de los diferentes grupos, más firme será la resitencia al imperialismo bajo cualquiera de sus formas (genocídio, imposición política,, religiosa o cultural) y, sobre todo, la explotación econômica”.[19]
A América Latina (melhor agora a América Plural), que nasce renovada nestas democracias dialógicas populares, se redescobre também indígena, democrática, economicamente igualitária e socialmente e culturalmente diversa, plural. Em meio à crise econômica e ambiental global, que anuncia o fim de uma época de violências, fundada no egoísmo e na competição a nossa América anuncia finalmente algo de novo, democrático e tolerante, capaz de romper com a intolerância unificadora e violenta.
Conclusão
Qual a conexão entre o direito internacional e o novo direito constitucional boliviano e equatoriano? Este é o ponto central e a proposta final deste artigo.
Trata-se da substituição de um sistema europeu pretensamente (e falsamente) civilizatório e universal por um sistema não hegemônico, democrático, dialógico, plural e complementar. Vamos explicar cada uma destas palavras.
A proposta de uma nova ordem social, econômica e cultural mundial (ou internacional) parte de uma mudança radical na sua constituição. O direito europeu não será mais visto como universal, como o modelo de civilização mais evoluído. O pensamento europeu, a filosofia européia não será mais vista como a única filosofia e os seus valores como os mais avançados. No lugar de uma ordem hegemônica devemos construir um sistema não hegemônico, onde a cultura e os valores europeus não sejam impostos pelo poder econômico e militar como universais, mas onde se reconheça a existência de sistemas de valores, de sistemas filosóficos e culturais que possam ser complementares. O primeiro passo, portanto, é uma radical mudança paradigmática. O que é hoje, muitas vezes considerado universal, como o individualismo liberal e o liberalismo econômico, por exemplo, deverá ser compreendido como regional e cultural, e logo pertencente a uma racionalidade específica ou a uma forma de consciência entre outras formas de consciência. O sistema econômico e social europeu ou norte-americano é regional e não universal.. Em outras palavras, as transformações ocorridas em outras sociedades, em outras comunidades, não levarão inevitavelmente a um só final. Isto representa a superação da visão linear da história. Trata-se, portanto, da superação da idéia de que a evolução das culturas inferiores levará a civilização superior que seria a européia.
Uma nova ordem mundial deve partir de uma reformulação nas bases ideológicas. Sem isto não se constrói nova ordem.
A partir daí, a nova ordem não hegemônica não haverá espaço para construções hegemônicas e muito menos sua institucionalização como ocorre por exemplo no conselho de segurança.
Os pragmáticos de sempre dirão neste momento: mas como desafiar o poder das potências nucleares? Podemos trazer para este debate o mito dos deuses gregos. Os deuses como criação dos mortais, dependiam da crença destes mortais para existirem. Ou seja, todo poder dos deuses depende da crença de quem sofre a ação deste poder. O dia em que as pessoas (os simples mortais) não acreditarem mais nos deuses, eles deixaram de existir. Exemplos práticos desta força existem na história recente. A força das potencias econômicas; das potências nucleares; do poder econômico privado, existe dentro de um sistema de valores específicos. É um jogo que se recusarmos a jogar não terá mais razão de existir.
A nova ordem global fundada na experiência democrática boliviana deve ser portanto multi-paradigmática. As pessoas, os grupos, países, que sentarem à mesa para discutir terão como obrigatoriedade o diálogo permanente. O diálogo permanente será a principal ou talvez única obrigatoriedade. A grande diferença é que neste novo espaço não poderão existir os donos das regras do jogo; não poderão existir os donos dos valores que fundamentam o diálogo; não poderão existir os donos das sanções e os permanentemente sancionados. Este espaço deverá ser construído sobre uma lógica de complementaridade, onde diversas filosofias, diversos valores, diversas formas de consciência sejam reconhecidas, não apenas como iguais, mas como complementares.
Uma pergunta deverá ser formulada para reflexão a partir de agora: quem serão os novos sujeitos deste novo direito internacional democrático?
Notas
[3] Sobre o tema ler dois livros importantes de Domenico Losurdo: LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie, Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2006 e LOSURDO, Domenico. A linguagem do Império – léxico da ideologia estudunidense, Editora Boitempo, São Paulo, 2010.
[4] Karl Adolf Eichmann foi um político da Alemanha nazista e tenente coronel da SS. Foi o responsável pela logística de extermínio de milhões de pessoas. Organizou a identificação e o transporte de pessoas para os diferentes campos de concentração.
[5] O Livro de Jacques Sémelin analisa de forma comparada e com profundidade estes três genocídios analisando o nacionalismo e a construção da nacionalidade como um mecanismo narcisista de afirmação em relação ao outro: SÉMELIN, Jacques. Purificar e Destruir, Editora Difel, Rio de Janeiro, 2009.
[6] Sobre o tema: DUSSEL, Enrique. 1492: O encobrimento do outro – origem e mito da modernidade, Editora Vozes, Petrópolis, 1993.
[7] Para Enrique Dussel o Outro não foi “descoberto” como Outro, mas foi “em-coberto” como o “si mesmo” que a Europa já era desde sempre. DUSSEL, Enrique. 1492, o encobrimento do outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1993.
[8] Sobre o tema ler Loic Wacquant: WACQUANT, Loic. Prisões da Miséria, Editora Jorge Zahar, São Paulo, 1999 e WACQUANT, Loic, As duas faces do gueto, Editora Boitempo, São Paulo, 2008.
[9] Sobre o assunto o interessante livro de Pierre Dardot e Christian Laval sobre uma nova subjetividade construída em escala global e presente em varias esferas da vida privada e dos espaços públicos: DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison Du Monde – essai sur la societé néolibérale, La Decouverte, Paris, 2009.
[10] A naturalização do Direito e da Economia, são exemplos de mecanismos ideológicos poderosos uma vez que desmobilizam as pessoas. Se somos sujeitos às regras naturais no campo do direito e da economia de nada adianta querermos fazer diferente, pois não podemos mudar as “leis” da natureza ou as “leis” da matemática. É claro que o Direito assim como a Economia não são ciências naturais ou exatas. São ciências sociais, históricas, frutos de nossa ação no mundo.
[11] Em diversas salas de aula do curso de Direito, assim como em várias palestras pedi que os alunos citassem nome de filósofas e filósofos conhecidos. Na esmagadora maioria dos casos os alunos se recordaram de filósofos europeus, todos homens, a maioria gregos e alemães.
[12] Sobre o tema o livro: ESTERMANN, Josef. Si El sur fuera El Norte – Chakanas interculturales entre Andes y Occidente, Ediciones Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008.
[13] Sobre o tema, entre outros livros, ler: WALLERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu, Editora Boitempo, São Paulo, 2007.
[14] Interessante o livro de Benedict Anderson “Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo, Editora boitempo, São Paulo, 2008”.
[15] Sobre o tema ler : CUEVA, Mario de la. La Idea de Estado, Fondo de Cultura Económica, México, 1990.
[16] Chega a ser, muitas vezes, ridícula a discussão sobre mais Estado ou menos Estado no capitalismo. Não há capitalismo sem Estado e a dimensão do Estado é na maioria das vezes relacionada às necessidades do capital.
[17] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008, pág.21.
[18] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008, pág.21.
[19] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008, pág.19.