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O autoritarismo e o processo penal brasileiro: uma estreita relação

Agenda 24/11/2015 às 12:38

Enquanto o processo penal for utilizado como ferramenta seletiva de segregação social, decisivamente influenciada pelo autoritarismo e pelo punitivismo, basendo-se em critérios utilitaristas, a criminalidade permanecerá incólume.

Nem todas as matrizes e influências autoritárias brasileiras derivam do obscurantismo militar instaurado em 1964. Em verdade, o regime militar de 1964, que contou com ampla conivência civil à época, apenas deu ensejo ao estabelecimento efetivo de um Estado policialesco e alheio às demandas democráticas.

Todavia, uma das grandes instituições autoritárias brasileiras é o Código de Processo Penal. Nosso código foi editado em 1941, podendo-se afirmar que se trata de uma cópia inquisitiva do Código Rocco italiano de 1930, posto em vigor sob a égide da ditadura fascista de Mussolini.

Algumas reformas foram empreendidas ao longo de todos esses anos, com o intuito de minar o ranço autoritário ínsito ao projeto original. Teríamos chegado ao sistema acusatório, cuja origem remonta ao direito grego, e que tem como característica marcante a separação entre as funções desempenhadas no processo, quais sejam, as de acusar, defender e julgar, sendo essas funções conferidas a personagens processuais distintos. No sistema inquisitivo, o magistrado é, por excelência, o gestor da prova, desde a fase investigatória até o esgotamento de seu múnus jurisdicional.

Mas o debate acerca do acolhimento ou não do sistema acusatório pelo ordenamento jurídico-processual penal brasileiro não é objeto do presente trabalho.

Importa-nos traçar um breve paralelo entre o autoritarismo e o processo penal das terras tupiniquins. Ora, é cediço que um dos traços proeminentes dos regimes autoritários, no que tange ao processo penal, é sua transformação num mecanismo de pacificação social. A figura do magistrado como julgador imparcial e ignorante em termos de recognição de prova dá espaço para um verdadeiro órgão de segurança pública, responsável pela aniquilação daquele acusado da prática de um crime.

Há que se destacar que esta aniquilação é legitimada pelo senso comum e pela própria comunidade jurídica. Estamos em tempos em que magistrados saem a público e, em prol do combate intransigente à corrupção, defendem a "implosão" do sistema recursal, com a supressão do efeito suspensivo de alguns recursos em face da prolação de sentenças penais condenatórias sem o trânsito em julgado. Eficácia imediata às sentenças penais condenatórias recorríveis. Prensução de inocência solapada e Direito Penal de garantias vilipendiado.

Vemos também membros do Ministério Público, no afã da "moralização nacional", atribuírem às prisões cautelares uma função inédita: a de contribuição decisiva para o desvendamento da trama criminosa. Isso nos remete à Baixa Idade Média, em que a prisão preventiva era o pressuposto lógico de qualquer procedimento criminal, numa inversão perversa de valores penais. Lembro-me também, com arrimo no professor Rubens Casara, da "purificação do corpo político", engendrada por Hitler, no pleno vapor do nazismo alemão, com a precarização dos procedimentos, dos recursos e das regras probatórias, de modo que os acusados fossem tratados com a maior severidade possível, fossem culpados ou não.

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Ora, a que ponto chegamos? Esquecemos que o processo é um instrumento, um meio, e não um fim em si mesmo? Parece-me que sim. A doutrina mais lúcida em termos de processo penal vem sendo olimpicamente ignorada pelos operadores do direito, e isso tem gerado impactos profundos no sistema penal como um todo, e aqui incluo a polícia, o Ministério Público, o Judiciário e o próprio espectro prisional.

Outro ponto a ser destacado entre a relação umbilical entre o autoritarismo e o processo penal é o da segurança pública. Por segurança pública muitos entendem o uso da violência no combate à criminalidade.

E aqui voltamos ao processo penal: processo penal não se presta ao combate da criminalidade. Essa não é a sua função precípua. O processo penal é um instrumento de aplicação da pena, nos moldes definidos pela constituição, com o respeito categórico às garantias penais e processuais penais, àquele sobre o qual foi emitida uma certidão de culpa. Assim entende o professor Casara:

Tem-se, então, uma visão de mundo que compreende o processo penal como mero instrumento de repressão e controle social, enquanto o juiz criminal passa a figurar como órgão de segurança pública ao lado das instituições policiais e do Ministério Público. Há, assim, uma tendência à administrativização do juízo criminal, que passa a atuar de maneira parcial no combate aos "criminosos" (o juiz como "inimigo" da pessoa apontada como criminosa). Ao mesmo tempo, essa perspectiva gera uma epistemologia autoritária, avessa à imposição de limites ao poder de punir, bem como o enfraquecimento das garantias processuais, que passam a ser vistas como entraves à eficiência repressiva (registre-se, por oportuno, que a crença na utilidade do processo penal na pacificação social não encontra suporte em pesquisas empíricas acerca dos efeitos da persecução penal no acusado/punido e na coletividade).

Todavia, o que vemos, cotidianamente, é o processo como tática de extermínio, ou de "pacificação social", em que os exterminados são os indesejados pela sociedade de consumo. Essa é a realidade nua e crua. Quase metade da nossa população carcerária ainda não foi julgada. São presos provisórios os quase 50% dos nossos custodiados. E entre esses quase 50%, arrisco-me a dizer que uma parcela substancial é composta por negros e pobres, que em nada interessam à lógica perversa do capitalismo. Bauman os chama de "consumidores falhos". São os aspectos da seletividade economicista.

Enquanto o processo penal for utilizado como ferramenta seletiva de segregação social, decisivamente influenciada pelo autoritarismo e pelo punitivismo, basendo-se em critérios utilitaristas, a criminalidade permanecerá incólume. Estaremos remando contra a maré, como temos feito nos últimos 74 anos de vigência do nosso código.

Sobre o autor
João Pedro Guerra

Advogado Criminalista; Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal; apoiador filiado ao LEAP-Brasil (Law Enforcement Against Prohibition - Agentes da Lei Contra a Proibição); Membro da União dos Advogados Criminalistas (UNACRIM); Membro do Instituto dos Advogados de Pernambuco (IAP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, João Pedro. O autoritarismo e o processo penal brasileiro: uma estreita relação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4528, 24 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41451. Acesso em: 5 nov. 2024.

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