Carlos despede-se de sua esposa, Margarida, e sai para o trabalho. No caminho, lembra-se que esqueceu a carteira. Carlos, então, comete um grave erro: não liga para avisar que está retornando. Ao chegar em casa, Carlos se depara com uma cena de amor entre a esposa e seu amante. Transtornado, xinga Margarida de vagabunda, desfere vários socos em seu rosto, grita que, enquanto ele bota dinheiro na casa, ela só quer saber de ir pra gandaia, arma-se com uma faca e mata Margarida.
Cansada da violência de Rubens, Joana decide: vai embora. Quando ele chega em casa, flagra Joana arrumando as malas. Ele argumenta, mas não há mais volta. Rubens vai à cozinha e, na volta, desfere golpes com um facão na cabeça de Joana, tirando-lhe a vida.
Steve recebe um aviso, via rádio, de que um veículo suspeito de receptação ronda a área que ele patrulha. Logo em seguida, avista o automóvel e inicia a perseguição. Ao emparelhar a viatura policial com o carro suspeito, o traficante Maycon, que ocupava o banco do passageiro, saca uma arma e efetua dois tiros, acertando fatalmente Steve.
O soldado Sales fazia ronda, quando visualizou um acidente de trânsito e os dois motoristas discutindo entre si. Ele então desceu do seu veículo e se aproximou de ambos. Nesse momento, um dos motoristas, de nome Jorge, perguntou o que ele estava fazendo ali, ouvindo do policial que ele deveria ter mais respeito quando se dirigisse a uma pessoa de farda. Após ouvir isso, Jorge entrou em seu carro, voltou com uma arma de fogo na mão e efetuou três disparos, matando Sales.
O crime de homicídio recebeu recentemente duas novas qualificadoras: (a) inciso VI, quando o delito for contra a mulher em sua condição de sexo feminino e; (b) inciso VII, quando os acontecimentos se derem em desfavor de policiais, no exercício de suas funções, ou contra seus parentes.
Uma vez apresentadas ao meio jurídico, passou-se a questionar qual seria a natureza dessas novas qualificadoras, se objetiva, se subjetiva, e, em decorrência disso, se elas podem coexistir com outras qualificadoras do mesmo tipo penal.
Em primeiro plano, é preciso destacar que o surgimento dessas duas novas modalidades de agravamento do crime dizem respeito única e exclusivamente a escolhas políticas.
A partir da Lei Maria da Penha, o assunto relacionado à violência familiar, e, principalmente, à condição de mulher, definitivamente ganhou no cenário jurídico a importância e o devido respeito que já há tempos merecia.
Foi então pensada uma qualificadora específica para o feminicídio, sendo ela cuidadosamente lapidada pelo legislador, a ponto de ele fazer questão da existência de uma norma autêntica, em que ele próprio esclarece o que efetivamente é a condição feminina.[1]
Logo em seguida a seu surgimento, foi publicada a inclusão da outra qualificadora, relativa à condição do policial, uma decisão igualmente política, em face da crescente onda de assassinatos, a que o Brasil vem assistindo, contra seus policiais combatentes.
Vê-se, portanto, que o legislador tem buscado agravar a situação do homicida não somente em razão de um motivo ou mesmo do modo como o crime acontece. Aliás, é inocência imaginar que um delito tão complexo – como é o homicídio – deva ser encarado como mais grave apenas quando disser respeito à sua motivação ou mesmo ao modo de agir de seu agente.
Diante disso, há vozes que se anteciparam para afirmar que as novas qualificadoras possuem um caráter subjetivo, já na deliberada intenção de rotulá-la dessa forma e, assim, limitá-la em sua incidência, consoante a jurisprudência quase entediante de que não é possível haver duas qualificadoras subjetivas em um mesmo homicídio.
Curioso é supor que o legislador criou duas novas figuras de amplificação para o homicídio, mas que, se acolhida referida tese, não trará nenhuma mudança no contexto penal, a não ser uma inútil e desnecessária aplicação do princípio da especialidade.
É de se imaginar a criação do projeto de lei, toda sua tramitação, suas modificações e emendas, o consenso na necessidade de conceituar, por exemplo, a condição feminina, para tudo isso terminar em nada, ante uma interpretação completamente distorcida e equivocada do significado das novas qualificadoras.
Antes o contrário, ante a aprovação das novas qualificadoras, o Poder Legislativo deixa bastante evidente que é preciso endurecer na punição daqueles que praticam crimes contra esse grupo de mulheres e, de igual modo, de policiais.
Quando a doutrina se refere a qualificadoras subjetivas, ela aponta para as que apontam motivos ou finalidades (incisos I, II e V). Já quando diz respeito a qualificadoras objetivas, ela indica as que estão relacionados ao modo ou meio utilizados para o acontecimento (incisos III e IV).
Ocorre que, com o surgimento das duas novas qualificadoras, torna-se perceptível que nenhuma delas encontra amparo na classificação outrora existente, na medida em que elas nem tratam de motivo, tampouco de modo de agir.
Em verdade, faz-se mister a criação de uma nova categoria, uma que abarque as qualificadoras que irão agravar a pena baseadas na pessoa da vítima, no ser, seja ele a mulher ou o policial, a qual poderíamos denominar de “qualificadoras ontológicas”.
Desse modo, as qualificadoras poderiam ser classificadas da seguinte forma: (a) subjetivas (torpe, fútil ou para assegurar algo); (b) objetivas (crueldade e covardia); ou (c) ontológicas (condição de mulher e policial em serviço).
A narrativa das quatro situações hipotéticas que encabeçam o texto pode servir para analisarmos se, afinal de contas, é possível ou não coabitarem as qualificadoras ontológicas com as subjetivas.
No primeiro exemplo, o crime de Carlos é o clássico caso de privilégio decorrente da violenta emoção. O motivo do delito está no fato de Carlos descobrir-se traído. Entretanto, a circunstância de ele matar a mulher (e não o homem), dar-lhe uma surra antes do assassinato e expor sua condição de mulher de forma a menosprezá-la (eu trabalho, você se aproveita do meu trabalho), tudo isso implica a incidência inequívoca da qualificadora do inciso VI, do § 2º, do artigo 121 do Código Penal.
Já na segunda estória, o delito sofrido por Joana de igual modo é característico de uma violência doméstica, pois ela é morta exatamente por sua condição de mulher. Há um histórico de violência doméstica. No entanto, se fôssemos identificar a motivação – qualificadora subjetiva –, chegaríamos à conclusão de que o delito aconteceu por motivo torpe, já que Rubens não admitia que Joana fosse embora de sua casa.
Na terceira hipótese, Steve, em sua função de policial, perseguia um traficante quando foi atingido pelos disparos. Steve foi morto “em combate” e tal circunstância, se provada for, já será suficiente para fazer incidir a qualificadora do inciso VII do § 2º do artigo 121 do Código Penal. Só que, além disso, o motivo do marginal era assegurar a impunidade, seja do crime de tráfico de drogas, seja diante da receptação do veículo perseguido. Mais uma vez, resta demonstrado que a qualificadora da função policial e a subjetiva do inciso V do mesmo dispositivo legal são como água e óleo, não se misturam e, por isso, podem coabitar em uma mesma acusação.
Por fim, na quarta e última situação ventilada, no crime cometido por Jorge, surge a partir de sua discussão com o soldado Sales, ou seja, esta é a motivação que, a depender das circunstâncias e do tom utilizado por Jorge, poderá nem qualificar o crime em face do escopo. De outro norte, algo é indiscutível: Sales foi morto ocupando sua função policial. Nesse diapasão, haverá a incidência da qualificadora do inciso VII.
Após a avaliação de contextos reais dos problemas fáticos que surgem no cotidiano das audiências e plenários dos Tribunais do Júri de todo o Brasil, parece cristalino que as qualificadoras ontológicas, recentemente ingressadas no tipo penal do homicídio, não geram qualquer embaraço junto a qualificadoras de cunho subjetivo, razão pela qual é absolutamente viável a coexistência dessas duas categorias quando do cometimento de um crime de homicídio.
Notas
[1] Art. 121. Omissis
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.