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Inconstitucionalidade da garantia da ordem pública como fundamento da prisão preventiva

Agenda 20/08/2015 às 16:21

Garantir a ordem pública é função do Estado. Trata-se de questão de segurança pública, e não de processo penal.

Sumário: 1. Introdução. 2. Prisão preventiva - embasamento legal e definiição de "ordem pública". 3. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

A prisão preventiva se encontra em ferrenha discussão doutrinária e jurisprudencial no que tange o próprio instituto, bem como seus fundamentos, pressupostos e requisitos. Coloca-se em questão a privação da liberdade de forma cautelar frente aos direitos constitucionais do acusado, e, ainda, ponderando os valores da própria sociedade. Quando o contexto do crime se destaca no meio social, muitas vezes nos deparamos com interpretações ampliativas do conceito de alguns pressupostos, como, por exemplo, a “ordem pública”, fazendo com que o instituto não seja aplicado com uniformidade em todos os casos.


2. PRISÃO PREVENTIVA - EMBASAMENTO LEGAL E DEFINIÇÃO DE "ORDEM PÚBLICA"

Segundo o STF, “a prisão preventiva é um instrumento processual que pode ser utilizado pelo juiz durante um inquérito policial ou na ação penal, devendo, em ambos os casos, estarem preenchidos os requisitos legais para sua decretação.”[1]

De início, interessante lembrar a origem da prisão preventiva e o contexto no qual foi criada, conforme descreve Aury Lopes Jr:

“Sua origem remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazifascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes.”[2]

A regulamentação da prisão preventiva encontra-se nos artigos 311 a 316 do Código de Processo Penal. Sua decretação ocorrerá apenas em situações excepcionais, uma vez que o ordenamento jurídico coloca a liberdade do indivíduo como regra, baseada no princípio constitucional da presunção de inocência e nos princípios próprios do processo penal, como a estrita legalidade, contraditório e ampla defesa. Além do caráter excepcional, a prisão preventiva exige, ainda, a presença de dois requisitos: o fumus commissi delicti e o periculum libertatis.

Daí é possível dizer que haverá prisão cautelar apenas quando for evidente e/ou iminente a ameaça à prestação jurisdicional, com fundamento nas estritas hipóteses do rol taxativo previsto pelo legislador, presentes no artigo 312:

  1. Garantia da ordem pública
  2. Garantia da ordem econômica
  3. Por conveniência da instrução criminal
  4. Para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria

Entretanto, a ausência de definição de tais possibilidades abriu espaço para conceitos absolutamente subjetivos do que seria “ordem pública”, por exemplo. Trata-se de termo aberto à valorações pessoais, implicando um também amplo juízo de valor do juízo no momento da decretação da prisão preventiva. Sendo assim, já se permite concluir que fundamentar tal decreto na garantia da ordem pública é violar o princípio da estrita legalidade, uma vez que seu conteúdo é subjetivo, vago, genérico, indeterminado, impreciso, pois dá azo à valorações ideológicas do próprio Juiz.

“Deve-se levar em conta ainda os componentes ideológicos que permeiam a noção de ordem pública, pois uma visão maniqueísta da realidade social tende a identificar a idéia de ordem com a região do bem e da moralidade, onde estão as pessoas que gozam de alguns direitos básicos como a dignidade, o trabalho, o lazer, a escola, a saúde, a moradia etc.”[3]

Além disso, garantir a ordem pública é justamente a função do Estado. Trata-se de questão de segurança pública, e não de Direito – muito menos de Processo Penal. Levar um indivíduo à prisão, na maioria das vezes antes mesmo da instrução criminal, é uma dupla violação à presunção de inocência:

“(...) não há como negar que a decretação de prisão preventiva com o fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos baseia-se, sobretudo, em dupla presunção de culpabilidade: a primeira, de que o imputado realmente cometeu um delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticará outro crime ou, ainda, envidará esforços para consumar o delito tentado. (...)” [4]

A jurisprudência costuma colocar dentro de “garantia da ordem pública” as mais diversas justificativas. Uma delas é o clamor social, isto é, a indignação popular, que não pode servir como fundamento porque não encontra respaldo legal, segundo o próprio Supremo Tribunal Federal:

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Portanto, o argumento de que o clamor público ocorreu - facilmente ocorreria em cidade pequena - não autoriza a custódia preventiva. É um risco muito grande estarmos a decidir imbuídos, de certo modo, pelo clamor público.O clamor público é um vento que sopra mais forte de um lado ou mais forte de lado diverso, apesar do vento ser sempre forte contra crimes graves.Mas não é ele que autoriza a custódia preventiva; é ele, sim, e mais a instrução criminal; é ele, sim, e mais o risco da aplicação da Lei Penal. Mas para isso não podemos presumir o risco da instrução criminal; não podemos presumir o risco da aplicação da Lei Penal, ao contrário, a paciente, ao que se disse, tem passado favorável, é primária, tem residência fixa. Se isso não é valor para evitar a prisão preventiva, forma um somatório capaz de arrefecer, de mitigar, de fazer esmaecer a periculosidade que se quis ao se colocar em liberdade a mulher.Estou a meditar que não há risco provado, logicamente presumido, que a paciente permanecendo solta iria escapar da sanção penal; que a paciente permanecendo solta iria aliar-se de contingenciamento psicológico e revel perversidade contra as testemunhas.[5]

E não é outra a posição da doutrina:

“[...] o alarme social ou clamor público é um conceito muito vago para autorizar a custódia preventiva, em especial, porque se trata de um estereótipo saturado na maioria das vezes de carga emocional sem base empírica que exigirá uma prévia investigação estatística sociológica que meça o efeito social real que o fato haja produzido”[6]

Outro argumento utilizado para decretar a prisão preventiva é a necessidade do “restabelecimento da credibilidade das instituições”. Busca-se recuperar a confiança social no Estado mediante a privação da liberdade de um indivíduo. Tal argumento, nas palavras de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa, “é uma falácia”:

“Nem as instituições são tão frágeis a ponto de se verem ameaçadas por um delito, nem a prisão é um instrumento apto para esse fim, em caso de eventual necessidade de proteção. Para além disso, trata-­se de uma função meta processual incompatível com a natureza cautelar da medida.  Noutra dimensão, é preocupante – sob o ponto de vista das conquistas democráticas obtidas – que a crença nas instituições jurídicas dependa da prisão e pessoas. Quando os poderes públicos precisam lançar mão da prisão para legitimar-­se, a doença é grave, e anuncia um grave retrocesso para o estado policialesco e autoritário, incompatível com o nível de civilidade alcançado.”[8]

Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal:

(...) A PRESERVAÇÃO DA CREDIBILIDADE DAS INSTITUIÇÕES NÃO SE QUALIFICA, SÓ POR SI, COMO FUNDAMENTO AUTORIZADOR DA PRISÃO CAUTELAR

Não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito de justificação do ato excepcional da prisão cautelar, a alegação de que essa modalidade de prisão é necessária para resguardar a credibilidade das instituições.[9]

Reforçando a dupla violação ao princípio da presunção de inocência, os juízes costumam, ainda, fundamentá-la na garantia da ordem pública segundo o “risco de reiteração da conduta criminosa”, que nada mais é que presumir que o suspeito voltará a cometer crime pelo qual sequer foi condenado.

“A prisão para garantia da ordem pública sob o argumento de “perigo de reiteração” bem reflete o anseio mítico por um direito penal do futuro, que nos proteja do que pode (ou não) vir a ocorrer. Nem o direito penal, menos ainda o processo, está legitimado à pseudotutela do futuro (que é aberto, indeterminado, imprevisível). Além de inexistir um periculosômetro (tomando emprestada a expressão de ZAFFARONI), é um argumento inquisitório, pois irrefutável. Como provar que amanhã, se permanecer solto, não cometerei um crime? Uma prova impossível de ser feita, tão impossível como a afirmação de que amanhã eu o praticarei. Trata-se de recusar o papel de juízes videntes, pois ainda não equiparam os foros brasileiros com bolas de cristal (...)”[10]


3. CONCLUSÃO

Atualmente, o Brasil enfrenta uma superlotação endêmica de norte a sul. Os dados fornecidos pelo InfoPen[11], do Ministério da Justiça, em junho de 2013 mostraram que, em nosso país, mais de 574 mil pessoas estavam presas, das quais quase metade – 215 mil – em decorrência de prisão provisória. Ao mesmo tempo em que somos a quarta maior população carcerária do mundo, o déficit de vagas passa de 230 mil.

Ao mesmo tempo, em 37,2% dos casos em que houve aplicação de prisão provisória, ao final do processo os acusados não são condenados à prisão, ou recebem penas menores que seu período de encarceramento inicial.

Neste contexto, a edição da Lei 12.403/2011 trouxe importantes alternativas visando a aplicação de medidas cautelares substitutivas da prisão preventiva, como o uso de tornozeleira eletrônica. Tais medidas possuem o condão de melhorar o cenário penitenciário atual, pois são ferramentas de reafirmação e aplicação do que já diz o próprio ordenamento jurídico: a regra é a liberdade, e prisão preventiva é excepcional.


nOTAS

[1] http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=P&id=441. Acesso em 16.8.2015, às 15h03.

[2] LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal” 11ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014.

[3] MACHADO, Antônio Alberto. Prisão Cautelar e Liberdades Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005. p. 112.

[4] DELMANTO, Roberto Junior. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p 179.

[5] STJ, HC 34.673, Rel. Min. Paulo Medina, DJe 19.9.2005

[6] MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio. Presunção de Inocência e Prisão Cautelar. São Paulo: Editora Saraiva, 2001

[8] http://www.conjur.com.br/2015-fev-06/limite-penal-crise-identidade-ordem-publica-fundamento-prisao-preventiva. Acesso em 16.8.2015, às 16h01.

[9] STF, HC 97466 DF , Rel. Min. Celso De Mello, DJe 05.11.2009

[10] LOPES Jr., Aury, em “Direito Processual Penal”. 11ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014

[11] http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/transparencia-institucional/estatisticas-prisional/anexos-sistema-prisional/total-brasil-junho-2013.pdf . Acesso em 16.8.2015, às 19h.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Fernanda Carolina Leonildo. Inconstitucionalidade da garantia da ordem pública como fundamento da prisão preventiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4432, 20 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41864. Acesso em: 23 dez. 2024.

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