A atividade investigativa é um marco na história da humanidade, encontramos notícias dessas atividades já na bíblia, que a considera a segunda profissão mais antiga do mundo1.
Nessa senda, “há várias referências à espionagem nos cinco livros de Moisés do Velho Testamento, que os judeus chamam de Torah, especialmente em Números, capítulo 13, em que Deus ordena a Moisés que envie espiões à terra de Canaã, sendo cada um deles de uma das tribos de Israel, cujas funções os tornam então príncipes. A outra referência direta é no livro de Josué, capítulo 2, em que Josué envia dois espiões para fazer o reconhecimento avançado de Jericó. A estadia dos espiões de Josué na casa da prostituta Raabe, tal como aparece na Bíblia, provavelmente foi a origem do tratamento bastante comum da espionagem como a “segunda profissão mais antiga do mundo” 2.
Talvez por isso (dinâmica/acuidade da investigação criminal) a explicação para as inúmeras instituições se imiscuírem de autoridades investigativas e sair investigando fatos sem possuir qualquer respaldo constitucional3, fato que ocorre, muitas vezes, quando a Polícia Militar (sem demonizar a ilustre instituição, mas a qual tem competência para a prevenção dos delitos mediante o policiamento ostensivo, conforme art. 144, §5º, da CF4, e não a competência investigativa a qual é de atribuição da Polícia Civil) lavra os inúmeros Termos Circunstanciados.
Segundo Alexandre Morais da Rosa5, “a Polícia Militar é órgão da segurança pública. Compete a esta o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, sem qualquer competência para instaurar ou conduzir investigações policiais, salvo nos crimes militares, mesmo no âmbito dos juizados especiais”.
A competência investigativa, no ordenamento jurídico pátrio, cabe à Polícia Civil ou Federal a depender do caso concreto. Ademais, a própria Carta Maior é expressa neste sentido:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
(...)
IV - polícias civis;
(...)
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
A fim de corroborar o texto Constitucional e dar maior segurança jurídica às investigações realizadas pelo Delegado de Polícia6, o qual dirige a Polícia Civil ou Federal, o Congresso Nacional editou a Lei 12.830/13, a qual é precisa em estabelecer que:
(...)
Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
§ 2º Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.
(...)
Nota-se, assim, que a investigação criminal é realizada, comumente, por inquéritos policiais ou por outro procedimento previsto em lei. Como, por exemplo, o Termo Circunstanciado, ambos, todavia, conduzidos por Delegado de Polícia.
O Termo Circunstanciado de ocorrência “é o procedimento administrativo policial simplificado, escrito e, como regra, substitutivo do inquérito policial, instaurado pelo Delegado de Polícia, com o objetivo de apurar a prática de uma infração penal de menor potencial ofensivo”7.
Conforme reza o art. 69, da Lei 9.099/95:
A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.
Da leitura do preceito legal supra exposto, é possível notar que não existe qualquer explicação sobre quem deve ser a autoridade policial para fins da Lei n. 9.099/95, todavia, em uma leitura conjunta dos dispositivos já analisados - artigos 144, §4º, da CF c/c art. 2º, §§ 1º e 2º, da Lei 12.830/13 c/c 69, da Lei 9.099/95 – é possível abstrair do referido art. 69, da Lei 9.099/95, que a autoridade policial a qual se refere o artigo, é o Delegado de Polícia.
Nessa esteira, Nucci8 ensina que a “Autoridade Policial, na realidade, é apenas o Delegado de Polícia, estadual ou federal. Policiais civis ou militares constituem agentes da autoridade policial”.
Tourinho Filho9, no mesmo sentido - ainda em relação ao art. 69, da Lei 9.099/95 -, corrobora que “A autoridade (e essa autoridade, a nosso juízo, na esfera estadual, outra não é senão o Delegado de Polícia, e, na Federal, o Delegado Federal)(...)”.
Para finalizar e não sem razão, Alexandre Morais da Rosa10 é expresso em bem sedimentar a competência para a lavratura desse procedimento, deixando assente que “no regime da Lei 9.099/95 não se instaura Inquérito Policial. O registro das ocorrências se dá por Termo Circunstanciado, da competência da Polícia Civil e Federal, conforme a infração”.
Em síntese, valendo-se das palavras de Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr11:
“não estamos aqui satanizando a Polícia Militar, apenas indicando seu lugar. O problema reside na naturalização irrefletida de práticas autoritárias, que não são percebidas como ruínas na paisagem. Em outras palavras, as ilegalidades são reproduzidas na maioria das vezes por falta de permeabilidade democrática dos vetores constitucionais: simplesmente não são percebidas como tais. A partir desse tipo de incompreensão, são expandidos de forma incontrolada meios de controle manifestamente antidemocráticos, resquícios de um período relativamente recente da história brasileira, que ainda não foram erradicados. Deve ser destacado que os limites da autoridade prevista no art. 69. da Lei 9.099/95 não deve contrariar a sistemática estabelecida pelo Poder Constituinte (originário), na medida em que este, por previsão expressa, atribuiu à Polícia Judiciária a competência para exercer atos de investigação. Como se sabe, o Termo Circunstanciado, conquanto diverso tecnicamente do Inquérito Policial, integra a fase pré-processual, com possibilidade inclusive de requerimento de diligências (exame pericial etc.), e, portanto, faz parte do rol de competências atribuídas à Polícia Civil”. (grifei).
Não por outro motivo, o Supremo Tribunal Federal sepultou o tema, quando do julgamento da ADI 3614/PR, in verbis:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DECRETO N. 1.557/2003 DO ESTADO DO PARANÁ, QUE ATRIBUI A SUBTENENTES OU SARGENTOS COMBATENTES O ATENDIMENTO NAS DELEGACIAS DE POLÍCIA, NOS MUNICÍPIOS QUE NÃO DISPÕEM DE SERVIDOR DE CARREIRA PARA O DESEMPENHO DAS FUNÇÕES DE DELEGADO DE POLÍCIA. DESVIO DE FUNÇÃO. OFENSA AO ART. 144, CAPUT, INC. IV E V E §§ 4º E 5º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE.
(ADI 3614/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 20/09/2007, publicada em 23.11.2007, no DJe-147).
Portanto, não há viés jurídico para dar supedâneo legal ao Termo Circunstanciado lavrado pela Polícia Militar, pois a lavratura do termo - ocorrendo - é nula ante a falta de ineficácia jurídica, uma vez que produzido em contrariedade ao que preconiza a Constituição Federal em seu art. 144, §4º.
Nestes termos já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática proferida pelo Ministro Luiz Fux:
RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PERANTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL. LEI ESTADUAL Nº 3.514/2010. POLÍCIA MILITAR. ELABORAÇÃO DE TERMO CIRCUNSTANCIADO. IMPOSSIBILIDADE. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA. ATRIBUIÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA – POLÍCIA CIVIL. PRECEDENTE. ADI Nº 3.614. INVIABILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. A repercussão geral pressupõe recurso admissível sob o crivo dos demais requisitos constitucionais e processuais de admissibilidade (art. 323. do RISTF). 2. Consectariamente, se o recurso é inadmissível por outro motivo, não há como se pretender seja reconhecida “a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso” (art. 102, III, § 3º, da CF). 3. O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, ao julgar a ADI nº 3.614, que teve a Ministra Cármen como redatora para o acórdão, pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar. 4. In casu, o acórdão recorrido assentou: ADIN. LEI ESTADUAL. LAVRATURA DE TERMO CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA. COMPETÊNCIA DA POLÍCIA CIVIL. ATRIBUIÇÃO À POLÍCIA MILITAR. DESVIO DE FUNÇÃO. OFENSA AOS ARTS. 115. E 116 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTES.- O dispositivo legal que atribui à Polícia Militar competência para confeccionar termos circunstanciado de ocorrência, nos termos do art. 69. da Lei nº 9.099/1995, invade a competência da Polícia Civil, prevista no art. 115. da Constituição do Estado do Amazonas, e se dissocia da competência atribuída à Polícia Militar constante do art. 116. da Carta Estadual, ambos redigidos de acordo com o art. 144, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal. 5. O aresto recorrido não contrariou o entendimento desta Corte. 6. Recursos extraordinários a que se nega seguimento.”
(Recurso Especial n. 702.617/AM. Relator: Ministro Luiz Fux. Julgado em 28/08/2012).
Assim, o termo circunstanciado que traz os elementos informativos para a denúncia produzido pela Polícia Militar é inconstitucional (lavrado pelo Polícia Militar em afronta ao art. 144, §4º, da CF), sendo totalmente nulo e não possuindo qualquer eficácia dentro do ordenamento jurídico, conforme todo o exposto.
Notas
1 CEPIK, Marco Aurélio Chaves. Sistemas Nacionais de Inteligência: Origens, Lógica de Expansão e Configuração Atual. DADOS. Rio de Janeiro: Revista de Ciências Sociais, vol. 46, n. 1, 2003. P. 114.
2 CEPIK, Marco Aurélio Chaves. Sistemas Nacionais de Inteligência: Origens, Lógica de Expansão e Configuração Atual. DADOS. Rio de Janeiro: Revista de Ciências Sociais, vol. 46, n. 1, 2003. P. 114.
3 Não nos esqueçamos do fervoroso debate acerca (in)constitucionalidade da investigação pelo próprio Parquet.
4 Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (...)§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública;(...)
5 ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto de Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, pg. 102/103.
6 O Delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça.” (Min. Celso de Melo, Supremo Tribunal Federal, em sede do HC 84548/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 21.6.2012)
7 ZANOTTI. Bruno Taufner. Delegado de Polícia em Ação. Juspodvum. 2014. P. 280.
8 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas.5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2010. 1312. p.
9 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. V. 4. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 118.
10 ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto de Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 109.
11 https://justificando.com/2014/07/01/policia-militar-nao-pode-lavrar-termo-circunstanciado-cada-um-seu-quadrado/