Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

A discussão sobre a relativização do consentimento no crime de estupro de vulnerável

Agenda 04/09/2015 às 19:41

O presente artigo visa apresentar os principais argumentos doutrinários que envolvem a discussão quanto à natureza da presunção de inocência no delito do art. 217-A do Código Penal, bem como o atual entendimento da jurisprudência sobre o tema.

Introdução

     Em agosto de 2009 houve uma expressiva mudança no ordenamento jurídico penal com a vigência da Lei 12.015, alterando o Título VI do Código Penal, anteriormente intitulado “crimes contra os costumes”, passando a intitular-se “dos crimes contra a dignidade sexual”.

Tal mudança também alcançou a parcela dita vulnerável, que com a Lei 12.015/09 adquiriu tipicidade penal autônoma e independente gravado no art. 217-A.

Porém, um debate remanescente do antigo art. 224 do CP sobreviveu mesmo após as alterações supra mencionadas. A discussão que se dava acerca caráter absoluto ou relativo da violência presumida quando a relação sexual era cometida com alguma daquelas pessoas elencadas na lei, ainda que com seu consentimento, sobreviveu, mesmo com o novo tipo inserido ao Código Penal pela nova lei tal controvérsia continua em pauta: trata-se vulnerabilidade relativa ou absoluta? Em outras palavras, admite-se prova em sentido contrário quanto à presunção de vulnerabilidade em relação aos casos que envolvem vítimas menores de 14 (quatorze) anos e com idade igual ou superior aos 12 (doze) anos de idade?

O presente artigo objetiva apontar os principais argumentos das correntes que discutem o tema, bem como apresentar para qual delas a jurisprudência tem se inclinado. Vale lembrar que esta pesquisa se limitará às discussões pertinentes ao delito previsto no art. 217-A do CP especificamente no que tange à presunção de inocência das vítimas menores de 14 (quatorze) anos e com idade igual ou superior aos 12 (doze).

AS DISCUSSÕES SOBRE O CARÁTER ABSOLUTO OU RELATIVO DA PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA.

Com o advento da Lei 12.015/2009, em 07 de agosto de 2009, houve uma revolução no que se refere ao crime de estupro, pouco em relação ao apenamento, embora mais rigoroso ao sujeito ativo, mas de forma mais relevante ao crime em si.

Apenas a título de exemplo, houve a revogação do art. 214 do Código Penal (atentado violento ao pudor), sendo que o conteúdo proibitivo da mencionada norma foi deslocado para o artigo 2013 (estupro), por força do princípio da continuidade normativo-típica[1].

Outra grande mudança introduzida pela mencionada lei foi a alteração e ampliação do sujeito passivo do crime de estupro, que até então (e durante toda história), admitia-se somente a “mulher” como vítima. Com a Lei 12.015/2009 o estupro passou a ser um crime comum, agora definido no Código Penal o sujeito passivou passou a ser “alguém”.

Mudança também relevante inserida na Lei 12.015/99 – e principal objetivo do presente artigo – foi a criação da figura delituosa do “estupro de vulnerável” (art. 217-A) no Código Penal, bem como a sua inclusão no rol dos crimes hediondos, seja em sua forma simples ou qualificada (§§ 1º, 2º, 3º e 4º), modificando o inciso VI da Lei 8.072/90, sendo removido o “atentado violento ao pudor”.

Vale transcrever parcialmente a exposição de motivos ao projeto que culminou com a edição da referida lei, quando diz:

“O art. 217-A, que tipificou o estupro de vulneráveis, substitui o atual regime de presunção de violência contra criança ou adolescente menor de 14 anos, previsto no art. 224 do Código Penal. Apesar de poder a CPMI advogar que é absoluta a presunção de violência de que trata o art. 224, não é esse o entendimento em muitos julgados. O projeto de reforma do Código Penal, então, destaca a vulnerabilidade de certas pessoas, não somente crianças e adolescentes com idade até 14 anos, mas também a pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não possuir discernimento para a prática do ato sexual, e aquele que não pode, por qualquer motivo, oferecer resistência; e com essas pessoas considera como crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso; sem entrar no mérito da violência e sua presunção. Trata-se de objetividade fática”.

Clarividente que a intenção do legislador era dissipar as antigas discussões quanto a presunção de inocência no delito em exame. Nessa esteira Greco (2013, p.532) compartilha do mesmo entendimento:

“Hoje, com louvor, visando acabar, de uma vez por todas, com essa discussão, surge em nosso ordenamento jurídico penal, fruto da Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, o delito que se convencionou denominar de estupro de vulnerável, justamente para identificar a situação de vulnerabilidade que se encontra a vítima. Agora, não poderão os Tribunais entender de outra forma quando a vítima do ato sexual for alguém menor de 14 (quatorze) anos”[2].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Mas o que parecia tratar de uma inovação pacífica, finalizando com as antigas discussões jurisprudenciais e doutrinárias em relação à presunção de violência, somente atenuou o calor dos debates. Em sentido contrário ao renomado autor supra citado, Guilherme de Souza Nucci preleciona que, mesmo após a edição do novo tipo penal, a discussão ainda permanece viva, alertando que:

“O nascimento do tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência. Agora, subsumida na figura da vulnerabilidade, pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática do ato sexual? Essa é a posição que nos parece mais acertada. A lei não poderá, jamais, modificar a realidade do mundo e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade”.[3]

É certo que, mesmo com a criação do tipo penal em comento, a questão sobre o caráter relativo ou absoluto da antiga presunção de violência continuou a despertar debates na doutrina e na jurisprudência.

Por anos perdurou calorosas discussões acerca da presunção de inocência nos crimes de natureza sexual em relação aos menores de 14 anos, constante no revogado art. 224, alínea a, do Código Penal. Prevalecia na doutrina a natureza relativa na presunção de inocência.

Exemplificando, uma vez que o órgão ministerial consegue provar que o agente, penalmente imputável, manteve relação sexual com pessoa menor de 14 anos (seja conjunção carnal ou atos libidinosos diversos da conjunção carnal), presume-se a violência. Entretanto, como tal presunção possuía caráter relativo, havia a possibilidade da defesa demonstrar a falta de inocência para consentir à prática do ato sexual do menor de 14 anos (innocentia consilli), seja pela alegação de que a vítima é quem teria tomado a iniciativa quanto à prática do ato sexual e aparentava ser maior de 14 anos, seja pela experiência sexual que a vítima ostentava.

Entretanto, na jurisprudência, apesar de raríssimas exceções[4], sempre prevaleceu o entendimento de que a presunção teria caráter absoluto, não se admitindo, portanto, prova em sentido contrário. Ou seja, mesmo que o acusado comprovasse qualquer das possibilidades acima mencionadas (vítima com experiência sexual, maturidade para consentir de forma válida, etc.), ainda assim seria condenado às penas do mencionado delito. Nesse sentido, já decidiu a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal no HC 97.050/PR, valendo citar a ementa:

“EMENTA HABEAS CORPUS. ESTUPRO. VÍTIMA MENOR DE QUATORZE ANOS. CONSENTIMENTO E EXPERIÊNCIA ANTERIOR. IRRELEVÂNCIA. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. CARÁTER ABSOLUTO. ORDEM DENEGADA. 1. Para a configuração do estupro ou do atentado violento ao pudor com violência presumida (previstos, respectivamente, nos arts. 213 e 214, c/c o art. 224, a, do Código Penal, na redação anterior à Lei 12.015/2009), é irrelevante o consentimento da ofendida menor de quatorze anos ou, mesmo, a sua eventual experiência anterior, já que a presunção de violência a que se refere a redação anterior da alínea a do art. 224 do Código Penal é de caráter absoluto. Precedentes (HC 94.818, rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 15/8/08). 2. Ordem denegada”.[5]

Ocorre que, mesmo com o advento da Lei nº 12.015/09, que, como alhures aludido, revogou o art. 224 do CP e criou o tipo penal do art. 217-A, as discussões continuaram, mesmo com a supressão da expressão expressa da “presunção de violência”. Isso porque parcela da doutrina entende que devido o avanço da sociedade e dos meios de comunicação, o grau de conhecimento dos adolescentes, especialmente quanto aos assuntos de caráter sexual, já não são mais os mesmos de outrora. Argumentam que houve uma efetiva evolução no amadurecimento (mesmo que precoce) de parcela significativa dos adolescentes quanto à prática sexual. É nesse sentido a posição de Guilherme de Souza Nucci:

“Pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática sexual? Essa é a posição que nos parece acertada. A lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade”.[6]

Em contrapartida, há parcela da doutrina que vem ganhando força defendendo pela natureza absoluta da presunção de inocência. Para essa corrente, pouco importa se a vítima possui experiência sexual, se já foi corrompida pela prática da prostituição ou se apresentava características que se fizessem presumir maturidade para consentir para a prática sexual. Nesse sentido, vale destacar as lições do professor Renato Brasileiro de Lima:

“A nosso ver, como foi criada figura delituosa autônoma, passa a haver um critério objetivo para a tipificação do crime de estupro de vulnerável do art. 217-A, caput, do CP, qual seja, a idade da vítima. Logo, se o agente tiver o conhecimento de que a vítima era menor de 14 (quatorze) anos à época do crime, o simples fato de com ela manter conjunção carnal caracteriza o crime de estupro de vulnerável, pouco importando o fato de a vítima ter se prostituído anteriormente”[7].

Nesse mesmo sentido vem caminhando a jurisprudência, consoante decisão proferida pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal:

“Ambas as Turmas desta Corte pacificaram o entendimento de que a presunção de violência de que trata o artigo 224, alínea “a” do Código Penal é absoluta. A violência presumida foi eliminada pela Lei nº 12.015/2009. A simples conjunção carnal com menor de quatorze anos consubstancia o crime de estupro. Não se há mais de perquirir se houve ou não violência. A lei consolidou de ver a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”.[8]

No mesmo sentido se posicionaou a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, fixando a mesma tese em julgamento realizado em 26 de agosto de 2015, sob o rito dos recursos repetitivos, de relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, assentando o seguinte entendimento:[9]

Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime

Nos filiamos ao posicionamento acima, no sentido de se tratar da presunção de inocência juris et de jure, ou seja, não se admitindo prova em sentido contrário, pois as questões de política criminal que influenciaram o legislador quando do advento da Lei 12.015/09 deixam claro a intenção de proteger as vítimas menores de 14 anos do ingresso precoce às práticas sexuais, pouco importando se a mesma possuía maturidade ou já era corrompida pela prostituição. Há de preponderar o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

Por fim, deve-se fazer a seguinte ressalva: a idade inferior a 14 anos da vítima é elementar do crime de estupro de vulnerável, sendo assim, na hipótese do agente ignorar a idade da vítima e seu erro esteja justificado pelas circunstâncias de fato, estará caracterizado o erro de tipo e, por conseguinte, não haverá dolo ou culpa por parte do agente. Mesmo em se tratando de erro evitável, diante da ausência de previsão da modalidade culposa, a conduta do agente também será atípica, conforme inteligência do art. 20, caput, do Código Penal.

No mesmo sentido pela possibilidade do erro de tipo essencial, ou seja, sobre a ignorância do agente em relação à idade da vítima, sendo esta elementar do crime em análise, preleciona Fernando Capez:

“[...] se houvesse erro de tipo, não haveria a configuração típica, uma vez que nesta o agente desconhece a idade da vítima, ignorando, assim, a existência da elementar típica. Por exemplo: sujeito inexperiente vai a uma casa noturna, na qual só podem entrar maiores de 18 anos; lá conhece uma prostituta muito bem desenvolvida fisicamente, combina um “programa” e com ela se dirige a um motel; após apresentarem seus respectivos documentos de identidade na portaria, chegam ao cômodo; tão logo se encerra o ato sexual (negocial), a polícia invade o quarto e prende o agente, uma vez que a moça tinha apenas 13 anos de idade. Duas alegações seriam possíveis: (a) a moça tem desenvolvimento físico e psicológico prematuro e já possui razoável experiência sexual, de modo que não haveria como o agente supor a menoridade; (b) o agente não sabia, nem tinha como saber, que mantinha conjunção carnal com uma menor, pois ela estava em um local onde só ingressariam maiores, apresentou documento falso e tinha físico de adulto. A segunda hipótese seria de erro de tipo essencial, o qual excluiria o dolo e tornaria o fato atípico, diante da ausência de previsão legal, conforme ampla jurisprudência a respeito do revogado art. 224 do CP. Não poderia incidir a agravante do art. 61, II, h (crime contra a criança). A menoridade seria provada mediante certidão de registro civil”.[10]

Não obstante a jurisprudência caminhar para um entendimento uniforme e pacífico sobre o assunto, qual seja a natureza absoluta da presunção de inocência – posição a qual nos filiamos, ainda assim a presente celeuma deverá persistir na doutrina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: volume 3 – Parte Especial.10.ed. São Paulo, 2012.

DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Editora Juspodivm. 2015.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte especial. 10.ed. Niterói: Impetus, 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

 


[1] Justamente por conta do princípio da continuidade normativo-típica é que não podemos falar em abolitio criminis da norma até então constante do artigo 214 do Código Penal. Isso porque a figura do abolitio criminis, como causa extintiva da punibilidade, tem por principal efeito a descriminalização do fato, o que não se confunde com a revogação, que nada mais é do que a supressão de lei, total (ab-rogação) ou parcial (derrogação)

[2] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Especial Vol. III. 10ª Edição. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2013, p. 532.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual – comentários à Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, p. 37

[4] STJ, 3ª Seção, EREsp 1.021.634/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 23/11/2011, DJe 23/03/2012.

[5] STF, 1ª Turma, HC 97.052 / PR, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 14/09/2011.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 37.

[7] DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Editora Juspodivm. 2015, p. 48-49.

[8] STF, 2ª Turma, HC 101.456/MG, Rel. Min. Eros Grau, j. 09/03/2010, DJe 76 29/04/2010.

[9] <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Para-o-STJ,-estupro-de-menor-de-14-anos-n%C3%A3o-admite-relativiza%C3%A7%C3%A3o> Acessado em 05 de setembro de 2015.

[10] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: volume 3 – Parte Especial.10.ed. São Paulo, 2012, p. 87.

 

Sobre o autor
Diego Luiz Victório Pureza

Advogado. Pós-Graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera Uniderp LFG. Pós-Graduando em Docência do Ensino Superior pela Universidade Anhanguera Uniderp - LFG. Pós-graduando em 'Corrupção: controle e repressão a desvios de recursos públicos'. Membro da Comissão 'OAB vai à escola' da 36ª Subseção da OAB/SP. Palestrante e Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!