VIII – A faculdade de uso e sua extensão.
Pela regra do art. 1228 do Código Civil como também se dava com o art. 524 do Código Civil de 1916 com redação diversa, a faculdade de uso é a primeira referida pelo legislador quando cuida do direito de propriedade.
Diz o § 4º do artigo 182 da C.F., que não cumpre a função social a propriedade não edificada, não utilizada ou subutilizada permitindo ao Poder Público municipal exigir do proprietário que promova seu adequado aproveitamento. Por sua vez, a primeira parte do § 1º do art. 1228 do Código Civil estabelece que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais.
Ora, na parte de que estamos tratando, a faculdade inerente ao domínio atingida é a de uso, visto que nela sempre se entendeu como compreendida a faculdade de não utilizar, não cultivar, não edificar, não alugar, não arrendar etc...
Pode-se arriscar então uma primeira conclusão: na propriedade imóvel urbana (e também na rural, embora este não seja objeto deste ensaio) estaria suprimido o direito de não usar a coisa, pela força impulsiva, atribuída a tais tipos de bens, em razão do princípio da função social.
Bem, poder-se-ia objetar que na prática tal conclusão não funcionaria.
Com tal afirmação estar-se-ia, se verdadeira a conclusão, obrigando todos os proprietários rurais ou urbanos que têm terra inaproveitada, subutilizada, a dar uma destinação imediata ao bem: alienando, arrendando, alugando, construindo, morando, cultivando, etc.
Em verdade, na função promocional do direito é isso que se quer do titular num primeiro momento, mas nem sempre será possível. Isso porque, por diversas circunstâncias, pode-se exigir do titular (até mesmo pela função social da cidade) que este se mantenha inerte, não edificando o imóvel, ou que o utilize sem a edificação de impacto à comunidade naquele dado momento.
Contudo, em imóveis edificados e que tenham como destinação específica habitação ou exploração comercial/industrial é possível exigir comportamento positivo do titular no sentido de cumprir com a função social do bem de sua titularidade ou posse. Tal situação se tornará evidente nas hipóteses de conflito de interesses entre particulares ou entre o Poder Público representando a comunidade em face do titular do direito.
Nesse ponto, a distinção entre faculdade e direito merece referência.
Para Santoro-Passarelli, “faculdade” é expressão que designa poderes particulares privados de autonomia, que podem distinguir-se ao analisar o conteúdo de um direito subjetivo.[56] Para Leoni Oliveira, “faculdade” expressa o conteúdo do direito subjetivo e não tem existência própria, mas está sempre vinculada a um direito subjetivo.[57]
As faculdades, explica Orlando Gomes, constituindo, como constituem parte componente do direito, não podem ter vida independente deste. Como corolário da dependência, estão submetidas, no seu exercício, às normas que disciplinam o direito em que se integram. O conteúdo de um direito pode ser desfalcado de uma ou de algumas das faculdades que o compõem, sem que o direito deixe de existir.[58]
Não pode haver dúvida de que o legislador do Código Civil de 2003 agiu corretamente ao substituir a expressão “direito” por “faculdade”. A extinção ou perda de uma determinada faculdade - conteúdo de um direito subjetivo - não implica a deste, mas o contrário ocorre. A perda ou extinção do direito subjetivo importa, necessariamente, na supressão de suas faculdades, que nascem com ele, podendo morrer antes ou junto, nunca depois do direito. Se porventura o direito contiver apenas uma faculdade, aí sim a extinção ou perda desta importará na perda ou extinção daquele.
Ora, não há dúvida de que nem sempre o titular de um direito de propriedade tem a faculdade de uso, que corresponde à possibilidade de exercício direto da posse, seja porque assim o recebera (ex. legado da nua-propriedade) seja porque a cedê-la gratuita ou onerosamente. Quando cede a alguém por algum contrato (locação, comodato, concessão etc.) que não implique na transferência do próprio direito subjetivo, apenas a faculdade foi transferida a outrem. Este outrem que está permitindo, com sua atividade ou com o exercício da faculdade cedida, cumprir com a função social do bem.
O proprietário tem o direito, mas está impedido de uma importante faculdade, aquela que permite a fruição direta das utilidades da coisa.
Saliente-se que há, à disposição do titular, um amplo complexo de opções de utilização da faculdade de uso e das outras faculdades também (e.g., utilização direta em diversas atividades, utilização por terceiro, como salientado, através de locação, comodato, arrendamento, incorporação, concessão de uso, concessão de superfície, multipropriedade, usufruto, uso, habitação e outras que se imaginar), as quais vão corresponder à modalidade de uso. Pois é em razão da possibilidade de uso do bem que, supõe-se, alguém adquire um imóvel (é obvio que não ignoramos a aquisição a título de formação de capital imobiliário, que em certa medida é criticada pela doutrina).
É por meio do uso da coisa que o proprietário cumpre sua função social. O não uso da faculdade pertencente ao direito só cumpre função tipicamente individual, que pode trazer ou não consequências para o titular, conforme a natureza do bem.
Conforme ensinamento de Orlando Gomes são as faculdades que dinamizam os direitos. Um direito em “que o titular não usa as faculdades correspondentes conserva-se estático.”
Portanto, a opção menos contundente, isto é, aquela que entende ínsita na faculdade de uso a faculdade de não uso, atenderia a uma noção tradicional e individualista da propriedade como poder absoluto do titular, ignorando, no dizer de Schreiber “a ultrapassada concepção individualista da propriedade e a sua atual funcionalização a interesses sociais, como fruto de uma ótica mais solidária e menos excludente.”[59] No mesmo sentido colhe-se em Luiz Fernando de Camargo Prudente do Amaral:
“Além disso, o fato de a propriedade privada ser garantida pelo constituinte não implica o reconhecimento dos direitos do proprietário como o faziam os ordenamentos ao tempo do liberalismo puro. Ao contrário, a atual formatação do regime jurídico da propriedade, isto é, de sua disciplina, encontra maior semelhança com aqueles que atribuíam ao proprietário inegáveis deveres.”[60]
Por outro lado, o direito subjetivo de propriedade é um direito-dever, um poder-função, um direito-função.
Direito-função, na visão de Goffredo T. Junior, é o direito de a pessoa exercer a função que lhe é designada por norma jurídica e, concomitantemente, a obrigação de exercê-la. Em virtude do mandamento da norma jurídica, o titular do direito-função fica na obrigação de exercer a função que lhe é atribuída por meio da norma.[61]
A noção de poder jurídico, conforme esclarece Leoni Oliveira, é distinta de direito subjetivo, sendo fato distintivo a circunstância de que o seu titular não age no interesse próprio, mas sim no interesse alheio. Salienta ainda que alguns entendem que essa figura está ligada a uma função, não sendo, portanto livre a atuação do titular, mas necessariamente no interesse alheio e, por esta razão, também chamado de poder-dever, isto é, que o exercício constitui um dever.[62]
Dever jurídico, para este mesmo autor, ocorre quando “o agir do devedor não está caracterizado por prestação de conteúdo econômico, mas diz respeito, principalmente, a um comportamento de conteúdo pessoal.”[63]
Não há conflito entre direito subjetivo e função, servindo esta última como característica de dinamização daquele. Assim se dá com a função social na propriedade.
Assim o direito subjetivo de propriedade é um direito-função, um poder-dever, um poder-função, porque confere poderes, mas também atribui deveres ao titular. Neste sentido a opinião de ilustres autores: Fabio Konder Comparato[64]; Eros R. Grau[65]; Raimundo B. Falcão[66]; Rosah Russomano[67]; Luiz E. Fachin[68]; Laura B. Varela e Marcos Ludwig[69]; Orlando Gomes[70]; Judith Martins-Costa e Gerson Branco[71]; Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber[72] e Perlingieri.[73]
Ora, o cumprimento deste poder-dever, ou dito de outro modo, da função social da propriedade, está no exercício positivo da faculdade de uso do bem, seja diretamente ou através da atuação de outrem.
Celso Bastos obtempera que a concepção clássica de propriedade não se afastou da ideia de um direito abstrato de caráter perpétuo que “era usufruído independentemente do exercício deste direito”, o que significaria dizer que o direito não se perderia pelo não uso, mas que “parece ser uma característica do direito de propriedade moderno o estar determinado pelo uso econômico da coisa” e é este uso que determina e legitima a propriedade, de modo que “é como se a propriedade se apagasse quando a utilização econômica desaparece.”[74]
Então, estando inerte o proprietário ou não tendo interesse demonstrado do exercício da função social e existindo alguém não proprietário que esteja dando o destino adequado, deve-se privilegiar a atividade desenvolvida no imóvel se nesta se mostra saliente a função social por vários aspectos, seja não só pela utilização do bem, mas pela função social da própria atividade em si.
IX – A função social da propriedade X a função social da empresa e do contrato
Cumpre destacar neste aspecto, que ninguém ignora que a função social está presente também na atividade empresarial, seja por sua natureza de propriedade empresarial seja pela própria atividade em si. Entretanto, a só existência formal da empresa não cumpre ainda nenhuma função social, que está, nesse caso, em estado de potencia, impondo aos titulares do controle a obrigação de desenvolver a atividade prevista no estatuto ou no contrato, para só então, cumprir com a função social da propriedade, considerando esta uma modalidade de propriedade.
Aqui aparece um primeiro “conflito” objeto deste estudo, entre a função social da propriedade imóvel e a função social da empresa e de seu estabelecimento situado que está ou estará num determinado imóvel de titularidade própria ou alheia, considerando que a propriedade da empresa é uma das espécies de propriedade garantida pela constituição, desde que cumpra com sua função social.
Isto é, na empresa a função social está presente em dois aspectos salientes: como direito de propriedade e como atividade em si mesmo. A primeira está sujeita a todas as observações que acima se fez a respeito da propriedade em geral e a segunda, à sua peculiar atividade.
Neste sentido Comparato assinala que “em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa uma destinação compatível com o interesse da coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração empresarial, em poder-dever do titular do controle de dirigir a empresa par aa realização dos interesses coletivos.”[75]
Um imóvel que faça parte do patrimônio de empresa pode corresponder a duas situações. Se fizer parte da atividade da empresa a exploração de ramo imobiliário, deverá então alienar ou ceder, onerosamente ou não (nesta hipótese se o estatuto permitir) o imóvel para que outrem nele resida ou explore atividade negocial, conforme a finalidade do bem. Nesta hipótese, a empresa estará cumprindo ao mesmo tempo a função social da empresa e a função social da propriedade. Mas se o bem faz parte do patrimônio, mas não tem correspondência direta com a atividade empresarial, para cumprir a função social da propriedade, deverá a empresa destinar o bem a locação ou a outro tipo de cessão, onerosa ou gratuita (repita-se, se permite o estatuto).
A função social da atividade empresarial foi objeto de destaque de Guilherme Calmon e Bruno Bartholo, na seguinte passagem:
“Sem dúvida, tal relevância, fruto do dinamismo e do poder de transformação do regime empresarial, se expressa pelas mais distintas maneiras, dentre as quais cumpre ressaltar a criação de uma extensa rede de interação e de interdependência entre agentes econômicos assalariados e não assalariados que gravitam em torno dos empreendimentos empresarias, a grande parcela de bens e de serviços produzidos por aqueles e consumidor pela população, além da significativa fração das receitas fiscais provinda do exercício dessa atividade.”[76]
Ora, não reconhecer que o princípio da função social altera a faculdade de uso, condicionando-o ou impondo comportamento positivo ao titular, no sentido de dar utilidade racional, seja no interesse individual, seja no interesse coletivo, corresponderia verdadeiramente a ignorar a própria existência do princípio da função social.
Assim, não se pode tolerar que o titular de bem o tenha para fins especulativos, a título de capital, ao passo que, lançando mão no momento que bem entender, deixa o imóvel urbano sem utilização alguma, ou o reivindique daquele que está dando cumprimento à função social seja pelo exercício de uma atividade produtiva que cumpre função econômica de relevante importância social pela geração de empregos diretos e indiretos, além de impostos ou aquele que a cumpre através de moradia, sem que dê motivação para tal. Ou seja, há necessidade de que a denuncia do contrato acaso existente seja motivada (cheia) pela necessidade exercício de atividade diretamente pelo titular do bem como nas hipóteses de retomada para uso próprio na locação comercial ou para uso próprio ou de parentes próximo na locação residencial.
Não se deve admitir, por conta do princípio da função social da propriedade que o proprietário, no exercício do direito de reivindicação simplesmente afirme que pretende o imóvel de volta pela simples condição de ser proprietário dele, consagrada na velha expressão: quer porque quer, sem nenhuma razão específica. Ou até mesmo, que tenha uma motivação, mas que esta em verdade corresponda ao abuso do direito, considerando os danos que pode causar para a outra parte ou para a coletividade de pessoas que interagem com a empresa, para hipótese de imóveis não residenciais.
Necessariamente quando alguém está cumprindo com a função social do bem pertencente a outrem, seja com a moradia ou com atividade empresarial, o exercício do direito de reivindicar deve está condicionado à informação na petição inicial do despejo ou da reivindicatória como causa de pedir da necessidade do exercício de tal direito, com a indicação da função social que se pretende dar ao imóvel, o que implica na necessária produção de prova a respeito.
Nas hipóteses de locação, quando o proprietário reivindicante indica na inicial ou na contestação (nas hipóteses de retomada nas locações comerciais) e prova no curso da demanda sua necessidade, como, por exemplo, a moradia própria ou dos parentes indicados na lei de locação ou para uso empresarial próprio, ou seja, que pretende cumprir diretamente com a função social do bem, sua pretensão deverá ser acolhida observando-se um tempo razoável para desocupação do bem. Caso contrário, sua pretensão deverá ser rejeitada com base no princípio da função social da propriedade e na função social da empresa, paras hipóteses de imóveis não residenciais.
Desde 1934 em especial, nos imóveis ditos comerciais a lei procurou preservar o exercício da atividade pelo inquilino, considerando a importância econômica e social da atividade desenvolvida no imóvel. Esta buscou proteger o empresário do poder especulativo do proprietário ao intervir diretamente na relação contratual para possibilitar a sua renovação compulsória, preenchidos determinados requisitos previstos na lei (Dec. 24.150). Tais requisitos foram sendo flexibilizados ao longo do tempo no sentido de conferir ainda maior proteção àquele que investiu, com risco próprio, na propriedade alheia, tornando-a produtiva de bens e riquezas, não só no interesse próprio, mas indiretamente no interesse de todos aqueles que se beneficiam com aquela atividade. Isto é, os empregados (salários, benefícios sociais e previdenciários), os consumidores finais da atividade produtiva (serviços ou bens de consumo especifico), a comunidade (através de impostos, contribuições fiscais e parafiscais geradas pela atividade) e, ainda, possibilitando renda para o titular da propriedade. Renda está que se verificará (ou poderá se verificar) em correspondência real com o valor de mercado do bem em razão da existência das ações revisionais de contrato.
Fabio Ulhôa Coelho assinala que “cumpre sua função social a empresa que gera empregos, tributos e riqueza, contribui para o desenvolvimento econômico, social e cultura da comunidade em que atua, de sua região ou do país, adota prática empresariais sustentáveis visando à proteção do meio ambiente e ao respeito aos direitos dos consumidores.”[77]
Merece destaque o que a Lei 6.474/76 (que cuida das sociedades anônimas, mas que na sua parte principiológica deve ser aplicada a todo tipo de empresa) estabeleceu no § único do art. 116 a respeito da obrigação do acionista: “O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, o que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.”
Deve-se atentar ainda que os imóveis dados em locação ou comodato, por vezes, tem uma vocação peculiar, de modo que, salvo demonstração de que o imóvel terá outra destinação que cumpra com maior amplitude a sua função social como, por exemplo, a demolição de moradia unifamiliar para construção de um prédio residencial ou não, ou que o destinará à locação para a hipótese do imóvel estar no regime de comodato, e, no mesmo sentido, o imóvel comercial que passará a ter, com a retomada outra destinação possível para o local, somadas aquelas hipótese nas quais a lei autoriza a denuncia “cheia”, não se deve admitir a retomada pelo simples fato de pretender o locador, atendendo à parte egoística de seu direito subjetivo.
Se o imóvel comercial tiver destinação específica de grande relevância para a comunidade à sua volta, como, por exemplo, hospitais, clínicas, escolas (em sentido amplo), indústrias, supermercados, ou seja, imóveis que só podem ser destinados à mesma atividade, salvo projeto de construção para adaptação à outras atividades ou construções de outra natureza, a denúncia só fará sentido por descumprimento da obrigação de pagamento dos alugueres ou outra infração grave, como, por exemplo, o próprio descumprimento da função social da propriedade pelo locatário.
Admitir-se simplesmente a paralisação de uma atividade pelo simples capricho do titular do direito de propriedade em prejuízo não só daquele que desenvolve atividade no imóvel, mas de todos que direta ou indiretamente são beneficiados com a atividade ali exercida sem que haja um justo motivo, é tentar amenizar o impacto que a função social trouxe para estrutura do direito de propriedade como já assinalado.
Se, para cumprir a função social da propriedade, o proprietário reivindicante terá que exercer diretamente atividade no imóvel, esta, segundo a lei, não poderá ser a mesma do locatário, em respeito ao seu fundo de comércio (art. 52 inc. II e § 1º da Lei 8.245/91). Entretanto, na hipótese de imóvel que tenha vocação específica concernente, por exemplo, à sua localização (escola, clínica, hospital, supermercado, padaria etc.), seja em razão de sua natureza, seja em razão de leis municipais que tenham estabelecido modalidade específica de exploração para o local, a situação suscita melhor reflexão.
A reivindicação (seja através de ação de despejo, seja por meio de pedido de retomada),nessas hipóteses (de imóveis com vocação específica), só poderá ocorrer se o titular possuir projeto aprovado alterando a natureza da atividade a ser exercida no imóvel, por ele ou por terceiro. Isso porque, do contrário, que diferença faz o dinheiro (de atividade lícita certamente) do locatário atual para um futuro locatário? Neste ponto, pode-se até tomar emprestado as regras de pagamento estabelecidas no direito das obrigações – até um terceiro, estranho ao negócio, sem interesse jurídico evidente pode pagar no lugar do devedor e extinguir a obrigação.
Assim, se não há diferença entre o poder liberatório da moeda do atual ocupante para o futuro ocupante. Apenas pode ser considerado como abusivo o exercício do direito de retomada ou de reinvindicação da coisa, violando a boa-fé e os bons costumes exigidos pelo art. 187 do Código Civil.
Assim, para receber a proteção do sistema, o exercício de um direito não pode se dar de modo abusivo. Neste ponto Heloísa Carpena afirma que “para se proceder à caracterização do abuso de direito deve-se tentar identificar o seu motivo legítimo, o qual deve ser extraído das condições objetivas nas quais o direito foi exercido, cotejando-as com a sua finalidade e com a missão social que lhe é atribuída, com o padrão de comportamento dado pela boa-fé e com a consciência jurídica dominante.”[78]
Na mesma linha Fernando Noronha assinala que para caracterizar o abuso de direito basta observar se há “manifesta desproporção entre o interesse que o agente visa realizar e aquele da pessoa afetada, ou, dizendo de outro modo, entre as vantagens do titular do direito e os sacrifícios suportados pela outra parte. Se todos os direitos têm finalidade social, não é possível tutelar pretensões que representam sacrifício manifestamente desproporcional.”[79]
Então, naqueles exemplos figurados (escolas, hospitais, clínicas, indústrias, supermercados, padarias, comércios de bairros e outros de considerável impacto comunitário e social), havendo interesse do locatário em dar continuidade à sua atividade e estando cumprindo com as obrigações impostas no contrato – ainda que seus contratos tenham sido firmados por imposição do proprietário em prazos inferiores àqueles compreendidos nas hipóteses de proteção legal através de ações renovatórias ou por vezes em decorrência de prorrogações verbais facilmente comprovadas – e, em sendo possível constatar estabilidade na atividade exercida com beneficio para a comunidade no seu entorno, deve-se privilegiar a atividade exercida. Isso porque, deste modo a propriedade, ainda que não seja do possuidor, estará cumprindo com sua função social.
Há na hipótese um confronto de situações em torno da função social (função social da propriedade imobiliária e função social da empresa e função social do contrato), no qual o interprete deverá observar qual das situações permite ao imóvel cumprir com sua função social: o interesse reivindicante ou o interesse do possuidor direto, uma vez que a função social, como se disse, faz parte da estrutura do direito. Não se trata, portanto de faculdade do titular optar entre dar uma destinação que cumpra com a função social ou simplesmente ficar inerte.
Nas relações que decorrem do desdobramento da posse que visa, num primeiro plano, atender aos interesses dos participes do negócio jurídico, resultantes de contratos de locação (residencial e não residencial), comodato ou outro qualquer daqueles já referidos, que não tenham prazo determinado ou que se transformaram em contrato de prazos indeterminados, que em princípio podem ser rompidos unilateralmente por qualquer das partes, há a atração do princípio da função social do contrato, da boa-fé e do abuso do direito.
A função social do direito, como gênero, abraça todas estas figuras de importância indiscutíveis no momento histórico e cultural que se vive.
A função social do contrato é uma das vertentes da função social da propriedade, considerando que a ideia de propriedade constante do art 5º inc. XXII da C.F., não abrange apenas a noção clássica de propriedade. Todo direito que tenha conteúdo econômico existente no patrimônio de alguém está associado à noção de propriedade que a constituição garante.
Então, em certa medida, podemos ter nas hipóteses acima aventadas um confronto entre propriedades diversas numa certa relação jurídica, ambas, na qual, o exercício das respectivas titularidades, permitam ao seu titular o cumprimento da função social de sua propriedade, convivendo de modo harmônico, como no exemplo da propriedade imobiliária destinada à locação comercial e a propriedade da empresa que se serve do imóvel para desenvolvimento de suas atividades. Ambas, com função correspondente a peculiaridade da natureza do bem. Ambas atendendo ao postulado da função social da propriedade, da função social da empresa e da função social contrato que celebraram, além de simultaneamente permitirem o cumprimento dos postulados básicos da república federativa do Brasil, qual seja o princípio da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social, contribuindo para erradicação da pobreza e das desigualdades sociais construindo de uma sociedade mais justa e solidária, em razão da circulação de bens e riquezas possibilitando aos membros do grupo social a satisfação de necessidades básicas (educação, saúde, alimentos, medicamentos etc.), mesmo que circunscrita a uma pequena região ou área de atuação, gerando empregos diretos e indiretos, impostos, contribuições sociais, e, o que é mais importante, permitindo a produção de capital e consequente transferência de renda, fatores estes preponderantes para o desenvolvimento social de um determinado local ou região.
Se a utilidade do imóvel refere-se à moradia, que o destine a locação, comodato ou o aliene. Da mesma forma se possui imóvel com estrutura comercial, que atenda ao fim econômico, possibilitando a exploração por outrem da atividade que lhe é peculiar, que ceda ou mantenha o uso existente para que a função social seja cumprida se não pretender cumpri-la diretamente.
Caso se trate de imóvel rural, que o torne produtivo, com aproveitamento racional e adequado, respeitando o meio ambiente, as relações com os trabalhadores e com os demais proprietários. O próprio princípio da reforma agrária e tornar produtiva uma área improdutiva. Neste aspecto, devemos considerar a aplicabilidade dos princípios fundamentais de Direito Agrário, pelos quais se encontrará a função social da propriedade como um dos seus princípios mais peculiares.
Na verdade, para que a propriedade seja considerada um direito humano, deve cumprir sua função social. Neste sentido também é a opinião externada por Fabio Comparato na seguinte passagem: “(...)é preciso verificar in concreto, se se está ou não diante de uma situação de propriedade considerada como direito humano, pois seria evidente contra-senso que essa qualificação fosse estendida ao domínio de um latifúndio improdutivo, ou de uma gleba urbana não utilizada ou subutilizada, em cidades com sérios problemas de moradia popular.”(...)“É preciso, enfim, reconhecer que a propriedade-poder, sobre não ter natureza de direito humano, pode ser uma fonte de deveres fundamentais, ou seja, o lado passivo de direitos humanos alheios.” [80]
Poder-se-ia objetar que a proposição apresentada criaria contratos perpétuos, mas por óbvio que não se trata de tal situação, considerando que os interessados podem de comum acordo distratarem o negócio vigente entre eles e pode-se também exercer o direito de denuncia motivada, incluindo-se dentre as hipóteses, a inércia do locatário, comodatário, superficiário etc. em dar a destinação prevista no contrato (hipótese de infração contratual), colocando em risco o próprio direito do titular em razão da ausência de cumprimento da função social da propriedade, isso sem falar na possibilidade de se revisar periodicamente as bases do contrato, por todo o seu prazo de vigência, de modo a se permitir a manutenção do seu respectivo e necessário equilíbrio.
O que se afirma com arrimo na doutrina citada neste estudo é que não faz sentido, romper-se um vinculo que assegura a outrem o direito de moradia ou o exercício de atividade produtiva, quando este cumpre regularmente com seus compromissos contratuais e legais, apenas por capricho do titular do direito, estribado em ajuste verbal ou de prazo de indeterminado, por entender compreendido em seu direito a possibilidade de findar relações jurídicas que são socialmente relevantes.
Certamente, assim fazendo, estará exercendo seu direito de denuncia em flagrante abuso do direito, uma vez que violará, a um só tempo, os fins econômicos e sociais do seu direito, além da boa-fé e dos bons costumes (art. 187 do CC já mencionado) e dependendo do bem objeto de sua titularidade, afetando a função social da empresa e de todos aqueles que dela dependem e que também merecem proteção contra atos realizados sem fundamento razoável.
Neste passo, merece transcrição a visão de Capanema que apesar de reconhecer como legitimo o direito do locador retomar o imóvel, mas tal direito não pode e nem deve ser exercido sem qualquer motivação, pois assim fazendo, estar-se-ia “ultrapassando os limites de sua função social e da boa-fé, incidindo na figura do abuso de direito, a que alude o artigo 187 do Código Civil.”[81]
Percebe-se desta orientação que o individual deve ceder ao social presente no cumprimento da função social da propriedade, da empresa e do contrato.
Esta situação se mostra mais sensível quando o conflito de interesses é travado entre empresas, ou seja, entes que têm, como se viu uma função social a cumprir e causa mais impacto social quando descumprida do que a propriedade imobiliária. Esta se ficar sem uso, com uso inadequado ou subutilizada, uma vez que nesta espécie de bem, alguém por iniciativa própria pode entrar no bem e passar a exercer posse funcionalizada, suprindo a falta do proprietário, mas com consequências drásticas para este em razão da possibilidade da aquisição da propriedade pela usucapião.
Contudo, na empresa, tal situação não se mostra, à primeira vista, viável (não que seja impossível), isto é, alguém tomar posse da empresa e usucapir suas cotas sociais ou o estabelecimento. Assim, a paralisação de uma atividade num determinado local causa maior impacto social negativo do que um imóvel abandonado, face às inter-relações resultantes de sua atividade com os destinatários de sua atividade, com seus fornecedores, com as prestadoras de serviços públicos, com a fazenda publica nos três níveis.
Ora, não se mostra razoável que uma empresa, adquira ou alugue um imóvel para deixa-lo sem qualquer atividade com o objetivo, por exemplo, de impedir que um concorrente seu se instale no local. Essa hipótese viola ao mesmo tempo a C.F. na parte que cuida da liberdade de iniciativa e na parte que exige o cumprimento da função social da empresa e da propriedade (aqui destacando-se uma da outra). Se, pretende impedir a concorrência, que é salutar para a coletividade, que instale uma filial no local.
Neste ultimo aspecto, o art. 421 do Código Civil estabelece que a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos limites de sua função social. Na liberdade de contratar está inserida, por certo, a liberdade de distratar e na função social está compreendida a noção que não mais se deve tolerar que ele sirva apenas ao interesse de uma das partes ou mesmo de ambas, “como fator de seu enriquecimento exclusivo, como no passado se pensava”, uma vez que o contrato “modernamente deve servir também à sociedade, como mecanismo de construção de um estado de bem-estar, gerando empregos e contribuindo para reduzir as desigualdades sociais.”[82]
Na visão de Flávio Tartuce os contratos devem ser interpretados de acordo “com a concepção do meio social em que estão inseridos, não trazendo onerosidade excessiva ou situações de injustiça às partes contratantes, garantindo que a igualdade entre elas seja respeitada, equilibrando a relação em que houver a preponderância da situação de um dos contratantes sobre e outro.”[83]
Emilio Betti assinala que o direito não dá seu apoio ao capricho e ao arbítrio individual “mas a funções práticas que tenham uma relevância e uma utilidade social e que, por isso mesmo mereçam ser estavelmente organizadas”[84]e no dizer de Miguel Reale a realização da “função social da propriedade somente se dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja conclusão e exercício não interessam somente às partes contratantes, mas a toda coletividade.”[85]
E ainda, no que diz respeito à proteção dos interesses não proprietários relacionados à função social da propriedade, se mostram razoáveis as ponderações de Schreiber:
“A crise de legitimação da propriedade privada e o movimento solidarista evidenciaram a necessidade de se tutelar, com o instituto da propriedade, não apenas os interesses individuais e patrimoniais do proprietário, mas também interesses supraindividuais, de caráter existencial, que poderiam ser prejudicados pelo irresponsável exercício do domínio (e.g. preservação do meio ambiente e bem-estar dos trabalhadores). Altera-se, assim, drasticamente a função da propriedade que passa a abarcar também a tutela de interesses sociais relevantes.”[86]