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Aspectos históricos da responsabilidade civil médica

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Agenda 18/10/2003 às 00:00

5 Origens no Direito europeu: França e Espanha

Os povos bárbaros introduzem o Wergeld, conceito fundamental, em virtude do qual o agressor teria de pagar uma compensação econômica à vítima, tendo chegado ao requinte de se criar "tabelas" indenizatórias, assinalando, por exemplo, um valor a ser pago por cada dedo perdido.

A influência dos códigos bárbaros perdurou na Europa, em especial entre os visigodos (Leovigildo, Alarico II, etc.), e neles, dentre outras coisas, se estabelecia:

- A valoração em dinheiro de determinadas lesões;

- A indenização do escravo era paga a seu dono;

- Era permitido o intercâmbio, ou "substituição" dos escravos "danificados";

- Aplicava-se a Lei de Talião.

A idade média representou um período obscuro, em todos os sentidos, e especialmente sob a perspectiva do dano corporal, por conta da supressão das parcas garantias individuais existentes, do insipiente estado de direito ocorrida no período, sem que se criasse nada novo representou uma involução, no sentido de que as codificações existentes foram sendo esquecidas, ficando restritas basicamente aos monastérios.

A Lei Sálica, datada do século V, estabelecia que os ferimentos e/ou danos físicos inflingidos fossem examinados por pessoa competente. Foi o mais próximo da perícia médica que se chegou na época.

Na Espanha fez sua aparição – dentre outros – o Fórum de Castilla (ano 1250) que estabelece o primeiro código (baremo) espanhol de indenização de lesões.

A chegada do Renascimento trouxe um marco histórico, a Constitutio Criminalis Carolina, promulgada pelo Imperador Carlos no ano 1532, reconhecendo o médico como auxiliar fundamental nos assuntos jurídicos, constituindo-se a partir deste momento as bases para o desenvolvimento da medicina legal.

Carlos Magno, no século XVI, determinou a intervenção médica nos casos de avaliação de lesões. Princípio que havia sido reconhecido por Godofredo de Bullón no Código de Jerusalém, no ano 1100. Também o Papa Inocêncio III se fez acompanhar de assessores médicos em casos de avaliação de lesões, em uma multiplicidade de ocasiões.

Posteriormente, com o positivismo naturalista (século XIX), foi criado na Espanha o Cuerpo Nacional de Médicos Forenses, cuja participação na valoração médica do dano corporal assumiu grande importância, estendendo-se sobre os demais países do continente.

Na França, entre os séculos XI e XII, apareceu pela primeira vez a figura do perito, existindo também referências a peritos médicos nas leis normandas de princípios do século XIII, empregadas fundamentalmente nos casos de exame e valoração dos lesionados.

Nesta época, o direito francês começou a realizar a distinção entre responsabilidade civil e responsabilidade penal, antes apenadas com o mesmo tipo de punição.

Os franceses assumiram postura bastante peculiar quanto à responsabilidade médica, tendendo à imputabilidade, em virtude da multiplicidade de fatores – e do caráter subjetivo da maioria deles – capazes de influenciar os resultados de um procedimento médico.

Havia uma forte corrente doutrinária que defendia a necessidade de que não só o dano fosse efetivamente comprovado através de perícia, realizada por profissionais destacados, mas que também se provasse que este mesmo dano decorreu de manifesta imprudência, imperícia ou negligência.

O próprio ato de questionamento e pedido de ressarcimento era por vezes encarado como uma tentativa de enriquecimento ilícito, ou ainda como uma forma torpe de buscar vingança contra o médico, em virtude de um resultado desfavorável, causado de forma não intencional por parte do mesmo. Se alegava que o profissional não poderia ser responsabilizado pelo acaso, pelos acontecimentos causados pelo destino, e que nenhum médico – em princípio – laboraria em busca do fracasso.

A partir do século XVIII se produz um importante desenvolvimento, tanto legislativo quanto regulamentar, relativo à matéria. Ainda assim, apesar de todos os avanços, em países como a França, ainda foi necessário aguardar até fins do século XVIII, com a eclosão da Revolução Francesa, para que um artigo do código civil – o de número 1382 – redigido sem grande precisão, afirmasse:

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"Tout fait quelconque de l’homme qui cause à autrui un dommage oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer."

Ainda assim, a idéia de que o causador do dano médico, quando questionado, se tornaria uma vítima de vingança se estendeu de forma tão forte que mesmo em princípios do Século XIX, a Academia de Medicina de Paris tinha sua doutrina voltada para a inexistência de responsabilidade jurídica de seus membros, atendo-se meramente à responsabilidade ética e moral.

Newton Pacheco tem um trecho de sua obra [5] transcrito por Miguel Kfouri [6], no qual relata um dos casos que levaram à modificação deste pensamento no entendimento dos tribunais franceses. Hoje, a responsabilidade civil médica é plenamente reconhecida e a obrigação de reparar os danos causados é tese amplamente aceita. Vale a pena, pois, pedir permissão àquele autor para transcrever trecho de sua obra, posto que possui enriquecedora narrativa histórica, permitindo compreender o processo de modificação de uma idéia em determinada sociedade, a partir da repercussão causada por um determinado acontecimento:

"Newton Pacheco ressalta a prudência e circunspecção com que as Cortes francesas apreciavam a responsabilidade médica, verificáveis pela análise de mais de um século de jurisprudência.

Referido autor passa a narrar, então, a verdadeira revolução operada na jurisprudência francesa, de 1832 em diante, desencadeada a partir do processo em que sobressai a atuação do Procurador Dupin: ‘O caso, em resumo, foi o seguinte: O Dr. Helie de Domfront foi chamado às seis horas da manhã para dar assistência ao parto da Sra. Foucault. Somente lá se apresentou às nove horas. Constatou, ao primeiro exame, que o feto se apresentava de ombros, com a mão direita no trajeto vaginal. Encontrando dificuldade de manobra na versão, resolveu amputar o membro em apresentação, para facilitar o trabalho de parto. A seguir notou que o membro esquerdo também se apresentava em análoga circunstância, e, com o mesmo objetivo inicial, amputou o outro membro. Como conseqüência, a criança nasceu e sobreviveu ao tocotraumatismo. Diante de tal situação, a família Foulcault ingressa em juízo contra o médico. Nasceu daí um dos mais famosos processos submetidos à justiça francesa.

A sociedade dividiu-se. A Academia Nacional de Medicina da França pronunciou-se a favor do médico e, solicitada pelo Tribunal, nomeou quatro médicos, dos maiores obstetras da época. O resultado do laudo foi o seguinte: 1. Nada provado que o braço fetal estivesse macerado; 2. Nada provado que fosse impossível alterar a versão manual do feto; 3. Não havia razões recomendáveis para a amputação do braço direito e, muito menos, do esquerdo; 4. A operação realizada pelo Dr. Helie deverá ser considerada uma falta grave contra as regras da arte.

Apesar da imparcialidade do laudo, a Academia impugnou-o e outro é emitido por outros médicos, que chegam a conclusão contrária à primeira manifestação dos Delegados da Academia.

O Tribunal de Domfront condenou o Dr. Helie ao pagamento de uma pensão anual de 200 francos.’

Doutrinou, então, o Procurador Dupin – e a ensinança ainda hoje revela-se atual: ‘(...) do momento em que houve a negligência, leviandade, engano grosseiro e, por isso mesmo, inescusável da parte de um médico ou cirurgião, toda a responsabilidade do fato recai sobre ele, sem que seja necessário, em relação à responsabilidade puramente civil, procurar se houve de sua parte intenção culposa’."

Durante o século XX tem origem a Medicina do Trabalho. Época da industrialização em que floresce a figura do assalariado, até então de pouca expressividade.

O século XX é o século no qual o desenvolvimento da medicina possibilitou a aplicação de técnicas cada vez mais sofisticadas e precisas para o conhecimento da dimensão exata das conseqüências de determinado evento traumático sobre a saúde de um indivíduo. Foram modificados conceitos fundamentais, que haviam permanecido estáveis durante séculos, como o próprio conceito de saúde, a aceitação da idéia da transcendência do prejuízo estético, o estudo dos danos morais e de sua reparação, até se chegar ao momento atual.

Antonio Ferreira Couto Filho e Alex Pereira Souza, ao tratar da evolução histórica da responsabilidade médica [7], fazem interessante paralelo, relatando a passagem da vingança privada para a composição por conta de danos causados. Embora não concordando inteiramente com a narrativa, interessante transcrever trecho de sua obra, para ilustrar a visão de outros autores sobre o tema:

"O instituto da responsabilidade civil tem natureza essencialmente dinâmica, tendo de se transformar e se adaptar através dos tempos, adequando-se à evolução da própria civilização. A célebre frase que diz que onde está o homem também estará o direito pode ser empregada, igualmente, mutatis mutandis, para a seara do instituto ora em estudo, daí se poderia dizer, sem pestanejar, que onde existir o homem também existirá a responsabilidade.

Desde os primórdios, desde os primeiros grupamentos humanos, lá nas tribos nômades, já se constata a noção – e, mais precisamente, a aplicação – da responsabilidade civil e seus efeitos. É claro que dos tempos longínquos não se pode exigir requintes de normas como hoje encontramos no mundo; entretanto, para cada época, podemos afirmar que as várias formas de responsabilização eram deveras modernas, por óbvio.

Lentamente o homem primitivo vai evoluindo, não sozinho, mas em conjunto com todo o resto. Os grupamentos sociais começam a incutir a idéia da fixação, de não mais andar de um canto a outro. Os juristas, sociólogos e estudiosos do comportamento humano nos relatam nesse momento uma modificação (evolução) no conceito de responsabilidade. É bem verdade que ainda prevalecia nesta fase uma forma primitiva, a vingança privada.

Portanto, é nessa fase primitiva, selvagem, que a reparação de um dano causado está alheia à seara do Direito. Ela se dá sem parâmetros legais, consubstanciando-se na reação natural do ser humano diante de um estímulo considerado injusto e agressivo num dado momento e espaço. Prevalece, portanto, na origem dos povos, a reparação do mal pelo mal. No lugar de um lesado, passavam a figurar dois lesados, a vingança privada colocava a reparação do dano em escala subjetiva, numa duplicação do dano, tudo para satisfazer a honra do ofendido, mesmo que o prejuízo causado ficasse na esfera do material, o que era, sem dúvida, mais comum.

A evolução continua, como não poderia deixar de ser, e surgem as primeiras sociedades organizadas politicamente, vale dizer, os primeiros governos, e com eles vários regramentos jurídicos. A Lei das XII Tábuas é um dos ordenamentos jurídicos mais antigos, datando de 452 a.C., dentre outras legislações antigas, tais como o Código de Hamurabi e o Código de Manu.

A vindicta privata continuou, só que de maneira mais regrada e moderada, sob a interveniência estatal. O talião é consagrado pelo uso e se transforma em regra. Passou o legislador a definir as condições para a vítima exercer o seu direito natural de retaliação.

O passo seguinte foi o da composição. Desta feita, começa a se perceber, ainda que de maneira bastante crua, a necessidade de substituir a duplicidade do dano, isto é, inicia-se a fase em que se desperta para a possibilidade – muito mais conveniente e salutar – de, em vez de cobrar a retaliação, compor com o autor da ofensa, exigindo uma prestação de pena. A vítima passa a receber do agressor um ‘resgate’ – um somatório em pecúnia ou um objeto de valor.

A vingança privada é, portanto, substituída pela composição, ao alvedrio da vítima. Porém, a exemplo do ocorrido com o talião, há a interveniência estatal, vedando, pois, à vitima, fazer justiça com as próprias mãos e impondo que a composição seja fixada pela autoridade. É o momento da composição tarifada, agasalhada pela Lei das XII Tábuas, em que era estipulado, para cada caso, o valor do resgate (pena) a ser pago pelo ofensor.

Inicia-se, como fase seguinte, a generalização da responsabilidade civil, com a Lei Aquília. Aliás, citando o mestre Miguel Kfouri Neto, em sua obra Responsabilidade Civil do Médico, ‘na Lex Aquilia encontram-se os primeiros rudimentos de responsabilidade médica, prevendo a pena de morte ou deportação do médico culpado de falta profissional’.

Por conseqüência, surge no ordenamento a obrigação de reparar o dano causado. Não há mais o ‘resgate’ da agressão em termos de composição voluntária, vale dizer, não é mais da essência da responsabilidade civil a aplicação de uma pena, mas a reparação do dano, levando-se em consideração o conteúdo econômico envolvido e, principalmente, o elemento subjetivo culpa, importando aduzir que nessa marcha passa-se a separar a responsabilidade civil da responsabilidade criminal.."

Em suma, é preciso ter em mente o fato de que, ao longo de toda a história da civilização ocidental, mormente até o final da primeira metade do século XX, o profissional da medicina sempre ocupou posição social de inegável e elevado destaque. Sua palavra era ouvida e respeitada, e suas determinações cumpridas como verdade inquestionável. O exercício da medicina era uma arte para poucos, e que dependia do brilhantismo e da iluminação pessoal do médico.

Este exercício era encarado tal e qual verdadeiro sacerdócio, e os procedimentos adotados no tratamento de um paciente raramente eram submetidos a dúvidas ou discussões, encarados que eram como justos, inevitáveis ou indispensáveis.

Para isso contribuíam os recursos da medicina, até então limitados ou bastante precários, quase artesanais mesmo. A um tratamento ou procedimento mal sucedido, facilmente se podia atribuir o desenlace aos infortúnios do destino. Havia o senso comum de que todos os recursos disponíveis haviam sido usados para deter a enfermidade.

Nos povoados, vilarejos – e até mesmo nos centros urbanos, prevalecia a figura do "médico da família", que atendia, via de regra, membros de até mais de uma geração familiar, sendo-lhes, ao mesmo tempo, amigo, confidente, conselheiro. O elo de confiança, o caráter personalíssimo do atendimento eram elementos levados ao extremo, e que inibiam qualquer tipo de questionamento, fosse em esfera privada ou judicial.

E veio a chamada Era Moderna. A amplitude e a rapidez das transformações científicas, médicas e tecnológicas modificaram de forma irreversível os fundamentos desta relação médico-paciente.

As relações sociais foram massificadas, daí se tornando impessoais. A figura do clínico geral – médico da família – perdeu relevância, uma vez que esse tipo de atendimento ficou restrito a uma minoria de poder aquisitivo mais elevado. Dois fatores muito importantes contribuíram para a despersonalização da figura do médico: a disseminação dos atendimentos em grandes hospitais e centros de saúde, e o crescente nível de especialização dos profissionais.

Eis, então, o momento em que a situação histórica começa a mudar. Ao mesmo tempo em que a medicina evoluiu, o médico foi afastado do conhecimento a fundo de seu paciente, transformado em um anônimo, conhecido apenas por fichas de acompanhamento do quadro clínico, ou mesmo uma simples entrevista preliminar.

O eixo da responsabilidade civil modificou-se, perdendo força a antiga convicção de que o médico gozava de "imunidade" no exercício de sua função. Tal situação parece lógica, uma vez que, ao passo que se foi demonstrando existir novas técnicas de tratamento, equipamentos cada vez mais sofisticados, remédios mais eficientes e instrumentos de apoio, e o conhecimento do médico ampliado por pesquisas e inovações científicas, o espaço destinado aos "infortúnios", aos "desígnios do destino" foram sendo reduzidos, e o exercício da medicina passou a ser recoberto por um manto de responsabilidades até então inexistentes.

Sobre o autor
Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas

advogado em Alagoas e Pernambuco, consultor de empresas em Direito Médico, Direito do Trabalho e Direito do Consumidor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Eduardo Vasconcelos Santos. Aspectos históricos da responsabilidade civil médica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 107, 18 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4288. Acesso em: 23 dez. 2024.

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