Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

A decisão de pronúncia e o controverso princípio do in dubio pro societate

Agenda 23/10/2015 às 16:16

No procedimento do Tribunal do Júri, a sentença de pronúncia marca um momento importante, sendo a seara de aplicação do princípio do in dubio pro societate, onde o juiz, na dúvida, pronúncia o réu. Assim, passamos a análise da doutrina aplicável.

INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro prevê para o processo penal do Tribunal do Júri duas fases dentro de sua persecução, qual seria a judicium accusationis e a judicium causae.

No fim da primeira fase, o juiz pode chegar a quatro tipo de decisões, sendo elas a pronúncia, impronúncia, desclassificação e absolvição sumária, sendo objeto de estudo neste momento a pronúncia.

A sentença de pronúncia é uma decisão interlocutória que marca o fim da primeira fase, gerando como efeito a admissibilidade da acusação, passando neste momento para o julgamento do réu pelo Tribunal do Júri.

É nesta fase que surge discussão entre a doutrina, isto pois existe uma discordância quanto ao fato de qual atitude o magistrado deve tomar quando encontra-se diante da dúvida se deve ou não pronunciar o acusado.

Nesta situação a doutrina tradicional diz que o réu deve ser pronunciado, isto posto o princípio do in dubio pro societate, sendo o competente para dirimir tal dúvida a sociedade. Em contradição a este posicionamento, a doutrina mais moderna nos traz que deve aplicar-se a presunção de inocência e o in dubio pro reo, tendo em vista a previsão constitucional.

Tendo como ponto de partida o posicionamento acima rapidamente disposto trata-se por observar de forma mais detalhada tal questionamento.

DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE E CRÍTICAS APRESENTADAS PELA DOUTRINA MODERNA

 O procedimento do tribunal do júri é bifásico, ou seja, divide-se em duas fases, sendo a primeira a da judicium accusationis, iniciando-se com a denúncia ou queixa, esta vindo a ser recebida pelo Juiz da Vara do Júri, e finalizando com a preclusão da decisão de pronúncia.  Já a segunda fase, chamada de judicium causae, compreende o recebimento dos autos pelo juiz presidente do Tribunal do Júri e encerrando-se com o julgamento pelo plenário.[1]

Diz-se que a primeira parte do julgamento no Tribunal do Júri “é praticamente igual ao procedimento ordinário perante o juiz singular”, sofrendo pequenas alterações pontuais.[2]

Entende-se a pronúncia como decisão em que o juiz ira proclamar se a imputação feita ao acusado é admissível ou não, encaminhando-a para o julgamento pelo plenário, ou seja, convencido da existência do crime e de indícios suficientes da autoria, deve proferir decisão pronunciando o acusado, fundamentado os motivos de seu consentimento.[3]

Sendo assim,  “o juiz, convencido da existência do crime, bem como de que o réu foi o seu autor (e procura demonstrá-lo em sua decisão), reconhece a competência do Tribunal do Júri para proferir o julgamento.”[4]

Tal decisão, portanto, tem por função verificar a admissibilidade da pretensão acusatória, tal como é feito no recebimento da denúncia, podendo dizer-se que esta seria o re-recebimento da denúncia, neste momento qualificada pela instrução judicializada.[5]

Para que o acusado seja pronunciado é necessário que o juiz esteja convencido da existência do crime, não sendo necessária prova incontroversa, mas que o magistrado consiga observar sua materialidade. Ressalta-se também os indícios suficientes de sua autoria, sendo este “conexões entre fatos conhecidos no processo e a conduta do agente, na forma descrita pela inicial penal”, devendo tais indícios possuir um expressivo grau de probabilidade que aproxime-se da certeza.[6]

A pronúncia trata-se de decisão interlocutória mista prevista no art. 413 do Código de Processo Penal, marcando o acolhimento provisório da acusação por parte do juiz, determinando que o réu submeta-se ao julgamento do Tribunal de Júri. Além de decisão interlocutória mista, esta possui caráter não terminativo, devendo preencher os requisitos previstos no artigo 381 do mesmo códex e sendo recorrível por meio do recurso em sentido estrito.[7]

Deve a pronúncia ser devidamente fundamentada, atentando-se o juiz para não condenar previamente o réu, pois neste momento não há competência para o julgamento. Por isso, deve ter especial cuidado na fundamentação para não contaminar os jurados que podem ser facilmente influenciáveis pela sentença do magistrado, buscando-se zelar pela máxima originalidade do julgamento feito pelos jurados, que devem decidir com independência, minimizando os juízos de valor que vem a ser realizado pelo juiz presidente.[8]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Observa-se também que a decisão de pronúncia não deve fazer referência quanto ao mérito, “pois, caso contrário, afrontaria o princípio da soberania dos veredictos (influência sobre o ânimo dos jurados).”[9]

“Ainda, nessa linha de preocupação, a Lei nº 11.689/08 alterou complemente o rito do Tribunal do Júri, inserindo no art. 478 do CPP, a proibição, sob pena de nulidade de que as partes façam referência “à decisão de pronúncia” e “às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação”.[10]

Nesta fase da persecução do processo penal vigora um princípio defendido por parte da doutrina, sendo este o princípio do in dubio pro societate, este em confronto com o estado de inocência e o princípio do in dubio pro reo, o que gera polêmica quanto a sua constitucionalidade e aplicabilidade.

Márcio Ferreira explica que “tanto em um como em outro momento, uma das idéias fundamentais representadas pelo referido “princípio” é a seguinte: a dúvida quanto à autoria da infração penal que, normalmente, milita em prol do réu (in dubio pro reo), nessas situações especiais, resolve-se em favor da sociedade (da acusação, portanto).“[11]

Sustenta-se que as causas para aplicabilidade do in dubio pro reo referem-se, primeiro, ao fato de que na decisão de pronúncia não exige certeza da autoria do réu, mas sim indícios de que este possa ser o autor, e também a questão de que nos crimes de competência do Tribunal do Júri qualquer dúvida deveria ser sanada pelo juiz natural, qual seja, os jurados.[12]

“Cabe salientar que, para a doutrina tradicional, na fase de pronúncia vigora o princípio in dubio pro societate, uma vez que se resolveriam em favor da sociedade (acusação) eventuais suspeitas quanto à prova.”[13]

Nesse sentido, Denilson Feitoza entende que o princípio do in dubio pro societate é aplicado devido, neste momento, não se tratar de condenação ou absolvição, mas sim de uma análise em que o juiz admite que o réu possa ser ou não julgado pelo tribunal do júri. Desta forma, a aplicação do in dubio pro reo ficaria adstrita apenas quando houver decisão no sentido de absolver ou condenar o acusado. [14]

Fernando Capez diz que, “na fase da pronúncia, vigora o princípio do in dubio pro societate, uma vez que há mero juízo de suspeita, não de certeza”, ou seja, entende que por tratar-se apenas da suspeita de que o acusado possa ser o possível praticante do crime, na dúvida quanto a autoria do crime aplica-se tal princípio.[15]

Walter Nunes da Silva Junior em sua obra nos traz entendimento desta doutrina tradicional no sentido de que:

“Na dúvida, deve o juiz pronunciar deixando para que a questão quanto a culpabilidade seja resolvida pelo tribunal do júri. [...] A essência desse entendimento é de que, em obséquio à soberania do júri popular, sempre que o juiz, após as razões finais, receber os autos a fim de deliberar se o caso é para remeter, ou não, a julgamento para o tribunal do júri, deverá, na dúvida, entender pelo envio do processo, com consequente prolação da decisão de pronúncia, possibilitando, assim, à sociedade, representada por um conselho, composto por sete cidadão recrutados na localidade onde ocorreu o ilícito, exercer o direito-dever conferido pela Constituição de julgar o acusado.[16]

Mirabete explicita em sua obra que “a sentença de pronúncia, portanto, como decisão sobre a admissibilidade da acusação, constitui juízo fundado de suspeita, não o juízo de certeza que se exige para a condenação. Daí a incompatibilidade do provérbio in dubio pro reo com ela.”  Diz-se que há uma inversão da regra do in dubio pro reo para o in dubio pro societate, pois não há a necessidade de um convencimento absoluto para a condenação, não se confundindo os indícios de autoria com mera conjectura, onde “indícios extremamente frágeis, vagos, imprecisos, não legitimam essa decisão”.[17]

“Doutrina mais moderna, contudo, afeiçoada ao trato constitucional dos institutos processuais penais, considera inadmissível, em face da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF), a invocação do in dubio pro societate para legitimar a decisão de pronúncia do acusado.”[18]

Aury Lopes Junior ao discorrer quanto ao princípio nos traz que tal questionamento parte do pressuposto de que não existe base constitucional para o in dubio pro societate, portanto, quando invoca-se a soberania do júri, uma das hipóteses de aplicação destes, “não há como aceitar tal expansão da “soberania” a ponto de negar a presunção constitucional da inocência. A soberania diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri. Nada tem a ver com a carga probatória.”[19]

Além disto, continua com a sua crítica afirmando que:

Não se pode admitir que os juizes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário. Também é equivocado afirmar-se que, se não fosse assim, a pronúncia já seria a “condenação” do réu.[20]

Extrai-se portanto que para Aury Lopes Junior “a pronúncia não vincula o julgamento, e deve o juiz evitar o imenso risco de submeter alguém ao júri, quando não houver elementos probatórios suficientes (verossimilhança) de autoria e materialidade. A dúvida razoável não pode conduzir a pronúncia”, devendo valer-se o in dubio pro reo nesses casos.[21]

Cita-se passagem de Fernando da Costa Tourinho Filho onde critica a aplicação deste princípio dizendo que:

Ademais, quando da pronúncia, se o Juiz não estiver seguro de que a condenação é de rigor, cumpre-lhe impronunciar ou absolver o réu, conforme o caso. Não se concebe, em face da gravidade da pena, permitir que o réu seja submetido a um julgamento soberano, em que muitas vezes a eloquência do Acusador exerce certo fascínio, levando o Conselho de Sentença a proferir decisão condenatória. [...] Ele somente poderá determinar seja o réu julgado pelo Tribunal do Júri se estiver convencido, ante indícios veementes, de ter sido o réu o autor do crime. Se entender que os indícios não o convenceram, a impronúncia é de rigor.[22]

Para este autor é importante que os indícios de autoria sejam os mais convincentes possíveis, não concebendo a mera suspeita como indício. Afirma que a pronúncia é mero instrumento de admissibilidade da acusação e que no momento em que o juiz aplica o in dubio pro societate diante da dúvida este afasta a Constituição e desconhece o princípio da presunção de inocência e completa dizendo que “mesmo em se tratando de in dubio pro reo, na realidade esse princípio é essencialmente falso. Se o Juiz não encontra prova que dê respaldo a um decreto condenatório, a absolvição não é nenhum favor rei.”[23]

André Nicolitt por sua vez apenas nos diz que da análise do Código de Processo Penal, ao tratar da decisão de pronúncia, extrai-se que “não bastam simples suspeitas de autoria, exigem-se indícios fortes que apontem o réu como possível autor do fato criminoso”, o que da margem para o entendimento de que o magistrado apenas irá prolatar sentença de pronúncia quando este estiver diante de forte justificativa e não baseado na “suspeita”.[24]

Por fim, cita-se nesta obra o entendimento de Márcio Ferreira, que ao criticar o princípio referido, explicita que:

Vige em nosso sistema processual penal – em todos os procedimentos, inclusive no do júri – os princípios constitucionais do estado jurídico de inocência e do in dubio pro reo. Assim, não encontra amparo constitucional uma regra como a do in dubio pro societate. Na realidade, não é apenas uma questão de inexistência de amparo constitucional, há, em verdade, total incompatibilidade com a Constituição.[25]

Conclui-se que diante disto que a doutrina mais moderna busca amparo no ordenamento constitucional, conduta esta que deve seguir a doutrina tradicional, isto pois, não tem como fechar os olhos para a o princípio da proteção da inocência e também ao in dubio pro reo, ambos previstos na Constituição e aplicar um princípio que nasceu com a jurisprudência e sem amparo legal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 CAPEZ, Fernando. Processo Penal. 14 ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005.

FEITOZA, Denilson. Direito Processual Penal: Teoria, Crítica e Práxis. 5 ed. Niterói: Impetus, 2008.

FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MACHADO, Angela C. Cangiano. Processo Penal. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 6 ed. vol 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2005.

NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

PEREIRA, Márcio Ferreira Rodrigues. Acusar ou não acusar? Eis a questão... O in dubio pro societate como forma perversa de lidar com a dúvida no Processo Penal brasileiro.  Disponível em <http://podivm.com.br/i/a/artigo_in_dubio.pdf>. Data de acesso: 16/10/2013.

SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas e principais modificações do júri. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 10 ed. vol 2. São Paulo: Saraiva, 2007.


[1] FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MACHADO, Angela C. Cangiano. Processo Penal. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. Pág. 225

[2] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. Pág. 288

[3] CAPEZ, Fernando. Processo Penal. 14 ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005. Pág. 185-186

[4] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 10 ed. vol 2. São Paulo: Saraiva, 2007. Pág. 34

[5] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 6 ed. vol 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. Pág. 285

[6] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2005. Pág. 527

[7] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit., Pág. 285

[8] Ibidem, Pág. 286-287

[9] FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MACHADO, Angela C. Cangiano. Op. Cit., Pág. 227

[10] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit., Pág. 287

[11] PEREIRA, Márcio Ferreira Rodrigues. Acusar ou não acusar? Eis a questão... O in dubio pro societate como forma perversa de lidar com a dúvida no Processo Penal brasileiro.  Disponível em <http://podivm.com.br/i/a/artigo_in_dubio.pdf>. Data de acesso: 16/10/2013. Pág. 01

[12] Ibidem, Pág. 03

[13] FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MACHADO, Angela C. Cangiano. Op. Cit., Pág. 227

[14] FEITOZA, Denilson. Direito Processual Penal: Teoria, Crítica e Práxis. 5 ed. Niterói: Impetus, 2008. Pág. 457

[15] CAPEZ, Fernando. Op. Cit., Pág. 186

[16] SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas e principais modificações do júri. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. Pág. 340-341

[17] MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit., Pág. 527-528

[18] FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MACHADO, Angela C. Cangiano. Op. Cit., Pág. 227-228

[19] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit., Pág. 288-289

[20] Ibidem, 289

[21] Idem.

[22] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit., Pág 35-36

[23] Ibidem, Pág. 36-37

[24] NICOLITT, André. Op. Cit., Pág 289

[25] PEREIRA, Márcio Ferreira Rodrigues. Op. Cit., Pág. 05

Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!