4 FUNDAMENTOS PARA APLICABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO CPC NAS CORTES DE CONTAS
Necessário se faz compreender, inicialmente, o fluxo processual no TCU, conforme orientação do Ministro Benjamin Zymler[23], segundo o qual vale lembrar que a relação processual triangular no Tribunal de Contas é sui generis, posto que “a unidade técnica do TCU incumbida da instrução do processo e o próprio responsável posicionam-se em dois vértices (partes), enquanto o terceiro, destinado ao ‘Estado-juiz’, é ocupado pelo relator ou Colegiado competente (Câmaras ou Plenário)”.
Pois bem. O ponto inicial que confere base legal às cortes de contas punirem àqueles que atentem contra à lealdade processual, praticado, por exemplo, com o fim único de obstaculizar e/ou protelar a boa e correta marcha processual, com a sanção de multa por litigância de má-fé, fundamenta-se no emprego do Código de Processo Civil em suas decisões, de modo subsidiário, visando a enfrentar possíveis lacunas existentes, ainda não supridas nas respectivas leis orgânicas e regimentos internos.
Esse permissivo de os tribunais de contas utilizarem supletivamente o CPC teve marco inicial no Tribunal de Contas da União, por meio da Súmula n. 103, de 25 de novembro de 1976[24], a qual determina: “Na falta de normas legais regimentais específicas, aplicam-se, analógica e subsidiariamente, no que couber, a juízo do Tribunal de Contas da União, as disposições do Código de Processo Civil” (destaquei).
Posteriormente, o Regimento Interno do próprio Tribunal, aprovado pela Resolução TCU n. 155, de 4 de dezembro de 2002, alterada pela Resolução TCU n. 246, de 30 de novembro de 2011[25], autoriza a utilização subsidiária do CPC e outras normas processuais.
Seguindo orientação do modelo constitucional de institucionalização do TCU, boa parte dos demais tribunais de contas também inseriram em seus regimentos internos o permissivo de se utilizar, ante a casos omissos ou dúvidas, a aplicação subsidiária do CPC.
Citam-se, exemplificativamente, tribunais de contas que, na trilha do TCU, incluíram em seus respectivos regimentos internos tal comando: Tribunal de Contas do Estado do Tocantins (Resolução Normativa n. 002/2002, artigo 401, IV); Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (Resolução n. 1028/2015, artigo 147); Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (Deliberação n. 167/1992, artigo 180); Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás (Resolução Administrativa n. 073/2009, artigo 271); Tribunal de Contas do Estado do Piauí (Resolução TCE/PI n° 13/2011, artigo 479); Tribunal de Contas do Estado do Paraná (Resolução n. 1/2006, artigo 537).
Diante da possibilidade de o Tribunal de Contas da União empregar subsidiariamente o Código de Processo Civil, aportou no Supremo Tribunal Federal (STF) o Mandado de Segurança n. 24.961-7, em que o STF entendeu pela possibilidade de utilização subsidiária do CPC a processo administrativo do Tribunal de Contas. A seguir, transcrevem-se excertos do destacado writ:
De acordo com a jurisprudência desta Corte, não há necessidade de intimação pessoal para a sessão de julgamento se intimados os interessados pela publicação no órgão oficial. Nesse sentido, menciono o MS 24.961/DF, Rel. Min. Calos Velloso, cujo acórdão recebeu a seguinte ementa:
(...)
II. - Desnecessidade de intimação pessoal para a sessão de julgamento, intimados os interessados pela publicação no órgão oficial. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO DISPOSTO NO ART. 236, CPC. Ademais, a publicidade dos atos administrativos dá-se mediante a sua veiculação no órgão oficial.
III. - Mandado de Segurança indeferido” (destaquei).
Ademais, há de se destacar que a colmatação de possíveis lacunas, que permite a utilização do CPC, toma por base também o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[26] (Decreto-Lei n. 4.657/1942[27] e decorrentes alterações), conjuntamente com o artigo 126[28] do Código de Processo Civil, cujos dispositivos preveem o emprego da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito.
Analisando, nesse particular, em confronto com o novo CPC, que entrará em vigor em 2016, constata-se que o legislador houve por promover supressão na redação do citado artigo, que passa a ser o art. 140, a qual tem a seguinte disposição:
Art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.
Parágrafo único. O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.
Em comparação, no caput do referido artigo, praticamente não houve alteração, apenas foi suprimida a expressão “sentenciar ou despachar alegando”, por “decidir sobre”. De maneira que foi incluindo o parágrafo único ao artigo.
Com vistas à utilização de normas processuais no âmbito dos tribunais de contas, tem-se que o método possível de agregar é o emprego da analogia, conforme lição de José Manoel de Arruda Alvim Netto[29]:
Na analogia, parte-se de duas situações: uma, regulada por determinada norma; outra, que não foi sequer cogitada pelo legislador. Devido, precisamente, à analogia entre as duas situações, aplica-se, então, a norma às duas, ou seja, à situação expressamente prevista e à situação que, embora não prevista, é àquela que o é. Na analogia, pois, há duas situações: a prevista e a que lhe é análoga, ou seja, o fato ou a situação análoga.
Já Maria Helena Diniz[30] constata que, para a aplicação da analogia, necessita o cumprimento a certos imperativos. O primeiro pressuposto é que o caso concreto em análise não esteja previsto em norma jurídica, vez que caso existisse regramento disciplinando matéria, estar-se-ia diante de interpretação extensiva. A segunda exigência trata-se dos pressupostos de identidade entre o caso não contemplado.
Posto isso, constata-se que apesar de o legislador hão haver estatuído instrumentos com o fim de coibir toda a prática de litigância de má-fé, possibilitou que os tribunais de contas dispusessem de mecanismos para suplantar posturas processuais tendentes a retardar a marcha natural dos processos no âmbito das cortes de contas, impregnada pelo atuar contrariamente ao dever jurídico de lealdade processual.
Exemplo disso, infere-se do artigo 158, da Lei n. 8.443, de 16 de julho de 1992[31] (Lei Orgânica do TCU), dispositivo praticamente de repetição também no artigo 268 do Regimento Interno do citado Tribunal[32], os quais preveem a possibilidade de aplicação de multa, ante as condutas tipificadas nos dispositivos.
Por consequência, as cortes de contas dos estados, dos municípios e do município, ao estatuírem suas leis orgânicas e regimentos internos reproduziram, guardadas as adequações, a redação oriunda do Tribunal de Contas União, de modo que praticamente todos esses tribunais preveem a sanção de multa nas condições elencadas anteriormente.
A título exemplificativo, mencionam-se a seguir normativos de tribunais de contas que disciplinam a matéria em cotejo: Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (Lei Orgânica, artigo 109); Tribunal de Contas do Estado do Ceará (Lei Orgânica, artigo 61, VI e VII); Tribunal de Contas do Estado do Tocantins (Lei Orgânica, artigo 39, V e VI); Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul (Lei Orgânica, artigo 42, III, IV).
Com vistas a concluir essa espécie de fluxo normativo por meio do qual os tribunais de contas detêm respaldo jurídico para colmatar, no caso concreto, todas as finalidades por que circunda o instituto litigância de má-fé, impende consignar que a Lei Orgânica do TCU, no artigo 5º[33] (e dos demais tribunais), destaca aqueles responsáveis por praticarem atos sujeitos ao controle dessa corte de contas, em respeito ao modelo constitucional previsto no artigo 70, parágrafo único, e artigo 71, da Constituição Federal.
5 Litigância de má-fé: precedentes do TCU e de tribunais de contas
Conforme já consignado, a linha de pesquisa adotada também contemplou a coleta de dados por meio das ouvidorias dos tribunais de contas, de modo que os precedentes que integram este trabalho foram obtidos por meio da referida pesquisa.
Inicia-se o estudo sobre esses julgados, destacando decisão oriunda do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins. Referido Tribunal aplicou a determinado licitante, que, diante de não haver logrado êxito em procedimento licitatório, verteu toda sua irresignação ao propor Exceção de Suspeição do Relator, o qual, na oportunidade, presidia a análise de Representação, também proposta pelo licitante.
Diante de tal incúria praticada pelo Excipiente, ao apresentar suas Contrarrazões (DOC. JUNTA 955715/2014. PROCESSO N. 154/2014[34]), o Conselheiro/relator pugnou, entre outros aspectos, para que fosse aplicada multa ao Excipiente, por se utilizar de ardil, ao provocar incidente manifestamente infundado, ferindo, assim, o princípio da lealdade processual, fato que configuraria litigância de má-fé.
Veja-se excerto da propositura do Excepto, por ocasião da apresentação das Contrarrazões:
2. Seja aplicada multa ao excipiente, nos termos dos arts. 159 e 401, VI do RITCE/TO e arts. 17, VI, 18 e 739-B do CPC, em face da patente inobservância de fundamentos comprobatórios mínimos a pretensão do excipiente, vez que se coaduna em litigância de má-fé, conforme exaustivamente exposto.
Diante da orientação apresentada nas Contrarrazões, ao analisar o mérito, o Plenário do TCE/TO, por meio da Resolução n. 362/2014 - TCE/TO – Pleno, de 18/6/2014, decidiu por não acatar a Exceção de Suspeição, arquivando-a, por consequência. Entretanto aplicou-se multa ao Excipiente, conforme trechos da Resolução abaixo em destaque:
RESOLUÇÃO Nº 362/2014 - TCE/TO - PLENO - 18/06/2014
PROCESSO N. 154/2014
RESOLVEM os membros do Egrégio Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, reunidos em Sessão Plenária, com supedâneo no artigo 132, II, da LOTCE/TO:
8.1 não acatar o presente Incidente de Exceção de Suspeição oposto pelo senhor Claudinei Alves Menezes (CPF n° 031.055.601-57), por meio da sua causídica legalmente constituída (§ 2º do art. 220 do RITCE/TO), a Dra. Kátia Botelho Azevedo - OAB/TO nº 3950, em desfavor do Conselheiro Severiano José Costandrade de Aguiar na condição de Relator dos Autos de nº 09850/2013_Representação em face da Concorrência de nº 005/2013 e, em consequência, determinar o arquivamento destes Autos de nº 0154/2014;
8.2 aplicar multa no valor de R$ 1.000,00 (um mil reais) ao Excipiente, o senhor Claudinei Alves Menezes (CPF n° 031.055.601-57) pela conduta deliberada em procrastinar o andamento dos Autos de nº 09850/2013 em evidente inobservância ao princípio da lealdade e da boa-fé processual, em cotejo com os arts. 14, II, 17, VI e 18, primeira parte do caput, todos do CPC, de aplicação subsidiária a este Sodalício nos termos do inc. IV, do art. 401 do RITCE/TO; (destaquei).
O Tribunal de Contas da União também levou a efeito julgado paradigma, materializado no Acórdão n. 261/2012 – TCU – Plenário, da Relatoria do Ministro Walton Alencar Rodrigues, em apreciação de Recurso de Reconsideração, frente à Tomada de Contas Especial que julgou irregulares as contas de convênio, com imputação de débito e aplicação de multa ao responsável.
A seguir, transcrevem-se excertos do citado julgado, em que o TCU negou provimento ao Recurso em tela, promovendo o seu arquivamento. Todavia aplicou-se multa ao recorrente por litigância de má-fé:
ACÓRDÃO Nº 261/2012 – TCU – Plenário
1. Processo nº TC 003.851/2009-0.
(...)
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de recurso de reconsideração contra o Acórdão 6.764/2009, 1ª Câmara, em que se identificou a apresentação de documentos fraudados, pelo responsável.
ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão do Plenário, ante as razões expostas pelo Relator, com fundamento nos artigos 14, inciso I, 17, inciso II, e 18 do Código de Processo Civil, e 298 do Regimento Interno, em:
9.1. aplicar a Arlindo Adelino Troian, a multa prevista no art. 18 do Código de Processo Civil, no valor de R$ 725,00 (setecentos e vinte e cinco reais), fixando-lhe o prazo de quinze dias, a contar da notificação, para comprovar, perante o Tribunal, o recolhimento da respectiva quantia ao Tesouro Nacional, atualizada monetariamente entre a data do presente acórdão e a do efetivo recolhimento, se paga após o vencimento, na forma da legislação em vigor; (destaquei)
Outro julgado que merece destaque advém do Tribunal de Contas do Estado do Pará. Ao analisar processo de Denúncia, em que particular tentava receber alugueres em atraso, entendeu o citado Tribunal, dada as condicionantes e elementos dos autos (Processo nº. 2010/50221-6), que o denunciante se utilizou da lide como sucedâneo de ação judicial de cobrança.
Nesse passo, cita-se trecho do Acórdão n. 48.985/2011, em que o Conselheiro Relator Ivan Barbosa da Cunha assim consignou:
A este respeito, parece-me clara ocorrência de litigância de má-fé por parte da denunciante, assim prevista no Código de Processo Civil:
Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que:
[...]
III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
Destarte, o Plenário do TCE/PA reputou ser improcedente a Denúncia, via consequência opinou pelo seu arquivamento. Embora restasse configurada a litigância de má-fé, tal multa não foi aplicada, em virtude de o responsável já haver falecido, posto que tal sanção é personalíssima.
Por fim, registre-se ainda, conforme respostas obtidas por meio das ouvidorias dos TCs, que o Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás prevê, no artigo 47-A[35], de sua Lei Orgânica (Lei n. 15.958/2007) a aplicação de multa àqueles que oporem embargos de declaração meramente protelatórios.
De igual forma, há que se destacar respeitável iniciativa do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, ao disciplinar, através do artigo 137[36], do Regimento Interno (Resolução n. 1028/2015[37]), as situações em que se coíbe com aplicação de multa diante de condutas personificadas de má-fé. Acrescente-se que o regimento interno do mencionado Tribunal entrou em vigor recentemente, em 1º de junho de 2015.
Este tribunal pune também, com aplicação de multa, quando se opõem embargos manifestamente protelatórios. Inclusive eleva-se o valor da multa aplicada, caso seja reiterada a oposição de embargos protelatórios, condicionando a interposição de qualquer outra espécie recursal ao adimplemento do valor respectivo, conforme estabelecem o artigo 126, §§ 4º e 5º[38] do Regimento Interno do TCE/RS.