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A sociedade dos delatores.

Agenda 09/11/2015 às 08:26

Se o delator se safar sem pagar nada, corremos o risco de viver em uma sociedade de dedos-duros, onde o mais rápido em abrir o bico será incentivado a continuar cometendo ilícitos sem o mais leve temor de ter que arcar com as consequências.

Delação premiada, acordo de leniência, colaboração premiada são expressões cada vez mais ouvidas por quem acompanha os noticiários. São novos nomes para uma situação tão antiga quanto corriqueira. Tratam-se das condutas que caracterizam o dedo-duro, também conhecido como caguete, xis nove, delator, como tal.

Algumas pessoas, em especial as mais velhas, que viveram num tempo em que a honradez era uma qualidade apreciada, não compreendem como algo moralmente condenável caiu tão ao gosto popular. Questiona-se como se pode dar ouvidos a alguém que, além de criminoso, é também um dedo-duro.

Na verdade, ninguém é condenado apenas em razão do depoimento do delator, visto que há todo um conjunto probatório a ser analisado. Não obstante, sem as informações desse criminoso que também estava envolvido na prática do ato ilícito, possivelmente não haveria meios de desvendar o modus operandi do crime, pois como ele fazia parte do esquema, tinha um conhecimento privilegiado que poderá indicar a direção em que as investigações devem operar, além de municiar os investigadores com documentos que comprovem os fatos alegados. Isso é particularmente verdadeiro em crimes complexos e mais sofisticados.

É preciso destacar que o delator, na maioria das vezes, não é isento de punições, por isso mesmo não teria interesse em inventar os fatos apenas para prejudicar terceiros. Elas serão apenas diminuídas. Mesmo porque, do contrário, isentando o delator de qualquer punição, haveria aí um incentivo à prática do crime, pois bastaria delatar os demais comparsas assim que as investigações começassem e a impunidade estaria garantida. O mais rápido em dedurar os demais livrar-se-ia de todas as consequências do crime.

Não se pode perder de vista que o receio da punição é um inibidor social que costuma tornar o cálculo do custo benefício mais oneroso. Quanto maior o proveito e menor a possibilidade de um prejuízo, mais tentadas as pessoas estarão, de um modo geral, a locupletar-se ilicitamente.

O interesse na utilização da delação deve ser avaliado com cuidado, caso a caso. Não se pode generalizá-la e simplesmente abrir mão de outras formas de investigação, mesmo que mais dificultosas. Creio que seria temerário implantar simplesmente uma política de prêmio aos dedos- duros em qualquer situação. Há de ser pesado, sob o critério da proporcionalidade, se o proveito obtido com as informações do delator são maiores do que o mal que a eventual impunidade ou menor rigor na punição dele, que também é um criminoso e não deve ser tratado como vítima, acarretará, pois restará um indelével sentimento de impunidade no ar.

No limite, podemos relembrar que durante a Santa Inquisição, especialmente em Portugal e Espanha, houve uma época em que vigorou uma verdadeira paranoia popular. Se uma pessoa fosse acusada de bruxaria ou qualquer ato contrário aos bons costumes então vigentes, ela certamente seria condenada. Veja que no Manual dos Inquisidores (escrito por Nicolau Eymerich em 1376 e revisado por Francisco de La Peña em 1576), a orientação é que a tortura fosse o instrumento utilizado para extrair confissões. Paradoxalmente, havia uma ressalva de que a confissões deviam ser espontâneas, por isso, depois de quebrar os ossos do acusado, ele deveria ratificar a confissão livre de tortura. E se não o fizesse? Torturava-lhe novamente e depois dava-lhe a oportunidade de ratificar a confissão, num ciclo sem fim.

Cesare Beccaria, no universalmente elogiado livro iluminista do século XVIII “Dos Delitos e Das Penas”, já advertia que a tortura é um meio eficaz de condenar o inocente débil e absolver o criminoso forte. Atento a essa advertência, a delação não pode ser imposta e o delator não deve ser pressionado a dedurar os comparsas, sob o risco de haver abusos e de a denúncia ser pautada pelo que as autoridades querem ouvir ao invés da busca simplesmente pela verdade.

Não era diferente na antiga União Soviética, onde criou-se uma sociedade extremamente desconfiada em razão da institucionalização da delação. As pessoas suspeitavam dos vizinhos, colegas de trabalhos e até dos familiares. Na dúvida, delatava-se, antes de ser delatado. O livro Criança 44 (Child 44) do escritor britânico Tom Rob Smith, que apesar de ser uma obra de ficção é fruto de um minucioso trabalho de pesquisa, demonstra que se você fosse acusado, ressalte-se, meramente acusado, de ser contrarrevolucionário, capitalista ou de ter apenas criticado o sistema vigente, você seria preso e certamente confessaria o crime, mais uma vez com o auxílio do método da tortura, e, na melhor das hipóteses passaria uma temporada de trabalhos forçados nas Gulags da Sibéria sob um frio inclemente e sob terríveis condições de vida.

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Obviamente não vivemos em um período de ditadura e opressão e a tortura, se ainda está presente em nossas prisões, acreditamos ser apenas um problema restrito e que logo será erradicada de vez, certo que ela é inadmissível em uma sociedade que quer ser civilizada. Dito isso, reiteramos que o delator não deve ser pressionado a delatar e deve sempre ser aconselhado pelo seu advogado, que deverá acompanhá-lo em todas as suas oitivas.

Até no seio de nossa própria família por vezes nos deparamos com situações de “delação” e quem é pai ou mãe sabe do dilema que enfrentamos. Desde que Caim matou Abel, irmãos mesmo que se amem muito, desentendem-se. Nesse contexto, a delação pode ter origem em ciúme ou outros sentimentos pouco nobres. Quando um irmão conta para o pai uma atitude errada do outro filho o que fazer? Como fazer justiça? Como punir o filho que infringiu uma regra, sem incentivar um comportamento de manipulação, onde um filho pode usar-lhe como instrumento de vingança? Vê-se que não dilemas de difícil elucidação.

De todo modo, no que tange à delação premiada e congêneres, acreditamos que apesar de ser moralmente condenável, do ponto de vista do indivíduo, a sociedade ganha com o desbaratamento das quadrilhas e a condenação dos criminosos. Como dizia Milton Friedman, “There is no such thing as a free lunch” (algo como não existe almoço grátis), na medida em que há sempre consequências insuspeitas mesmo nas aparentes melhores intenções.

Ao fim e ao cabo, apesar de a delação ser um instrumento jurídico altamente relevante e eficaz, não substitui outros modos investigativos e há de se ter o cuidado de investigar com profundidade se a Justiça não está sendo usada meramente como instrumento de vingança. Outrossim, se o delator se safar sem pagar nada à sociedade, estaremos também correndo o risco de viver em uma sociedade de dedos-duros, aonde o mais rápido em abrir o bico será incentivado a continuar cometendo ilícitos sem o mais leve temor de ter que arcar com as consequências.

Sobre o autor
Eduardo Moreira Lustosa

Advogado especialista em Direito Processual Civil e Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUSTOSA, Eduardo Moreira. A sociedade dos delatores.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4513, 9 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44328. Acesso em: 23 dez. 2024.

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