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Elementos constitutivos do Estado.

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Agenda 13/11/2015 às 13:28

Os elementos constitutivos do Estado nunca se apresentam de forma isolada. Eles estão em comunicação interna, interagindo, dialogando e cooperando entre si, em sinergia, interpenetrando-se e complementando-se.

Resumo: Este artigo, tendo como modelo principal a forma do Estado democrático de direito, tem como objetivo tratar sobre os elementos constitutivos do Estado e, com base nisso, propor um conceito de Estado.

Palavras-chave: Estado democrático de direito; povo; poder político; princípios da justiça social; ordem jurídica; autogoverno.

Sumário: Introdução. 1. Teorias de número de elementos constitutivos do Estado sustentadas por diversos autores. 2. Uma teoria de número aberto de elementos do Estado. Uma proposta de conceito de Estado. 2.1. Povo. 2.2. Território. 2.3 Poder político. 2.4. Princípios éticos ou morais da justiça social. 2.5. Ordem jurídica constitucional socialmente justa. 2.6. Finalidade. 2.7. Recursos. 2.8. Autogoverno: governo autônomo e independente. Conclusão. Referências bibliográficas.


Introdução

Ora, os que governam não devem ser amantes do poder, porque se o forem encontrarão amantes rivais e lutarão com eles (...) Nossos governantes e nossas governantes também... Não creias que tudo quanto eu disse se aplique apenas aos homens, e não às mulheres... (Platão)

O Estado é a instituição mais poderosa, complexa e dinâmica construída pelos seres humanos em sociedade, pela humanidade. É uma instituição em constante evolução e transformação. Na sua evolução histórica, ele foi assumindo várias formas ou tipos estatais. Na literatura produzida ao respeito, é comum falar-se nas seguintes formas ou tipos de Estado: Estado antigo, Estado grego, Estado romano, Estado medieval, Estado moderno. Por sua vez, o Estado moderno, na sua evolução, foi adotando também várias formas ou tipos: Estado absolutista, Estado liberal de direito, Estado social de direito, Estado social e democrático de direito ou, simplesmente, Estado democrático de direito. Considerando isso, necessário salientar que o presente estudo terá como referência principal a forma do Estado democrático de direito, de um verdadeiro Estado democrático de direito (aquele que não o é somente de nome, como diria Aristóteles), ou seja, um Estado democrático da justiça social, isto é, da justiça ampla, preventiva e jusdialogal, não apenas jurisdicional ou judicial.

Existem diferentes modos de conceituar o Estado. Um deles é tomando como critério os elementos que o constituem. Entre os autores que tratam desse assunto, porém, não existe unanimidade em relação a quantos e quais são os elementos formadores do Estado, e, em razão disso, tampouco existe consenso relativamente ao seu conceito, havendo tantos conceitos quantos forem os estudiosos dele.

Nesse contexto, o presente texto tem como objetivo contribuir para o debate sobre quais e quantos são os elementos formadores do Estado, e, com base nisso, propor um conceito do Estado.


1. Teorias de número de elementos constitutivos do Estado sustentadas por diversos autores

Antes de tratar sobre as teorias de número de elementos constitutivos do Estado, devemos, brevemente, dizer que entre os tratadistas, assim como não há consenso em relação a quantos e quais são os elementos do Estado, tampouco existe consenso acerca dos termos usados para referir-se a eles. A maioria dos autores usa os termos “elementos”, “componentes”, “dimensões”. Já outros, junto a esses termos, utilizam os termos “características”, “causas”, “pressupostos”, “requisitos”. Nós, sem desprezar outros termos, utilizaremos aqui, indistintamente, os termos “elementos”, “componentes”, “dimensões”.

Quanto ao número das dimensões constitutivas do Estado, como já dissemos, não há consenso entre os autores. Alguns sustentam uma teoria de três elementos, outros defendem uma teoria de quatro componentes, ainda outros sustentam uma teoria de cinco elementos, etc.

José Francisco Rezek, por exemplo, pensa que são três os elementos do Estado: (1) território; (2) população; e (3) governo:

“O Estado ostenta três elementos conjugados: uma base territorial, uma comunidade humana estabelecida sobre essa área e uma forma de governo não subordinado a qualquer autoridade exterior (...) Atributo fundamental do Estado, a soberania o faz titular de competências (...) já se terá visto insinuar, em doutrina, que os elementos constitutivos do Estado não seriam apenas o território, a população e o governo: a soberania seria um quarto elemento (...) Essa teoria extensiva encerra duplo erro. A soberania não é elemento distinto: ela é atributo da ordem jurídica, do sistema de autoridade, ou mais simplesmente do terceiro elemento, o governo, visto este como síntese do segundo – a dimensão pessoal do Estado -, e projetando-se sobre seu suporte físico, o território.” (REZEK, 1996, pp. 160, 226, 227 e 228) (os negritos são nossos).

Paulo Henrique Gonçalves Portela também defende a ideia de que são três os elementos constitutivos do Estado: (1) território; (2) povo; e (3) governo soberano:

“O estudo do Estado... parte também do exame de seus três elementos essenciais... o território, o povo e o governo soberano (...) O governo soberano, também chamado de “poder soberano”, é a autoridade maior que exerce o poder político do Estado (...) a soberania é o atributo do poder estatal que confere a este poder o caráter de superioridade frente a outros núcleos de poder que atuam dentro do Estado, como as famílias e as empresas...” (PORTELA, 2015, pp. 168 e 169). (negritado por nós).

Outro autor que sustenta uma teoria de três elementos formadores do Estado é Sahid Maluf: (1) população; (2) território; (3) governo:

“No tocante à sua estrutura, o Estado se compõe de três elementos: a) população; b) território; c) governo (...) A condição de Estado perfeito pressupõe a presença concomitante e conjugada desses três elementos, revestidos de características essenciais: população homogênea, território certo e inalienável e governo independente”. (MALUF, 1998, p. 23) (negritos nossos).

Já Hans Kelsen defende uma teoria de quatro elementos formadores do Estado: (1) território; (2) povo; (3) poder; e (4) tempo ou período de existência:

“A doutrina tradicional distingue três ‘elementos’ do Estado: seu território, seu povo e seu poder (...) É característico da teoria tradicional considerar o espaço – território -, mas não o tempo, como um “elemento” do Estado. No entanto, um Estado existe não apenas no espaço, mas também no tempo, e, se consideramos o território como um elemento do Estado, então, temos que considerar também o período de sua existência como um elemento do Estado.” (KELSEN, 1998, pp. 299 e 314) (negritos nossos).

Por seu lado, Dalmo de Abreu Dallari também sustenta que os componentes do Estado são quatro: (1) ordem jurídica; (2) finalidade (3) povo; (4) território:

“Em face de todas as razões até aqui expostas, e tendo em conta a possibilidade e a conveniência de acentuar o componente jurídico do Estado, sem perder de vista a presença necessária dos fatores não jurídicos, parece-nos que se poderá conceituar o Estado como a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território. Nesse conceito se acham presentes todos os elementos que compõem o Estado, e só esses elementos. A noção de poder está implícita na de soberania, que, no entanto, é referida como característica da própria ordem jurídica. A politicidade do Estado é afirmada na referência expressa ao bem comum, com a vinculação deste a um certo povo, e, finalmente, a territorialidade, limitadora da ação jurídica e política do Estado, está presente na menção a determinado território.” (DALLARI, 2012, p. 122) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Por sua vez, Celso Ribeiro Bastos expressa uma teoria de cinco elementos do Estado: (1) povo; (2) território; (3) governo; (4) ordem jurídica: leis; (5) poder:

“No nosso Curso de teoria do Estado e ciência política tivemos o ensejo de definir o Estado como a ‘organização política... resultante de um povo vivendo sobre um território delimitado e governado por leis que se fundam num poder não sobrepujado por nenhum outro externamente e supremo internamente...” (BASTOS, 1990, p. 7) (negritos nossos).

Também, Antônio Sebastião de Lima sustenta uma teoria de cinco elementos do Estado, classificados em duas categorias: (a) elementos materiais, que são quatro; e (b) um elemento formal, que é o direito constitucional. Dessa forma, para esse autor, os cinco elementos formadores do Estado são: (1) povo; (2) território; (3) governo; (4) finalidade; e (5) direito constitucional:

“O Estado, produto da cultura humana, sociedade política, instituição política... tem matéria e forma. Os elementos essenciais que lhe dão existência são o povo, o território, o governo e a finalidade. Esses elementos, em conjunto, são a estrutura do Estado, a sua constituição material. As regras que estabelecem os vínculos de organização e funcionamento entre esses elementos são a constituição formal do Estado, o seu direito constitucional escrito ou consuetudinário.” (LIMA, 1998, p. 35) (negritos nossos).

Para Marcus Cláudio Acquaviva, compreendendo-as como causas materiais, formais e final, também são cinco as “causas” constitutivas do Estado: (1) povo; (2) território; (3) ordem jurídica; (4) poder político; e (5) finalidade:

“As causas constitutivas do Estado são materiais, formais e final. São causas materiais do Estado o povo, ou elemento humano, e o território (...) Quanto às causas formais... são a ordem jurídica e o poder político (...) Quanto à causa final... o Estado tem por causa final o bem comum (...) A soberania é o atributo do poder do Estado...” (ACQUAVIVA, 2010, pp. 24 e 51) (negritos nossos).

Por seu turno, Valério de Oliveira Mazzuoli, num primeiro momento, afirma uma teoria de quatro elementos do Estado, mas depois admite a existência de um quinto elemento. Além do mais, como Dallari, Mazzuoli, destacando o seu componente jurídico, chama o Estado de “ente jurídico”. Dessa forma, podemos concluir que, em verdade, para Mazzuoli, os elementos do Estado são seis: (1) ordem jurídica; (2) povo; (3) território; (4) governo; (5) finalidade; e (6) capacidade para manter relações com os demais Estados:

“Pode-se definir o Estado... em sua concepção jurídica moderna, como um ente jurídico, dotado de personalidade internacional, formado de uma reunião (comunidade) de indivíduos estabelecidos de maneira permanente em um território determinado, sob autoridade de um governo independente e com a finalidade precípua de zelar pelo bem comum daqueles que o habitam (...) De acordo com a definição de Estado que acabamos de colocar, ficam postos em evidência os quatro elementos constitutivos do Estado: povo, território, governo e finalidade. Além destes elementos, pode-se também incluir a capacidade para manter relações com os demais Estados... (...) O conceito de governo autônomo e independente induz à ideia de Estado soberano, que é aquele... que não reconhece nenhum poder superior...” (MAZZUOLI, 2015, pp. 483 e 490) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Da leitura do livro Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, podemos afirmar que, para Hobbes, os elementos do Estado são sete: (1) povo: povo reunido; (2) território: espaço onde o povo está reunido; (3) recursos: recursos de todos; (4) poder soberano; (5) governo; (6) ordem jurídica: leis do Estado; e (7) finalidade: preservação da paz e da justiça, defesa e segurança comum e todas as comodidades da vida para o povo:

“Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mi mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado... É esta a geração daquele grande Leviatã... ao qual devemos... nossa paz e defesa (...) É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano (...) É desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido (...) preservação da paz e da justiça, que é o fim em vista do qual todos os Estados são instituídos (...) O cargo do soberano... consiste no objetivo para o qual lhe foi confiado o soberano poder, nomeadamente a obtenção da segurança do povo. Mas por segurança não entendemos aqui uma simples preservação, mas também todas as comodidades da vida (...) E sempre que muitos homens... se tornarem incapazes de sustentar-se com seu trabalho, não devem ser deixados à caridade de particulares, mas serem supridos... pelas leis do Estado...” (HOBBES, 2000, pp. 144, 145, 150, 251 e 258) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Da sua parte, Platão, na sua obra A República, também menciona a existência de sete elementos formadores do Estado: (1) povo ou conjunto de habitantes; (2) território; (3) poder; (4) governo; (5) princípios de justiça; (6) ordem jurídica: constituição, leis e costumes; (7) finalidade: conferir educação e os maiores benefícios ao povo. Repare-se:

“Um Estado nasce... das necessidades dos homens (...) o conjunto dos habitantes recebe o nome de cidade ou Estado (...) O território do Estado precisa ser estendido (...) Teremos, pois, de cortar para nós uma fatia do território vizinho (...) os que governam não devem ser amantes do poder (...) não são vãs quimeras o que dissemos sobre a cidade e seu governo, e sim coisas que, embora difíceis, são realizáveis – mas realizáveis unicamente de maneira que descrevemos, isto é, quando haja na cidade um ou vários governantes que... tenham... na mais alta estima o reto e as honras que dele dimanam, prezando como a maior e mais necessária de todas as coisas o justo... cujos princípios serão exaltados por eles ao organizarem a cidade (...) a justiça é em si mesmo o maior dos bens (...) para educá-los de acordo com seus próprios costumes e leis... para que o Estado alcance no mais breve espaço de tempo a felicidade e possa conferir os maiores benefícios ao povo que se rege por tal constituição...” (PLATÃO, 1996, pp. 37, 39, 42, 157 e 173) (os negritos são nossos).

Assim, considerando todos os elementos sugeridos por todos esses autores, teremos que os elementos constitutivos do Estado são: (1) população; (2) povo; (3) território; (4) tempo; (5) poder político; (6) governo; (7) finalidade; (8) recursos; (9) princípios de justiça; (10) ordem jurídica; (11) capacidade de manter relações com outros Estados.


2. Uma teoria de número aberto de elementos do Estado. Uma proposta de conceito de Estado

Em razão do que foi exposto, podemos afirmar que não é razoável pensar-se na existência de um número fixo e fechado de elementos do Estado, seja fechado em três, seja fechado em quatro, seja fechado em cinco, seja fechado em seis, etc. Sendo o Estado uma instituição complexa e em constante evolução e transformação, mais razoável é pensar-se em que esse número é aberto e não fechado. Postulando, então, uma teoria de número aberto de elementos constitutivos do Estado, entendemos que o verdadeiro Estado democrático de direito está formado pelos, entre outros, seguintes elementos: (1) povo; (2) poder político; (3) território; (4) princípios éticos ou morais da justiça social; (5) ordem jurídica constitucional socialmente justa; (6) finalidade; (7) recursos; e (8) autogoverno.

Esses elementos nunca se apresentam de forma isolada. Eles estão em comunicação interna, unidos, ligados, conjugados, coordenados. Eles interagem, dialogam, cooperam, interpenetram-se e complementam-se para a formação, funcionamento, desenvolvimento e aperfeiçoamento do Estado. Em sinergia, formam um sistema, o sistema do Estado, um sistema aberto ao mundo e à vida, à sociedade, aos outros povos, sociedades, Estados e entes internacionais, com os quais interage, dialoga e coopera e deve interagir, dialogar e cooperar.

Isolando-os para fins apenas didáticos, tratemos, brevemente, de cada um desses componentes do Estado.

2.1 Povo

Formado por indivíduos-cidadãos com dignidade de pessoas humanas, isto é, no dizer de Kant, por pessoas consideradas sempre como fins e nunca apenas como meios (Cf. KANT, 2001, pp. 69 e 70), e chamado também de cidadania, o povo é a dimensão humana e humanizadora do Estado. No Estado social e democrático de direito, ou, simplesmente, Estado democrático de direito, o povo é o titular do seu poder soberano (princípio da soberania popular), como o proclamou Rousseau, e o titular do seu governo democrático (princípio do governo popular): o governo democrático (a democracia) é governo do povo, pelo povo e para o povo, como o afirmou Abraham Lincoln.

De forma particular, a Constituição do Estado democrático de direito brasileiro de 1988 registra isso nos incisos I, II e III, e parágrafo único do seu art. 1º, Título I:

“Título I – DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Art. 1º. A República Federativa do Brasil... constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II – a cidadania

III – a dignidade da pessoa humana

[...]

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (negritos nossos).

Num verdadeiro Estado democrático de direito, então, o povo não é apenas um componente sociológico do Estado, mas é também componente normativo, jurígeno, ético (moral), jurídico e político. Nesse Estado, o povo, seja de forma direta, seja por meio dos seus representantes éticos, justos, honestos, dialógicos, cooperativos, pacíficos e pacificadores, humanos e humanizadores, e junto a esses seus representantes, é o construtor e reconstrutor dos princípios éticos ou morais da justiça social e da ordem jurídica constitucional socialmente justa do Estado, princípios e ordem aos quais o Estado e ele próprio estão e devem estar submetidos. Como dimensão humana do Estado, o povo é, pois, um ser humano coletivo ético-jurídico-político.

Nesse sentido, o verdadeiro Estado democrático de direito (Estado do povo, pelo povo, com o povo e para o povo, como diriam Rousseau e Lincoln) é um empreendimento ético-jurídico-político originado, construído e desenvolvido pelo seu componente humano e para o seu componente humano: o povo, formado por indivíduos-cidadãos com dignidade de pessoas humanas. Por seu componente humano e para o seu componente humano, o verdadeiro Estado democrático de direito é, pois, também, um Estado ético, humano e humanizador.

Assim, o povo e os indivíduos-cidadãos que formam o povo não são meros objetos do Estado, nem da sua ordem jurídica, nem do seu governo, mas, principalmente, são autores, sujeitos, princípios e fins primeiros deles. Por isso, o povo e os indivíduos-cidadãos que o constituem tampouco são apenas sujeitos de deveres e direitos subjetivos perante o Estado, mas, sobretudo, são autores do próprio direito (positivo ou positivado) que devem observar, obedecer e respeitar e que o Estado também deve observar, obedecer e respeitar e deve fazer com que seja obedecido e respeitado com o uso da força, se necessário for.

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É pelo povo e para o povo que o Estado existe. O povo é, pois, o componente criador, gestor, empreendedor, construtor e beneficiário do Estado democrático de direito.

Há autores que, considerando o elemento humano como o mais importante e fundamental do Estado, conceituam o Estado como: “conjunto de habitantes” (PLATÃO, 1996, p. 39); “universalidade dos cidadãos” (ARISTÓTELES, 1998, p. 41); “multidão unida numa só pessoa” (HOBBES, 2000, p. 144); “pessoa pública formada pela união de todas as demais” (ROUSSEAU, 1996, p. 22); “associação constituída por cidadãos iguais” (RAWLS, 1997, p. 230); “povo politicamente organizado”; “O Estado somos nós”, etc.

2.2 Território

É o elemento espacial do Estado. É o espaço no qual e sobre o qual o Estado afirma seus direitos de soberania e governo. Esse espaço tem várias dimensões: (a) espaço territorial: solo e subsolo; (b) espaço fluvial: rios e lagos; (c) espaço aéreo; (d) espaço marítimo: mar territorial, plataforma continental, alto mar; (e) espaço ficto: embaixada, navios e aeronaves.

Num verdadeiro Estado democrático, o território, além de espaço jurídico e político, é também espaço moral, ético e humano, pois é nesse espaço que vive seu elemento humano, seu empreendedor, criador, governante e soberano: o povo e os indivíduos-cidadãos com dignidade de pessoas humanas que compõem o povo, ente coletivo moral, ético e humano.

Além do mais, o território é também fonte de recursos naturais e ou materiais do Estado.

2.3 Poder político

É o componente energético e coercitivo do Estado, a energia ou força coercitiva do Estado. Num Estado democrático de direito, como foi visto, o titular do poder político é o povo, a cidadania, os indivíduos-cidadãos como coletividade.

O poder do Estado tem as seguintes características: (1) é soberano ou supremo, isto é, possui a qualidade (ou atributo) da soberania ou supremacia; (2) é um, só um, uno, indivisível, indelegável, inalienável e imprescritível. A qualidade da soberania é tão inerente ao poder do Estado que ela é considerada como sendo o próprio poder soberano ou supremo do Estado. Vejamos isso em quatro pensadores da soberania ou poder supremo ou soberano do Estado: Aristóteles, Bodin, Hobbes e Rousseau.

O poder supremo do Estado como sinônimo de soberania já está em Aristóteles:

“O governo é o exercício do poder supremo do Estado. Esse poder só poderia estar ou nas mãos de um só, ou da minoria, ou da maioria das pessoas (...) A principal dificuldade consiste em saber a quem deve caber o exercício da soberania.” (ARISTÓTELES, 1998, pp. 105 e 149) (negritos nossos).

Para Jean Bodin, autor francês, considerado o primeiro a tratar da soberania de forma sistemática, ela, a soberania, tendo as características de indivisibilidade, indelegabilidade, irrevogabilidade e perpetuidade, é o poder absoluto ou supremo do Estado. Paulo Bonavides, na sua obra Ciência Política, nos lembra disso:

A soberania é una e indivisível, não se delega a soberania, a soberania é irrevogável, a soberania é perpétua, a soberania é um poder supremo, eis os principais pontos de caracterização com que Bodin fez da soberania... um elemento essencial do Estado.” (BONAVIDES, 2003, p. 160) (negritado por nós).

Também para Hobbes o poder do Estado é poder soberano, que ele, ressaltando sua característica de indivisibilidade, chama também de “soberania”, “o maior dos poderes humanos”, “poder comum”, “grande autoridade”:

O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência da sua vontade: é o caso do poder de um Estado (...) Portanto não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido de benefício comum. A única maneira de instituir um tal poder comum... é conferir toda a sua força e poder a um homem ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade (...) à multidão assim unida numa só pessoa chama-se Estado, em latim, civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes... daquele Deus mortal (...) Aquele que é portador dessa pessoa chama-se soberano, e dele se diz que possui poder soberano (...) o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido (...) É evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente nenhum pacto (...) E se fizer tantos pactos quantos forem os homens, depois de ele receber a soberania esses pactos seriam nulos (...) Portanto é inútil pretender conferir a soberania através de um pacto anterior (...) Quando se confere a soberania a uma assembleia de homens, ninguém deve imaginar que um tal pacto faça parte da instituição (...) a grande autoridade é indivisível, e é inseparavelmente atribuída ao soberano (...) o poder soberano inteiro (que já mostrei ser indivisível) tem que pertencer a um ou mais homens, ou a todos...” (HOBBES, pp. 83, 143, 144, 145, 146, 147, 150 e 153) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Chevallier, comentando o absolutismo e a indivisibilidade da soberania ou poder soberano tanto em Bodin quanto em Hobbes, leciona:

“Como em Bodin, também em Hobbes o absolutismo da soberania acarreta sua indivisibilidade... Dividir o poder é dissolvê-lo. Os fragmentos do poder reciprocamente se destroem... Verdadeira doença do corpo social. As características dessa soberania absoluta e indivisível são as mesmas que em Bodin...” (CHEVALLIER, 1993, p. 75) (negritos nossos).

Do seu lado, Rousseau, quem colocou o poder soberano ou soberania nas mãos do povo, afirmando as suas características de indivisibilidade e inalienabilidade, chama a soberania também de “força comum”, “poder absoluto”, “autoridade soberana”:

“Do pacto social (...) ‘Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes’. Esse é o problema fundamental cuja solução é fornecida pelo contrato social (...) esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia, o qual recebe, por esse mesmo ato, sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, assim formada pela união de todas as demais, tomava outrora o nome de Cidade, e hoje o de República ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo e Potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, eles recebem coletivamente o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto participantes da autoridade soberana (...) o poder soberano não tem nenhuma necessidade de garantia em face dos súditos (...) Dos limites do poder soberano (...) o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como ficou dito, o nome de soberania (...) Pela mesma razão por que é inalienável, a soberania é indivisível.” (ROUSSEAU, pp. 20, 21, 22, 24, 34, 38, 39) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Para Rousseau, então, da mesma forma que para Bodin e Hobbes, o poder do Estado, o poder soberano ou soberania é indivisível. Quanto ao titular do poder soberano ou soberania, porém, Rousseau opõe-se a Bodin e Hobbes. Para Bodin e Hobbes o titular da soberania é um indivíduo: o monarca, o príncipe. Já para Rousseau, o dono, o titular do poder soberano ou soberania é o povo, a cidadania, os cidadãos como coletividade. Em relação a isso, Chevallier comenta:

“Absoluta, infalível, indivisível, inalienável, - a que se pode acrescentar, como se viu: sagrada e inviolável, - de que prestigiosos atributos não se acha aureolada essa soberania segundo Rousseau! Muito bem se disse: depois de O Espírito das leis, que acentuava outros valores, O Contrato é ‘a desforra da soberania’. Sobre as ruínas do absolutismo monárquico, condenado em espírito, Rousseau quis erigir, lembrando-se de Genebra, uma soberania sem perigo para os governados e, apesar disso, tão augusta, majestosa e exigente quanto a soberania de um só, segundo Bodin, Hobbes e Bossuet. Soberania do povo, isto é, dos cidadãos em conjunto, soberania inteiramente abstrata, em substituição à soberania concreta de um Luís XIV... Soberania que opõe a O Estado sou eu, do monarca absoluto, O Estado somos nós, dos governados em conjunto!” (CHEVALLIER, 1993, p. 174) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Num verdadeiro Estado democrático de direito, porém, a soberania (ou poder soberano ou supremo) popular não é mera força coercitiva, mas é também, principalmente, soberania humana e humanizadora, pois é o poder do povo soberano, seu elemento humano, povo formado por indivíduos-cidadãos com dignidade de pessoas humanas. Em razão disso, a soberania do povo é também soberania justa (socialmente justa, essencialmente), dialógica, cooperativa, pacífica e pacificadora, isto é, soberania ética ou moral, pois ela se autolimita, autorregula e autogoverna pelos princípios éticos ou morais da justiça social.

Para alguns autores, o poder político é o elemento mais importante do Estado. É por isso que tais autores definem o Estado como “poder institucionalizado”.

2.4 Princípios éticos ou morais da justiça social

Construídos pelo povo e ou por seus representantes éticos, justos, honestos, dialógicos, cooperativos, pacíficos e pacificadores, humanos e humanizadores, constituem a ordem deontológica ou principiológica do Estado. É a ordem ético-educativa (não coercitiva) do Estado. O ordenamento deontológico ou principiológico do verdadeiro Estado democrático de direito pode ser definido como o sistema imperativo (mas não coercitivo) de princípios éticos ou morais da justiça social que fundamentam, justificam, ordenam e governam efetivamente o Estado, seu poder político, sua ordem jurídica e seu governo. O verdadeiro Estado democrático de direito é, pois, um Estado democrático da justiça social, pois os princípios que o fundamentam, justificam, ordenam e governam são, essencialmente, princípios éticos ou morais da justiça social.

Em relação aos princípios éticos ou morais da justiça social como elemento constitutivo do Estado e de outras instituições democráticas, Rawls leciona:

A justiça é a primeira virtude das instituições (...) leis e instituições... devem ser reformadas ou abolidas se são injustas (...) Exige-se um conjunto de princípios para escolher entre várias formas de ordenação... Esses princípios são os princípios da justiça social (...) o ideal moral da justiça como equidade está profundamente incorporada nos princípios fundamentais da teoria ética (...) para a efetivação de um Estado constitucional bem ordenado.” (RAWLS, 1997, pp. 3, 4, 5 e 35; e 2002, p. 372) (negritos nossos).

Também para Aristóteles, a principal virtude (bem principal) que constitui o Estado é o princípio ético da justiça: “... a justiça [é] o principal bem do Estado” (ARISTÓTELES, 1998, p. 150). Para o mesmo Aristóteles, outro princípio formador do Estado é o princípio ético da honestidade: “Não existe Estado feliz por si mesmo senão que se constitui sobre as bases da honestidade” (ARISTÓTELES, 1998, p. 61). Para o filósofo, o Estado ou Cidade deve ser, pois, Estado justo, honesto, virtuoso: “... a verdadeira Cidade (a que não o é somente de nome) deve estimar acima de tudo a virtude.” (ARISTÓTELES, 1998, p. 54).

Antes de Aristóteles e Rawls, Platão já pensara que a justiça é o maior dos bens do Estado e que os princípios da justiça fazem parte da organização (do governo) do Estado:

“O Estado surge da necessidade dos homens (...) a justiça é... o maior dos bens (...) não são vãs quimeras o que dissemos sobre a cidade e seu governo, e sim coisas que, embora difíceis, são realizáveis... quando haja na cidade um ou vários governantes que... tenham... na mais alta estima o reto e as honras que dele dimanam, prezando como a maior e mais necessária de todas as coisas o justo... cujos princípios serão exaltados por eles ao organizarem a cidade.” (PLATÃO, 1996, pp. 37, 39 e 173) (negritos nossos)

Se o Estado não estiver constituído nem governado por princípios éticos ou morais da justiça social, ele, então, estará constituído e governado por “princípios” imorais, antiéticos, antissociais, como, por exemplo, a injustiça, a desonestidade, o abuso, a mentira, a indecência, a esperteza, o desamor, o desrespeito, a intolerância, a deslealdade, a arrogância, o individualismo, o egoísmo, “a maldição do dinheiro” (RAWLS, 2001, p. 184), etc.

Os princípios éticos ou morais da justiça social são tão importantes para a formação, existência, funcionamento, desenvolvimento e aperfeiçoamento do Estado que, quando ocorre a ausência, a perda, o abandono, a violação, o desrespeito, o esquecimento e ou o desvio em relação a eles, produzem-se graves doenças, anomalias, disfunções e problemas sociais e institucionais: (1) violência; (2) criminalidade; (3) corrupção; (4) assalto e ou desvio dos recursos públicos, principalmente dos dinheiros públicos; (5) omissão, descaso e ou inércia dos agentes dos órgãos do governo em relação aos direitos sociais e individuais do povo e dos indivíduos e cidadãos e futuros cidadãos: crianças e adolescentes; (6) judicialização da política ou ativismo judicial; (7) formação de castas privilegiadas no setor público; etc.

No caso do Estado democrático de direito, em geral, seus princípios fundamentais são também princípios éticos ou morais da justiça social, ou seja, da justiça ampla, preventiva e jusdialogal, não apenas jurisdicional ou judicial. Entre outros, esses princípios são: (1) amorosidade; (2) justiça; (3) paz; (4) dignidade da pessoa humana; (5) equidade; (6) igualdade; (7) liberdade; (8) fraternidade; (9) solidariedade; (10) honestidade; (11) decência; (12) bondade; (13) lealdade; (14) pluralismo; (15) respeito (16) tolerância; (17) promoção e garantia dos direitos humanos, incluídos os direitos das minorias; (18) cooperação (colaboração); (19) diálogo; (20) participação; (21) educacionalidade, expressando uma educação justa e para a justiça e paz, fundamentalmente, sociais. Para ser um verdadeiro Estado democrático de direito, o Estado deve estar formado, alicerçado, ordenado, fundamentado, justificado e efetivamente governado por, entre outros, esses princípios.

No caso particular do Estado democrático de direito brasileiro, os seus princípios éticos ou morais da justiça social estão registrados no preâmbulo e nos artigos 1º e 4º do Título I da sua Constituição de 1988:

“PREÂMBULO

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade justa, fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

[...]

Título I – DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Art. 1º. A República Federativa do Brasil... constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – pluralismo político.

[...]

Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I – independência nacional;

II - prevalência dos direitos humanos;

III – autodeterminação dos povos;

IV – não-intervenção;

V – igualdade entre os Estados;

VI – defesa da paz;

VII – solução pacífica dos conflitos;

VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X – concessão de asilo político.” (negritado por nós).

Num verdadeiro Estado democrático de direito, porém, mais do que escritos num Texto ou numa Carta ou “Folha de Papel” constitucional, como diria Ferdinand Lassale, os princípios éticos ou morais da justiça social estão e devem estar, essencialmente, “escritos”, gravados: (1) no espírito, mente, coração, ações e interações do Estado e da sociedade; (2) no espírito, mente, coração, ações e interações das funções, órgãos e instituições do governo do Estado; (3) no espírito, mente, coração, ações e interações dos indivíduos e cidadãos que formam a sociedade e o povo; (4) no espírito, mente, coração, ações e interações dos indivíduos e cidadãos que atuam como servidores do Estado; (5) no espírito, mente, coração, ações e interações dos indivíduos e cidadãos que, por delegação do povo, atuam como seus representantes e agentes dos órgãos e instituições do governo do Estado: agentes da educação, da saúde, da segurança pública, da economia, do legislativo, do judiciário, do tribunal constitucional, da chefia do Estado, etc. É nesse momento que ganha importância fundamental e central o princípio da educacionalidade, princípio que exige do Estado o processamento de uma educação justa e para a justiça e paz, essencialmente sociais, para todos e com a participação ampla, dialógica e cooperativa de todos.

Num e para um verdadeiro Estado democrático de direito, a educacionalidade é princípio base, fonte e componente estruturador e fortalecedor da soberania popular, isto é, do poder soberano do povo, e do ético, justo, honesto, dialógico, cooperativo, pacífico e legítimo exercício desse poder pelo povo, com o povo e para o povo. Por esse princípio, o Estado tem o dever de desenvolver, em comunhão, diálogo e cooperação com a sociedade e as famílias, uma educação justa e para a justiça e paz, fundamentalmente, sociais, uma educação interativa, cooperativa, dialógica, e social, constitucional e plenamente (funcional, administrativa, orçamentária, financeiramente, etc.) autônoma e independente, uma educação formadora da cidadania, de indivíduos e cidadãos justos e pacíficos uns com os outros: amorosos, respeitosos e tolerantes uns com os outros, livres, autônomos e independentes, iguais, fraternos, solidários, honestos, íntegros, inteligentes, trabalhadores, empreendedores, dialógicos, cooperativos, democráticos, participativos.

No caso do Estado democrático de direito brasileiro, o princípio da educacionalidade está registrado como dever do Estado e da família no art. 205 da sua Constituição:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” (negritos nossos).

Observemos: o pleno desenvolvimento das pessoas (com a participação do Estado, da sociedade e das famílias) implica também o desenvolvimento ético ou moral delas.

Por esse princípio, então, o Estado, a sociedade e as famílias têm o dever de, reciprocamente, educar-se e de educar os indivíduos e cidadãos e futuros cidadãos, desde crianças, desde uterinos, desde o início das suas vidas, em todas as esferas da vida e por toda a vida, entre outras coisas, (1) nos princípios éticos ou morais da justiça social e para os princípios éticos ou morais da justiça social, (2) na justiça e paz e para a justiça e paz, fundamentalmente, sociais, (3) para o bom, ético, honesto, inteligente, eficaz, eficiente, dialógico, cooperativo, justo e pacífico governo do Estado democrático de direito.

Quando o princípio da educacionalidade se realiza, (1) os indivíduos-cidadãos que formam o povo, (2) o povo, a sociedade e o Estado, e (3) os agentes dos órgãos e instituições do governo do Estado obedecem, respeitam, observam, espontaneamente, naturalmente, de livre vontade, amorosamente, ou seja, sem a necessidade do uso da força: (a) os princípios éticos ou morais da justiça social; e (b) a ordem jurídica constitucional (e infraconstitucional) e os valores ou bens que a essa ordem jurídica defende e deve defender. Como resultado, os problemas sociais e institucionais da corrupção, da violência, da criminalidade, do assalto e ou desvio dos recursos públicos, etc., são, se não erradicados, reduzidos a níveis que não constituem reais problemas sociais nem institucionais, ficando apenas como fatos isolados e facilmente controlados e solucionados.

Num verdadeiro Estado democrático de direito, os seus princípios éticos ou morais da justiça social valem, pois, como seus princípios formadores, organizadores, reguladores, ordenadores, fundamentadores, justificadores e governadores independentemente de estarem ou não escritos numa “Folha de Papel” constitucional. Quando, porém, positivados e escritos num Texto jurídico-constitucional ou numa “Folha de Papel” constitucional, sem perder a sua autonomia, independência e dignidade ética ou moral, serão parte essencial, fundamental e central da ordem jurídica constitucional socialmente justa do Estado.

2.5 Ordem jurídica constitucional socialmente justa

Também construída pelo povo e ou por seus representantes éticos, justos, honestos, dialógicos, cooperativos, pacíficos e pacificadores, humanos e humanizadores com base nos princípios éticos ou morais da justiça social e da legitimidade, é a ordem normativa constitucional positiva (coercitiva) do Estado. É a ordem do direito constitucional socialmente justo do Estado. Podemos, então, conceituar a ordem jurídica constitucional de um verdadeiro Estado democrático de direito como o sistema de normas públicas humanas e humanizadoras, justas (socialmente justas) e legítimas construídas com base nos princípios éticos ou morais da justiça social que o Estado deve observar, respeitar e obedecer e deve fazer que seja observado, respeitado e obedecido, com o uso da força, se necessário for.

Por estar também formada pelos princípios éticos ou morais da justiça social e, por isso, ser também uma ordem ético-educativa, dialógica, humana e humanizadora e socialmente justa, a ordem jurídica constitucional do verdadeiro Estado democrático de direito não apenas normatiza coercitiva e punitivamente a conduta dos indivíduos e cidadãos, mas, principalmente, proporciona e deve proporcionar a todos eles, entre outras coisas, desde crianças, desde uterinos, desde a sua gênese como seres humanos: (1) a plena satisfação dos seus direitos sociais (educação, saúde, cultura, trabalho, segurança pública, previdência social, assistência social, etc.) e individuais, aí incluída uma educação justa e para a justiça e paz, essencialmente sociais, uma educação que, entre outras coisas importantes, forma esses indivíduos e cidadãos nos valores ou bens da vida e para os valores ou bens da vida que a mesma ordem jurídica constitucional defende e deve defender, prevenindo, evitando, com isso, que eles se tornem objetos de punição. Isso porque, como se sabe, em verdade, justiça não é punir, mas prevenir, evitar, que os seres humanos se transformem em objetos de punição, e se eventualmente forem penalizados, deverão ser penalizados respeitando-se a sua condição de indivíduos com dignidade de pessoas humanas, e sempre possibilitando a sua ressocialização e reabilitação; (2) condições e bases justas e legítimas que possibilitem que eles dialoguem, cooperem e participem da construção de uma sociedade justa e pacífica, e que lhes possibilitem conquistar seu bem e sua felicidade; (3) condições justas e legítimas para que eles possam participar, de forma democrática, dialógica e cooperativa, da construção e reconstrução da ordem jurídica constitucional (e infraconstitucional) e da sua interpretação e aplicação; (4) as condições necessárias, justas e legítimas para que possam solucionar por si mesmos (por compreenderem que é muito mais digno, justo, decente, humano e reciprocamente vantajoso que seja assim) e ou por meio de juízes e tribunais éticos, justos, equitativos, educados, honestos, decentes, dialógicos, pacíficos e pacificadores, humanos e humanizadores e verdadeiramente populares e cidadãos os conflitos que eventualmente possam surgir entre eles, sem a intervenção da indigna, desonesta, indecente, injusta, desumana e vergonhosa “justiça alheia” de juízes e tribunais dworkinianos, isto é, sem a intervenção de juízos formados por juízes-deuses, juízes-nobres, juízes-filósofos, juízes-hércules, juízes-sobre-humanos, juízes-soberanos ou juízes-príncipes com carreira no Olimpo (Cf. DWORKIN, 2010, p. 165; e 2007, pp. 476 e 486).

A propósito do caráter intrinsecamente indigno e vergonhoso da “justiça alheia” dos juízes e tribunais “sonolentos”, Platão já ensinava:

“[...] necessidade de ensinar que a justiça é em si mesmo o maior dos bens e a injustiça o maior dos males (...) é necessário que a educação comece desde a infância, que seja feita com grande cuidado e se prolongue durante a vida inteira (...) E não te parece uma vergonha e um grande indício de uma educação deficiente o ter um homem de recorrer à justiça alheia por não a possuir em si mesmo, entregando-se assim às mãos de outros homens, de quem faz seus senhores e juízes... [e] passa a melhor parte da sua vida demandando e sendo demandado ante os tribunais... e faz alarde de sua habilidade em burlar a lei... e tudo isso com o fito em obter vantagens insignificantes, sem compreender quanto melhor e mais decoroso seria dispor sua vida de modo a poder dispensar a intervenção de um sonolento juiz...” (PLATÃO, 1996, p. 37, 68, 69 e 70) (negritos nossos).

Se a ordem jurídica constitucional não for realmente ético-educativa, dialógica, socialmente justa, pacífica e pacificadora, humana e humanizadora, ela, então, não será uma ordem verdadeiramente jurídica constitucional, mas apenas um conjunto de regras coercitivas desumanas, antiéticas, imorais, antijurídicas, regras de caráter individualista e privado, regras elaboradas para promover e proteger determinados privilégios e interesses de indivíduos e grupos privados que atuam dentro e fora do Estado, isto é, regras próprias de um Estado desumano, injusto, legalista, juizista, violento, vingativo, desonesto, indecente, antiético, imoral, populista, antidemocrático, ditatorial e ou corrupto e corruptor, ou, apenas, como diz Rawls, “uma coleção de ordens particulares destinadas a promover os interesses de um ditador ou o ideal de um déspota benevolente” (RAWLS, 1997, p. 258).

Existem autores que consideram que a ordem jurídica é a dimensão que melhor expressa o que seja o Estado. Por isso, conceituam o Estado como sendo a própria ordem jurídica. Dallari, por exemplo, conceitua o Estado como sendo a “ordem jurídica soberana...” (DALLARI, 2012, p.122). Outro exemplo é Mazzuoli, autor que conceitua o Estado como “ente jurídico dotado de personalidade internacional...” (MAZZUOLI, 2015, pp. 483).

2.6 Finalidade

É a dimensão teleológica do Estado. Consiste nos fins ou objetivos do Estado. Os fins do Estado e os princípios do Estado estão estreitamente ligados. Notemos essa ligação em Aristóteles:

“Da finalidade do Estado (...) Mas não é apenas para viver juntos, mas para bem viver juntos que se fez o Estado (...) O fim da sociedade civil é, portanto, bem viver juntos; todas as suas instituições não são senão meios para isso (...) não há nenhuma dúvida de que a verdadeira Cidade (a que não o é somente de nome) deve estimar acima de tudo a virtude... capaz de tornar [seus membros em] bons e honestos cidadãos (...) Dos mesmos princípios depende a felicidade do Estado. É impossível que um Estado seja feliz se dele a honestidade seja banida (...) Não podemos deixar de lembrar estes princípios...” (ARISTÓTELES, 1998, pp. 53, 54, 56 e 58) (negritos nossos).

Assim, por essa ligação: (1) o fim de formar cidadãos e Estados honestos liga-se ao princípio da honestidade; (2) o fim de realizar a justiça social e um Estado socialmente justo vincula-se ao princípio da justiça (sentido amplo); (3) o fim de assegurar uma vida digna a todos se comunica com o princípio da dignidade da pessoa humana; (4) o fim de construir sociedades e Estados solidários se relaciona com o princípio da solidariedade; etc.

Entre os autores, não existe consenso sobre quais são os fins ou objetivos do Estado. Para Platão, por exemplo, a finalidade do Estado é educar os indivíduos e cidadãos e proporcionar os maiores benefícios ao povo:

“O Estado surge das necessidades dos homens (...) para educá-los de acordo com seus próprios costumes e leis... para que o Estado alcance no mais breve espaço de tempo a felicidade e possa conferir os maiores benefícios ao povo...” (PLATÃO, 1996, pp. 39 e 173) (os negritos são nossos)

Para Aristóteles, o fim do Estado é bem viver juntos:

“Da finalidade do Estado (...) Mas não é apenas para viver juntos, mas para bem viver juntos que se fez o Estado (...) O fim da sociedade civil é, portanto, bem viver juntos; todas as suas instituições não são senão meios para isso...” (ARISTÓTELES, 1998, pp. 53 e 56) (as cursivas são do autor).

Para Hobbes, os principais fins ou objetivos do Estado e do soberano são preservar a paz e a justiça e proporcionar ao povo todas as comodidades da vida (educação, saúde, trabalho, previdência social, segurança pública, assistência social, etc.):

“[...] preservação da paz e da justiça, que é o fim em vista do qual todos os Estados são instituídos (...) O cargo do soberano... consiste no objetivo para o qual lhe é confiado o soberano poder, nomeadamente a obtenção da segurança do povo... Mas por segurança não entendemos aqui uma simples preservação, mas também todas as outras comodidades da vida.” (HOBBES, 220, pp. 150 e 251) (negritos nossos).

Já para Rawls, o fim do Estado, mais precisamente do seu governo, é o bem comum:

“Presume-se que o governo vise ao bem comum, isto é, à manutenção das condições e a consecução dos objetivos que são similarmente vantajosos para todos.” (RAWLS, 1997, p. 255).

No caso do Brasil, os fins ou objetivos do seu Estado democrático de direito como um todo estão registrados no artigo 3º da Constituição Federal de 1988:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (negritos nossos).

Vemos, então, que um dos fins ou objetivos do Estado democrático de direito brasileiro como um todo é construir a justiça social (“sociedade justa”). Outros objetivos desse Estado são promover o bem comum (bem de todos) e construir uma sociedade livre e solidária. Notemos que o objetivo de construir a justiça social é também um objetivo da ordem social desse mesmo Estado, conforme registrado no art. 193 da sua Constituição:

“Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.” (negritos nossos).

Assim, para o Estado democrático de direito brasileiro, a justiça social é um fim a ser realizado tanto pelo Estado como um todo quanto pela sua ordem social. Observe-se nesse mesmo artigo 193 que outro objetivo ou fim da ordem social do Estado democrático brasileiro é o bem-estar social (bem-estar de todos).

Outro fim desse Estado brasileiro, mais especificamente, da sua ordem econômica, é assegurar a todos os brasileiros uma existência digna, conforme os ditames (do princípio) da justiça social. Esse objetivo está inscrito no art. 170, caput, da Constituição:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social...” (negritos nossos).

Reparemos que, para o Estado democrático de direito brasileiro, a justiça social é tanto um princípio (“ditames da justiça social”) quanto um fim ou objetivo (“a ordem social tem... como objetivo... a justiça social”; “construir uma sociedade justa”).

2.7 Recursos

Consistem no sistema de meios que possibilitam a consecução dos fins ou objetivos do Estado como um todo (justiça social; paz social; bem comum; etc.) e de suas esferas particulares: educação, saúde, previdência social, segurança pública, economia, legislativo, judiciário, etc. O próprio Estado pode ser visto como um recurso (meio) que as sociedades, nações e povos construíram para realizar seus fins ou objetivos de justiça e paz nas sociedades, na humanidade. Para que o Estado seja efetivo, eficaz e eficiente no cumprimento dos seus fins ou objetivos, os seus recursos devem ser bem geridos, administrados: bem planejados, bem organizados, bem direcionados, bem controlados, bem conservados, bem utilizados, bem aplicados, bem protegidos. Os recursos do Estado podem ser classificados nas seguintes classes: (1) recursos humanos; (2) recursos educativos; (3) recursos financeiros; (4) recursos materiais ou físicos; (5) recursos de comunicação e informação; (6) recursos científico-tecnológicos; (7) recursos institucionais; etc. De todos esses recursos, destacam-se dois: (a) os recursos humanos, incluindo os agentes dos órgãos do governo do Estado: agentes da educação, agentes da saúde, agentes da economia, agentes do judiciário (juízes), agentes do legislativo (legisladores), etc.; e (b) os recursos educativos, em que se destacam os professores ou profissionais da educação, que também são recursos humanos do Estado.

Os recursos humanos são os seres humanos (seres com dignidade de pessoas humanas) que, na dimensão recursal do Estado, atuam como meios, mas sem perder a qualidade de serem fins do mesmo Estado. São os recursos humanos que inventam, captam, conservam, protegem, desenvolvem, utilizam, aplicam, isto é, administram os recursos do Estado e o próprio Estado como recurso. Sem recursos humanos, todos os outros recursos (inclusive o Estado) são inoperantes.

Os recursos humanos do Estado devem ser bem formados, bem valorizados, bem considerados, bem tratados, bem treinados, bem capacitados, bem desenvolvidos, permanentemente qualificados e aperfeiçoados. É nesse momento que ganham importância fundamental os recursos educativos: escolas, universidades, professores, que também devem ser bem formados, bem valorizados, bem considerados, bem tratados, bem treinados, bem capacitados, bem desenvolvidos, permanentemente qualificados e aperfeiçoados. Os professores de todos os níveis, desde a educação infantil até a educação superior, são, pois, recursos humanos que formam e desenvolvem os outros recursos humanos. Por essa razão, podemos afirmar que os recursos do Estado formam um sistema de recursos que tem como recurso central o recurso da educação.

No caso do Estado democrático de direito brasileiro, a educação como recurso, bem como direito de todos e dever do Estado, como já foi visto, está registrado no art. 205 da sua Constituição:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

Dito de outro modo: a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, bem como o recurso (o meio) para conseguir o pleno desenvolvimento das pessoas (dos indivíduos-cidadãos que formam o povo soberano), seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Por isso, isto é, por ser o recurso que desenvolve plenamente os indivíduos e cidadãos que compõem o povo soberano e a sociedade, podemos afirmar que a educação, sem perder a sua qualidade de ser um princípio, um fim, uma função e um dever do Estado, e um direito do povo e de todos os indivíduos e cidadãos e futuros cidadãos, é o maior e melhor recurso do Estado. É o recurso dos recursos do Estado.

Nesse momento recursal do Estado impera e deve imperar o princípio da justiça e da dignidade salariais ou remuneracionais dos recursos humanos e dos professores (recursos humanos desenvolvedores dos outros recursos humanos). Isso porque, embora nesse momento atuem como recursos (meios), os seres humanos não perdem sua condição de serem pessoas dignas (indivíduos-cidadãos com dignidade de pessoas humanas) e fins do Estado, e, como tais, devem ter salários dignos. Num verdadeiro Estado democrático de direito, o princípio da justiça e dignidade salariais afasta e deve afastar as remunerações indignas, as remunerações privilegiadas, a autolegislação salarial, o acúmulo de vantagens, as castas salariais, etc.

2.8 Autogoverno: governo autônomo e independente

É o componente gestor e empreendedor do Estado. É também chamado de exercício do poder ou exercício da soberania do Estado. Aristóteles já definia o governo como sendo o exercício do poder supremo (soberano) do Estado: “O governo é o exercício do poder supremo do Estado” (ARISTÓTELES, 1998, p. 105).

O governo é a atividade denominada de administração ou gestão do Estado. É o processo de planejamento, de organização, de liderança, de coordenação, de direção, de execução e de controle do Estado como um todo (esfera global de governo) e das suas esferas particulares de governo: educação, saúde, segurança pública, previdência social, economia, legislativo, judiciário, tribunal constitucional, etc. Implica o processo de tomada de decisões em todas as esferas de governo: na esfera global e nas esferas particulares de governo.

O governo do Estado é, na verdade, autogoverno, isto é, governo autônomo e independente. Isso significa que o Estado possui a capacidade de governar-se sem a intervenção ou intromissão de outros Estados e entidades externas ou internacionais. Significa que nos seus negócios e assuntos internos e externos é ele que toma suas próprias decisões sem a ingerência ou intervenção de outros Estados ou entidades externas ou internacionais, com os quais, no entanto, mantém e deve manter relações de interação, diálogo e cooperação.

É o governo do Estado que estabelece, através da sua dimensão de planejamento (que inclui a previsão), entre outras coisas: (1) os princípios e os fins ou objetivos do Estado; (2) a mobilização dos recursos do Estado para atingir esses fins ou objetivos. Em razão disso, o planejamento é o momento central do sistema governamental do Estado. Todas as ações e interações do Estado devem ser ações e interações planejadas, planejadas pelo povo e ou junto ao povo, à sociedade e às famílias, com ampla participação do povo, da sociedade e das famílias, em comunhão e diálogo com o povo, a sociedade e as famílias.

Em virtude da sua dimensão de governo, o Estado é, analogicamente, desde Platão, considerado um “navio”, um navio que deve ser administrado, governado, dirigido:

“O Estado surge da necessidade dos homens (...) Há indivíduos talhados para cultivar a Filosofia e dirigir a cidade (...) as cidades não se livrarão dos seus males enquanto não forem governados pelos filósofos (...) sobre o governo do navio [do Estado]... o bom piloto [o filósofo]... estando verdadeiramente qualificado, é ele que tem que dirigi-lo, queiram os outros ou não...” (PLATÃO, 1996, pp. 39, 122 e 134).

Carlos Cirne-Lima comenta:

“Os Filósofos Gregos se deram conta muito cedo, na História da nossa cultura, de que é importantíssimo definir com clareza qual é a forma de governo que faz florescer a Justiça e a Cidadania... Platão passou a vida inteira preocupado com isso (...) O Estado, diz ele, deve ser dirigido por quem entende do assunto, ou seja, por quem sabe governar. Quem sabe governar?... O Filósofo, reponde Platão. É por isso que o Estado deve ser governado pelos Filósofos (...) Isso tudo é Platão. Só que ele não falava de avião, é claro, e sim de navio. Um navio perdido numa tempestade e sem piloto...” (CIRNE-LIMA, 1997, pp. 196 e 197) (negritos nossos).

Walzer retoma essa analogia do governo do Estado-navio, mas faz observações críticas a Platão:

“[...] a autonomia das esferas produzirá uma maior repartição de bens sociais... Espalhará mais amplamente o prazer de governar (...) Vejamos o caso do piloto ou do timoneiro ao leme de um navio, dirigindo a sua rota (...) O que os marinheiros não percebem é ‘que um navegador autêntico só pode tornar-se apto a comandar um navio depois de estudar as estações do ano, o céu, as estrelas e os ventos e tudo quanto faz parte do seu ofício’. Passa-se o mesmo com a nave do Estado (...) Na verdade, porém, quanto mais profundamente analisamos o significado do poder, mais nos sentimos inclinados a rejeitar a analogia de Platão. É que só nos confiamos ao timoneiro depois de termos decidido para onde queremos ir e essa decisão, mais do que o estabelecimento de determinada rota, é a que melhor ilumina o exercício do poder (...) É claro que para tarefas especiais é necessário descobrir pessoas especiais... Mas todas aquelas pessoas são agentes e não dirigentes dos cidadãos.” (WALZER, 1999, pp. 273 e 274) (negritos nossos).

John Rawls, também utiliza a analogia de Platão ao falar do governo, ou melhor, do autogoverno do Estado-navio:

“Presume-se que o governo vise ao bem comum (...) Ora, o Estado é de certo modo semelhante ao navio em alto-mar (...) Naturalmente, os fundamentos do autogoverno não são apenas de ordem prática (...) Além disso, o efeito do autogoverno, quando os direitos políticos iguais têm seu valor equitativo, é o de aumentar a auto-estima e o senso de capacidade política do cidadão...” (RAWLS, 1997, pp. 255 e 256) (negritos nossos).

Para o bom, inteligente, honesto e justo autogoverno do Estado democrático de direito, a educação justa e para justiça e paz, na sua expressão de educação governamental, é também fundamental. O mesmo Rawls, defensor de uma democracia participativa justa, que ele chama de democracia deliberativa, afirma a importância central da educação governamental ampla e democrática para o povo e para todos os indivíduos e cidadãos:

“A democracia deliberativa [participativa] também reconhece que, sem instrução [educação] ampla sobre os aspectos básicos do governo democrático para todos os cidadãos, e sem um público informado a respeito de problemas prementes, decisões políticas e sociais cruciais simplesmente não podem ser tomadas.” (RAWLS, 2004, p. 184) (destaque e negritos nossos).

Assim, o verdadeiro Estado democrático de direito é, pois, também, um Estado governamentalmente educador. É Estado que também se educa e educa o povo e os indivíduos e cidadãos que compõem o povo para o bom, ético, honesto, inteligente, dialógico, justo e pacífico autogoverno do Estado democrático de direito, Estado que é deles e para eles.

Contrariamente ao poder do Estado, o governo do Estado é divisível ou separável. É divisível ou separável em funções. É nesse momento governamental, mais precisamente, na dimensão organizacional do governo, que vige o princípio da separação de funções2. O princípio da separação de funções (também chamado de princípio da divisão do trabalho) exige que o governo do Estado, para cumprir com seus fins ou objetivos de forma efetiva, eficaz e eficiente (princípios da efetividade, eficácia e eficiência), seja dividido ou separado em funções relativamente autônomas e independentes para serem delegadas (distribuídas, atribuídas) a determinados órgãos de governo, também separados e relativamente autônomos e independentes entre si, e também harmônicos, interativos, dialógicos, cooperativos (colaborativos) entre si e com o povo, com as famílias e com a sociedade: órgão constituinte (originário e reformador), órgão da educação, órgão da saúde, órgão da segurança pública, órgão da previdência social, órgão da assistência social, órgão da economia, órgão do legislativo, órgão do judiciário, órgão do controle constitucional, órgão da coordenação geral, órgão da chefia do Estado, etc. De todas essas funções (e respectivos órgãos), a educação, por sua natureza ética, justa, dialógica, humana e humanizadora, é a função mais importante, pois ela, entre outras coisas, é também mediadora natural do desempenho ético, justo, íntegro, inteligente, dialógico, cooperativo, eficaz e eficiente de todas as outras funções e órgãos do governo, e do governo como um todo. Tendo, todos eles, autonomia e independência funcionais, administrativas, orçamentárias, financeiras, etc., nenhum desses órgãos cumpre nem deve cumprir decisões de outros órgãos. Cada órgão, agindo de acordo com os princípios éticos ou morais da justiça social e a ordem jurídica constitucional socialmente justa, nas suas respectivas esferas de governo, toma suas próprias decisões, mas sempre conservando uma relação de harmonia, diálogo e cooperação (colaboração) com os outros órgãos e com o povo, com as famílias e com a sociedade. Por tratar-se de um Estado democrático de direito, porém, o titular das decisões de última instância em todos os negócios ou assuntos do Estado é o povo, a cidadania, os indivíduos-cidadãos como coletividade. Rawls ressalta isso:

“Numa sociedade democrática... o tribunal de última instância não é o judiciário, nem o executivo, nem o legislativo, mas sim a cidadania, o eleitorado como um todo.” (RAWLS, pp. 432 e 433).

Não devemos confundir, pois, governo do Estado com “governo” do chamado “poder” executivo. Primeiro, porque, em verdade, o “poder” executivo não é poder, mas, quando muito, seria apenas uma função ou órgão de governo. Dizemos “seria”, porque, rigorosamente, o “executivo” nem sequer é função específica ou especial de governo, pois a “execução” ou “função executiva” é função comum a todos os órgãos de governo: todos os órgãos de governo executam funções de governo. De igual forma, os denominados “poder” legislativo e “poder” judiciário tampouco são poderes do Estado, mas são também apenas funções ou órgãos de governo. Isso porque, como foi visto, o poder do Estado é um, só um, uno, indivisível e indelegável, e pertence ao povo, unicamente ao povo. O que se divide ou separa é o exercício do poder ou governo do Estado e não o poder do Estado, e se divide ou separa em funções para serem delegadas a órgãos de governo. Sendo órgãos de governo, e não poderes do Estado, então, o judiciário e o legislativo executam suas respectivas funções judiciárias e legislativas. A propósito, Aristóteles já ensinava que o judiciário é órgão do governo: “A ordem judiciária é... órgão... do governo” (ARISTÓTELES, 1998, p. 141).

Tampouco devemos confundir o governo do Estado com o “governo” de determinadas pessoas, mesmo que eleitas por vontade popular, como, por exemplo, no caso do Brasil, “o governo FHC”, “o governo Lula”, “o governo Dilma”, etc. Esses “governos” não são o governo do Estado, nem essas pessoas são governantes do Estado. Essas pessoas são apenas representantes do povo e, por delegação do mesmo povo, agentes dos órgãos do governo, e não governantes ou dirigentes do Estado, nem do povo, nem dos indivíduos-cidadãos que formam o povo. A propósito, Walzer leciona:

“Na verdade, porém, quanto mais profundamente analisamos o significado do poder, mais nos sentimos inclinados a rejeitar a analogia de Platão. É que só nos confiamos ao timoneiro depois de termos decidido para onde queremos ir e essa decisão... é a que melhor ilumina o exercício do poder (...) É claro que para tarefas especiais é necessário descobrir pessoas especiais... Mas todas aquelas pessoas são agentes e não dirigentes dos cidadãos.” (WALZER, 1999, pp. 273 e 274) (negritado por nós).

Num verdadeiro Estado democrático de direito, então, o verdadeiro governante ou dirigente do Estado é o povo, pois ele, unicamente ele, além de ser o titular do poder soberano, é o titular do exercício do poder ou governo do Estado. É o princípio do governo popular proclamado por Abraham Lincoln: o governo democrático (a democracia) é o governo do povo, pelo povo e para o povo.

Assim, podemos dizer, então, no caminho de Lincoln, Rawls e Walzer, que no governo de um verdadeiro Estado democrático de direito, isto é, do Estado democrático da justiça social, da justiça ampla, preventiva e jusdialogal, e não apenas jurisdicional ou judicial, o verdadeiro governante, dirigente, gestor, empreendedor, administrador, líder, chefe, presidente, parlamento, legislador e tribunal de última instância não é o “presidente”, nem o “parlamento”, nem o “supremo tribunal”, nem o “tribunal constitucional”, mas o povo (os indivíduos-cidadãos como coletividade), e quando o povo o delega a seus representantes éticos, justos, honestos, cooperativos, dialógicos, pacíficos e pacificadores, humanos e humanizadores, esse governo é e deve ser processado junto ao povo, com a participação ampla do povo, em comunhão, interação e diálogo com o povo, sempre em benefício do povo.

Todos esses componentes do Estado, como já dissemos, nunca se apresentam isoladamente. Eles, estando em comunicação interna, interagindo, interpenetrando-se, complementando-se, dialogando e cooperando entre si, em sinergia, formam um sistema: o sistema ético-jurídico-político democrático do Estado.

Com base nas ideias expostas, podemos, então, sem pretender exatidão, nem precisão, nem perfeição quanto a isso, propor o seguinte conceito do Estado: o Estado é o sistema ético-jurídico-político democrático aberto ao mundo e à vida, à família, à sociedade, à humanidade, com os quais interage, dialoga e coopera, que, dotado de poder soberano, princípios éticos ou morais da justiça social, ordem jurídica constitucional socialmente justa, recursos e autogoverno nos limites de um determinado território, tem, entre outros, como fins interligados e complementares, com a participação ampla da sociedade e das famílias: (1) realizar a justiça e a paz sociais, uma sociedade, uma vida e um mundo justos e pacíficos; (2) realizar a satisfação plena de todos os direitos sociais e individuais de todos os indivíduos e cidadãos, com prioridade máxima, total, absoluta de todas as crianças e adolescentes; (3) realizar o bem comum, traduzido como a criação das condições justas e legítimas que possibilitem a todos a conquista do seu bem e sua felicidade; (4) educar o povo e todos os indivíduos e cidadãos que o compõem, desde crianças, desde uterinos, desde o início das suas vidas, em todas as esferas da vida e por toda a vida, na justiça e paz e para a justiça e paz, fundamentalmente sociais, e para o bom, ético, inteligente, honesto, dialógico, cooperativo, justo e pacífico governo do Estado democrático de direito, Estado que é deles e para eles.

Sobre o autor
Misael Alberto Cossio Orihuela

Advogado concursado do Município de Canoas, RS, Brasil; Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica-PUCRS, Brasil; Licenciado em Letras pela UNILASSALE, Canoas, RS, Brasil; Licenciado em Ciencias Administrativas pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Lima-Perú; Mestre em filosofia, área ética e política, pela Pontifícia Universidade Católica-PUCRS, Brasil, com a dissertação: A justiça como equidade de John Rawls: um jusnaturalismo de gênese na educação para a autonomia jurídico-política da cidadania. Nessa dissertação já se defende a ideia da autonomia e independência da educação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ORIHUELA, Misael Alberto Cossio. Elementos constitutivos do Estado.: Uma proposta de conceito de Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4517, 13 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44467. Acesso em: 22 nov. 2024.

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