Inconscientemente a vida nas cidades nos torna seres impassíveis, indiferentes ao que se passa fora dessas verdadeiras fortalezas de aço, concreto e vidro. O habitante das grandes cidades muitas vezes acredita ser aquele cosmonauta hóspede daquela sofisticada estação espacial dos filmes de ficção científica hollywoodianos.
Para o cidadão urbano, a existência de vida fora dos limites de sua cidade ecoa como algo incompreensível. Afinal, quem conseguiria imaginar um ser vivo sem wi-fi, internet, celular e tv paga? Sem oxigênio até que seria possível supor a existência de uma vida orgânica qualquer, mas no dias de hoje é humanamente inconcebível a probabilidade de alguém ou alguma coisa sobreviver sem acessar seu perfil na rede social ou dar uma espiadinha no seu whatsapp – escrevo com letras minúsculas, sem itálico no estrangeirismo, pois acredito que a expressão já deva ter virado substantivo até o encerramento deste texto –.
Pois bem, tenho uma grande novidade a revelar para muitos, talvez uma notícia inédita para os mais jovens, notadamente para aqueles da geração “y”, também chamada geração do milênio ou geração da internet: existe, sim, vida fora das cidades. Há seres sencientes por toda a parte fora das cidades, inclusive seres humanos, todos também dotados de sensibilidade e almejando buscar e obter a felicidade.
Ora, aonde você imaginava que ficavam instalados os abatedouros, as usinas nucleares, as mineradoras e siderúrgicas, as fábricas de fundição de chumbo, a produção de curtume e substâncias químicas, as refinarias e os grandes lixões? Lamento revelar que nenhum dos bens e produtos que você consome é produzido na casa daquele seu vizinho excêntrico ou em alguma galeria florida de seu bairro.
Pois é. Tudo que eu e você consumimos, sem exceção, importa na perda ou destruição daquilo que se encontra ao nosso redor, muitas vezes fora de nossas grandes cidades, nas zonas rurais, nos distritos e vilarejos mais distantes de nossos doces e sofisticados lares. Desde o momento que acordamos até o adormecer estamos a todo instante mortificando nossa fauna e flora, nossos recursos minerais, tudo aquilo que a Terra levou cerca de cinco bilhões de anos para criar.
Sabe porque o rompimento das barragens de Mariana, em Minas Gerais, causou tanto furor e destaque? Porque essa tragédia não se limitou a aquela gente do interior pobre e sofrida do subdistrito de Bento Rodrigues. Porque essa catástrofe não atingiu somente aquelas pessoas e aqueles animais que todo o dia fingimos não existir ou nem sequer queremos notícias.
Todos nós fomos e somos diretamente atingidos pela desgraça que começou no esquecido subdistrito de Bento Rodrigues. O rio Doce, o mais importante da bacia hidrográfica da Região Sudeste, em seus quase novecentos quilômetros de extensão, foi duramente atingido pela tsunami de lama de rejeitos de minério. Duzentas e vinte e oito grandes cidades, entre mineiras e capixabas, foram abaladas por essa contaminação. Algumas delas estão até hoje com a captação, abastecimento e fornecimento de água interrompidos.
Quanta ironia. Aquele morador das grandes cidades com wi-fi, internet, celular e tv paga, mas sem água, sem água sequer para beber. Isso sim nos incomoda. Agora, que venham as duras sanções e reprimendas da lei em vigor. Que sejam exemplarmente punidos os envolvidos, doa a quem doer, que cortemos na carne esse câncer que impediu que a água gelada chegasse aos nossos filtros e purificadores de carvão ativado e aos frigobares de nossas varandas. E como fica o gelo do uísque do nosso sagrado happy hour de cada dia? Neste último caso o dano moral é in re ipsa.
Em verdade, ufanados pelo capitalismo cruel e pelo american way of life, todos os dias destruímos uma Bento Rodrigues, sem nenhuma comiseração. Mas enquanto nossa aparentemente inexpugnável estação espacial não é atingida está tudo bem, dentro dos limites do aceitável e do tolerável. O homem do interior e sua família, esses intrometidos seres sem wi-fi, que se lixem, juntamente com seus animais, que prestem toda a reverência ao homem-deus das cidades.
Diz um velho ditado holandês, “Deus perdoa, a natureza não”.