1. INTRODUÇÃO
Desde os tempos primitivos, a corrupção é tema pujante em qualquer segmento cujo ser humano é detentor de poder. É notório que a espécie humana tende a se corromper instintivamente. É por isso que tem sido criados métodos de fiscalização cada vez mais intensos no sentido de coibir tal prática. Todavia, existem atos cuja fiscalização é impraticável, justamente por se darem sem testemunhas. Explica bem essa questão a música que o grupo Capital Inicial gravou em 2002 chamada “Quatro Vezes Você” cujo refrão diz: “o que você faz quando, ninguém te vê fazendo, ou o que você queria fazer se ninguém pudesse te ver?”.
Esses tipos de atos são os chamados atos sem testemunhas. Eles precisam ser guiados exclusivamente pela própria consciência do indivíduo, justamente pelo fato de que ninguém mais provavelmente tem ou terá conhecimento daquilo, a não ser ele próprio. É daí que se exige uma moral elevada do homem para que pratique atos de justiça apenas porque são justos e não por influências externas.
No presente artigo pretende-se, desse modo, abordar a consciência humana como limitadora desses citados atos. Para tanto, utilizar-se-á: as lições de Olavo de Carvalho, baseadas numa concepção cristã de Julgamento final dos pecados; a ideia de homem de consciência hipertrofiada, trazida por Fiódor Dostoiévski no livro Memórias do Subsolo; os ensinamentos de Erasmo de Rotterdam sobre o papel da loucura (falta de consciência) na humanidade, em Elogio da Loucura; e o conceito de excelência moral de Aristóteles, em Ética a Nicômacos, que dá ao homem a possibilidade de desenvolver a moral através do hábito.
2. OS ATOS SEM TESTEMUNHAS
Em artigo publicado em 22 de julho de 2000 no jornal O Globo, o filósofo Olavo de Carvalho fez uma bela análise da consciência humana quando tratou dos atos sem testemunhas (título do artigo).
O autor destacou a história de Albert Schweitzer, artista, médico, filósofo, cristão devoto, que, por volta de três anos de idade, enquanto brincava no jardim, teve seu dedo picado por uma abelha. Chorando, foi socorrido pelos pais e por alguns vizinhos. Repentinamente, o menino notou que a dor já havia passado fazia vários minutos e que ainda chorava apenas com o intuito de obter a atenção dos expectadores. Depois de muito tempo, já com mais de setenta anos de idade, contou, o então consagrado Doutor Albert Schweitzer, que ainda sentia vergonha de sua primeira trapaça. Confessou que esse sentimento atravessou os anos, no fundo de sua memória, “dando-lhe repuxões na consciência a cada nova tentação de autoengano.” [1]
O mais interessante dessa história foi que ninguém tinha percebido nada durante o falso choro do menino. Apenas ele soube da sua vergonha, “só ele teve de prestar contas de seu ato ante sua consciência e seu Deus.” [2]
Relata o autor, desse modo, estar persuadido de que as vivências desse tipo – os atos sem testemunhas, como ele mesmo denomina – “são a única base possível sobre a qual um homem pode desenvolver uma consciência moral autêntica, rigorosa e autônoma.” [3] E mais:
Só aquele que, na solidão, sabe ser rigoroso e justo consigo mesmo – e contra si mesmo – é capaz de julgar os outros com justiça, em vez de se deixar levar pelos gritos da multidão, pelos estereótipos da propaganda, pelo interesse próprio disfarçado em belos pretextos morais.[4]
Ademais, a justificativa trazida pelo autor para a exclusividade da capacidade julgadora é profundamente esclarecedora. Afirma que
um homem tem de estar livre de toda fiscalização externa para ter a certeza de que olha para si mesmo e não para um papel social – e só então pode fazer um julgamento totalmente sincero. Somente aquele que é senhor de si é livre – e ninguém é senhor de si se não aguenta nem olhar, sozinho, dentro de seu próprio coração.[5]
Em outras palavras, o autor quer dizer que só é possível o julgamento justo de outrem por aquele cuja consciência detém papel exclusivo na tomada de decisões, isto é, apenas quando o homem se depara consigo mesmo (com sua consciência) e faz o que é certo é que se pode dizer que ele está apto a julgar alguém.
No caso da história citada, o Dr. Albert Schweitzer se mostrou qualificado a ser um justo julgador, justamente porque durante todo o resto de sua vida, depois de experimentar aos três anos de idade um julgamento cruel de sua própria consciência, viveu com a lembrança da injustiça cometida por ter-se autoenganado.
Perfeita relação pode ser feita entre o artigo citado e o livro Memórias do Subsolo de Fiódor Dostoiévski[6]. O personagem principal, cujo nome não fora revelado, possuía elevado grau de consciência, de modo que qualquer tentativa de autoengano era devidamente repreendida por ele mesmo. A sua vontade estava sempre subordinada à sua consciência, como por exemplo: queria ser mau mas sabia plenamente que não o era. Observa-se a descrição feita pelo próprio personagem, nestes termos:
Mas sabeis, senhores, em que consistia o ponto principal da minha raiva? O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante de meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida; que apenas assustava passarinhos em vão e me divertia com isso. Minha boca espumava, mas, se alguém me trouxesse alguma bonequinha, me desse chazinho com açúcar, é possível que me acalmasse. Ficaria até comovido do fundo da alma, embora, certamente, depois rangesse os dentes para mim mesmo e, de vergonha, sofresse de insônia por alguns meses. É hábito meu ser assim. Menti a respeito de mim mesmo quando disse, ainda há pouco, que era um funcionário maldoso. Menti de raiva. Eu apenas me divertia, quer com os solicitantes, quer com o oficial, mas, na realidade, nunca pude tornar-me mau.[7]
É patente o conflito entre o desejo e a consciência do personagem. Ele tenta ser mau mas sabe que tudo o que faz não passa de tentativa rasa de vencer a própria natureza.
Nota-se que, assim como o Dr. Albert Schweitzer no exemplo da picada de abelha, o homem no subsolo também relata que era constantemente vítima de sua própria consciência, já que, quando cometia alguma maldade, era acometido pela vergonha que chegava até mesmo a provocar-lhe convulsões e náuseas. [8]
A questão da consciência é posta por Dostoiévski ao longo de todo livro. Ele afirma que a consciência é a limitadora do homem de caráter e que por isso esse homem não pode seriamente se tornar nada, pois ele saberia que não passa de uma mentira. Apenas aqueles que não são limitados pela própria consciência têm a possibilidade de se tornarem algo.[9] Explica que a “consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa”.[10] Ela, na verdade, atrapalha o homem, pois, no cotidiano, seria mais que suficiente a consciência humana comum, isto é, a metade, um quarto a menos da porção que cabe a um homem instruído.
Desse modo, o homem consciente, como é o caso do personagem do livro, limitado por sua própria consciência, torna-se um ser covarde e inerte, incapaz de agir nas situações mais simples ao homem comum.
O autor explica de modo brilhante o quão limitante é a consciência para o homem de consciência hipertrofiada exemplificando a vingança. Um homem comum, possuído pelo desejo de vingar-se, “atira-se diretamente ao objetivo, como um touro enfurecido, de chifres abaixados, e somente um muro pode detê-lo.” Esse tipo de homem (homme de la nature et de la vérité), ante à sua inata estupidez, “considera sua vingança um simples ato de justiça.”[11] Isso quer dizer que, uma vez realizado o ato, ele fica plenamente satisfeito, com um sentimento que a justiça fora feita. O desejo de vingança também se dá no homem de consciência hipertrofiada, quando ofendido. No entanto, esse tipo de homem, devido à sua consciência intensificada, nega haver qualquer justiça no ato de vingança. É por isso que ele é incapaz de praticar o ato, mesmo querendo. Assim, só lhe resta desistir e deprimir-se ante sua incapacidade, lamentando o resto de sua vida que deveria ter agido e não agiu. Mesmo com tal vontade ele ainda sabe que se tivesse se vingado sofreria muito mais do que está a sofrer, além de também sofrer mais do que aquele que pretendia atingir, pois para si, a injustiça é o pior castigo.[12]
Afirma-se, mais uma vez, que a vida do Dr. Albert Schweitzer guarda, mutatis mutandis, relação íntima com a do homem do subsolo, porquanto os dois tiveram suas vidas duramente limitadas por terem a consciência hipertrofiada. Lógico que o personagem de Dostoiévski, fictício, traz junto a si uma riqueza gigantesca de fatos que, propositalmente, ao longo do livro, clareiam toda essa vida limitada pela própria consciência.
Relação há também entre essas personagens e o homem sábio citado por Erasmo de Rotterdam no livro Elogia da Loucura[13]. Lá o sábio é o homem consciente dos seus atos que, assim como o homem do subsolo, é um sujeito chato, repugnante, inconveniente, inoportuno. Ambos os autores, Fiódor Dostoiévski e Erasmo de Rotterdam, deixam claro que o excesso de consciência torna o homem infeliz.
O oposto desses já citados é o louco, conforme ensina Erasmo. É aquele cuja vida é feliz porque lhe fora dado pela deusa Loucura a falta de consciência das coisas. É o oposto do sábio. É um ser divertido, feliz, bem quisto e amável. Preocupa-se em viver a vida sem racionalizar nada.
Erasmo afirma que a humanidade é, em sua maioria, louca. Por isso que a vida persiste ao longo dos séculos, pois, se todos fossem conscientes dos seus próprios atos, como o homem do subsolo o é, ninguém teria filhos e nem mesmo se casaria, por exemplo, conforme explica o autor por intermédio da declamação feita pela própria Loucura:
Porque, de verdade, que homem, pergunto, gostaria de oferecer o pescoço ao cabresto do matrimônio, se, como costumavam fazer esses tais sábios, pensasse seriamente nos inconvenientes da vida conjugal? Ou ainda que mulher haveria de consentir na aproximação de um homem, se conhecesse ou cogitasse os perigosos trabalhos de parto ou a moléstia de educar os filhos? Por conseguinte, se devia a vida ao casamento, e deveis o casamento à Demência, minha serviçal, compreendeis claramente o que é que deveis a mim! Pois que mulher, depois de ter experimentado tudo isso uma vez, poderia querer repeti-lo de novo, se não lhe assistisse o Esquecimento, com sua influência? Nem mesmo a própria Vênus, em que pese a reclamação de Lucrécio, se atreveria a negar que, sem nossa divina adesão, seu próprio poder seria defeituoso ou ineficaz.[14]
É também devido à Loucura, isto é, a falta de consciência, a possibilidade do exercício de muitas das profissões que conhecemos hoje, tais como gramáticos[15], advogados[16], poetas[17], médicos[18] escritores[19], filósofos[20], teólogos[21], negociantes[22].
Quanto aos negociantes, cujo exercício da profissão só é possível graças à loucura, o autor os considera o tipo mais estúpido e sórdido dentre todos profissionais, in verbis:
O tipo mais estúpido e sórdido de todos é o dos negociantes, como era de se esperar de quem leva nas mãos a atividade mais sórdida de todas e ainda o faz pelos meios mais sórdidos, pois, ainda que andem continuamente praticando mentiras, perjúrios, roubos, fraudes e imposições, eles no entanto se consideram os primeiros de todos, pelo mero fato de terem os dedos rodeados de ouro. E não faltam alguns fradezinhos aduladores que os tratam com admiração e lhes dão tratamento de “veneráveis” em público, o que não é de se estranhar, já que esperam que vá para eles alguma porçãozinha de seus bens adquiridos de forma tortuosa.
A questão posta pelo autor, Erasmo de Rotterdam – por meio da declamatio da Loucura –, refere-se à possibilidade de um homem viver tranquilamente mesmo que seu trabalho seja a arte de enganar os outros.
É preciso considerar que o negociante sem consciência é aquele que, por exemplo, tenta convencer alguém a pagar por algo um valor acima do que realmente vale. A sua intervenção é necessária no caso, porquanto há nítida deturpação do valor da coisa. Caso o proprietário quisesse receber o valor justo, certamente dispensaria os engodos do negociante, já que o negócio se concretizaria por si só.
É a esse tipo de negociante que o autor se refere, àquele que pratica o engano, a fraude, e não àquele que intermedia um negócio de maneira limpa, honesta, sincera. Surge a indagação: como poderia viver tranquilamente o negociante louco mesmo depois de tanta injustiça?
A questão é que a loucura que lhe é dada tira-lhe totalmente o senso de justiça – a consciência –, de modo que, mesmo após uma fraude cruel contra uma viúva, é capaz de dormir um sono tranquilo.
O que dizer então dos advogados, cujos melhores e mais ricos são os designados a defender os mais maléficos a sociedade, utilizando-se de meios inescrupulosos a fim de defender a todo custo o cliente? Que muitas vezes mascaram a verdade com artimanhas processuais? Como poderia esse profissional, depois de um dia de trabalho, sentar-se e ensinar o que é a justiça para sua filhinha? Seria possível isso? De acordo com Erasmo de Rotterdam, sim. É plenamente possível que esses profissionais, apesar de toda estupidez, ainda se considerem os arautos da justiça, dos bons costumes e da moralidade. Tudo isso é graças à loucura, que abrange a falta de consciência, o esquecimento, a estupidez, o amor próprio, a demência, a indolência, a ignorância.
O que foi dito só é possível acontecer ao homem comum, o louco. Ao sábio, ao homem que possui a consciência hipertrofiada, aos que são como o Dr. Albert Schweitzer, ou seja, aqueles que “foram brindados pela Providência com a percepção espontânea e o julgamento certeiro de seus pecados” [23], não lhes é dada autorização divina para agir como homem comum (louco). São necessariamente escravos da própria consciência, escravos da justiça, submissos a esse dom dado no nascimento.
Olavo de Carvalho afirma que esse dom é dado a poucos, a maioria não recebe, mas nem por isso os desprovidos estão fadados a uma vida sem consciência moral sobre seus atos.
O autor afirma que:
Ora, nem todos os seres humanos foram brindados pela Providência com a percepção espontânea e o julgamento certeiro de seus pecados. Sem esses dons, o anseio de justiça se perverte em inculpação projetiva dos outros e em “racionalização” (no sentido psicanalítico do termo). Quem não os recebeu de nascença tem de adquiri-los pela educação. A educação moral, pois, consiste menos em dar a decorar listas do certo e do errado do que em criar um ambiente moral propício ao autoexame, à seriedade interior, à responsabilidade de cada uma saber o que fez quando não havia ninguém olhando.[24]
Conforme ensina o autor, há alternativa para aqueles não agraciados pelo dom da percepção espontânea e do julgamento certeiro de seus pecados. A alternativa é adquiri-los pela educação. É a educação moral que tirará da loucura o homem comum e o trará para perto da sabedoria e da justiça. É, portanto, o meio pelo qual o indivíduo desenvolverá um ambiente moral propício ao autoexame, onde ele mesmo poderá julgar seus próprios atos sem testemunhas.
É nesse contexto que se faz mister os ensinamentos de Aristóteles[25] sobre a excelência moral. Ensina que esse tipo de excelência é produto do hábito, ou seja, adquire-se pela repetição dos atos conformes a ela.[26] É possível dizer, então, que a excelência moral não é constituída por natureza, mas adquirida pela educação através do hábito. A natureza apenas “dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito”.[27]
Voltando aos ensinamentos do filósofo Olavo de Carvalho, nota-se perfeita relação entre esses e os de Aristóteles. Olavo ensina que a natureza oportuniza aos que não receberam o dom da percepção espontânea e do julgamento certeiro de seus pecados, receber e desenvolver, por meio da educação moral – produto do hábito –, ambiente propício ao autoexame.
Ainda nesse contexto, Aristóteles afirma que, quanto à excelência moral, que possuí várias formas, “adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado, tal como fazemos com as artes”.[28] Daí porque ele dá esses dois exemplos: os homens se tornam construtores construindo e se tornam citaristas tocando cítara. De igual modo, afirma que o homem torna-se justo praticando atos justos, torna-se moderado agindo moderadamente e torna-se corajoso agindo corajosamente.[29] Por lógica, também pode se afirmar que o homem torna-se consciente agindo conscientemente.
Completa ainda, Aristóteles, afirmando que
toda excelência moral é produzida e destruída pelas mesmas causas e pelos mesmos meios, tal como acontece com toda arte, pois é tocando a cítara que se formam tanto os bons quantos os maus citaristas, e uma afirmação análoga se aplica aos construtores e a todos os profissionais; os homens são bons ou maus construtores por construírem bem ou mal. Com efeito, se não fosse assim não haveria necessidade de professores, pois todos os homens teriam nascido bem ou mal dotados para as suas profissões. Logo, acontece o mesmo com as várias formas de excelência moral; na prática de atos em que temos de engajar-nos dentro de nossas relações com outras pessoas, tornamo-nos justos ou injustos; na prática de atos em situações perigosas, e adquirindo o hábito de sentir receio ou confiança, tornamo-nos corajosos ou covardes. O mesmo se aplica aos desejos e à ira; algumas pessoas se tornam moderadas e amáveis, enquanto outras se tornam concupiscentes ou irascíveis, por se comportaram de maneiras diferentes nas mesmas circunstâncias. Em uma palavra, nossas disposições morais resultam das atividades correspondentes às mesmas. É por isso que devemos desenvolver nossas atividades de uma maneira predeterminada, pois nossas disposições morais correspondem às diferenças entre nossas atividades. Não será pequena a diferença, então, se formarmos os hábitos de uma maneira ou de outra desde nossa infância; ao contrário, ela será muito grande, ou melhor, ela será decisiva.[30]
É com base nessa citação que se faz o desfecho de toda ideia até então desenvolvida.
Olavo de Carvalho, no final de seu artigo, faz uma sucinta análise histórica sobre a criação de ambiente propício para o desenvolvimento do autoexame. Segundo o autor, durante dois milênios, um ambiente assim foi criado e sustentado pela prática cristã do “exame de consciência”. [31]Assevera ainda que há equivalentes dela em outras tradições religiosas e místicas, “mas nenhuma na cultura laica contemporânea”.[32]
Explica que há as psicanálises, as psicoterapias, mas que só funcionam nesse sentido quando conservam a referência religiosa à culpa pessoal e ao seu resgate pela confissão diante de Deus. Completa:
à medida que a sociedade se descristianiza (ou, mutatis mutandis, se desislamiza, se desjudaíza etc.), essa referência se dissolve e as técnicas clínicas tendem justamente a produzir o efeito oposto: a abolir o sentimento de culpa, trocando-o ora por um endurecimento egoísta confundido com “maturidade”, ora por uma adaptatividade autocomplacente, desfibrada e cafajeste, confundida com “sanidade”. A diferença entre a técnica religiosa e seus sucedâneos modernos é que ela sintetiza, numa mesma vivência dramática, a dor da culpa e a alegria da completa libertação – e isto as “éticas leigas” não podem fazer, justamente porque lhes falta a dimensão do Juízo Final, da confrontação com um destino eterno que, dando a essa experiência uma significação metafísica, elevava o anseio de responsabilidade pessoal às alturas de uma nobreza de alma com o qual as exterioridades da “ética cidadã” não podem nem mesmo sonhar.[33]
Ainda:
Há dois séculos a cultura moderna vem fazendo o que pode para debilitar, sufocar e extinguir na alma de cada homem a capacidade para essa experiência suprema, na qual a consciência de si é exigida ao máximo e na qual – somente na qual – alguém pode adquirir a autêntica medida das possibilidades e deveres da condição humana. A “ética laica”, a “educação para a cidadania” é o que sobra no exterior quando a consciência interior se cala e quando as ações do homem já nada significam além de infrações ou obediências a um código de convencionalidades e de interesses casuais. “Ética”, aí, é pura adaptação ao exterior, sem outra ressonância íntima senão aquela que se possa obter pela internalização forçada de slogans, frases feitas e palavras de ordem. “Ética”, aí, é o sacrifício da consciência no altar da mentira oficial do dia.[34]
Isso significa dizer que o ambiente ideal para o “exame de consciência” – onde se desenvolverá a excelência moral – está intimamente ligado a percepção do Juízo Final pelo indivíduo. Precisa ele da confrontação de seus atos com um destino eterno, de modo que tema um ser superior, no caso Deus.
A religião, justamente por conta do julgamento dos atos por Deus, sempre pregou o autoexame, sob pena do homem se sentir culpado do pecado não perante outros homens, mas primeiramente perante a Deus. Assim, como há forçosa retirada da religião do seio da sociedade, principalmente por influência de ideias marxistas/comunistas, o autoexame de consciência fica cada vez mais adstrito às técnicas clínicas, que sequer de longe possuem a significação metafísica que possui a religião.
Desta maneira, ante a impossibilidade de gerar os mesmos efeitos da religião, a “ética cidadã” tenta apenas abolir o sentimento de culpa, “trocando-o ora por um endurecimento egoísta confundido com ‘maturidade’, ora por uma adaptatividade autocomplacente, desfibrada e cafajeste, confundida com ‘sanidade’”.[35] Isto quer dizer que, em vez de tornar os indivíduos que não nasceram com o dom da percepção espontânea e o julgamento certeiro de seus pecados mais conscientes, o efeito é totalmente o oposto, pois, assim como a excelência moral pode ser produzida, também pode ser destruída.[36] O indivíduo que antes era ensinado a ser consciente ante o temor de Deus hoje é ensinado a não ter qualquer sentimento de culpa para não ter de sofrer.
É por essa razão que Olavo de Carvalho termina seu artigo dizendo que a cultura moderna (que prega a exclusividade da ética laica) vem destruindo a capacidade do autoexame de consciência, único capaz de analisar com sinceridade os atos sem testemunhas praticados pelo homem comum. Essa fenômeno impede a formação de homens aptos a julgar seus semelhantes. Restringe-se, pois, aos que receberam de Deus o dom da percepção espontânea e do julgamento certeiro de seus pecados a possibilidade de se praticar um julgamento justo.
É, pois, a “ética laica”, a “educação para a cidadania” a única responsável para dar limites aos atos praticados sem testemunhas, já que nada mais resta no interior do indivíduo capaz de fazê-lo refletir. É aí que ocorre a transmutação da culpa perante Deus para a irrisória infração a um código de convencionalidade e de interesses casuais.