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A obrigatoriedade do trabalho prisional prevista na Lei de Execução Penal de 1984 e a vedação da pena de trabalhos forçados da Constituição de 1988:

a possível não receptividade do instituto e a consequente restrição aos direitos trabalhistas

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Agenda 30/12/2015 às 10:23

3. A OBRIGATORIEDADE DO TRABALHO PRISIONAL E A INAPLICAÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS

Em razão do trabalho ser considerado obrigatório, consequentemente existe a inaplicação dos direitos trabalhistas aos presos, pois o clássico direito do trabalho preza a prestação dos serviços livre, aquela em que há o acordo das partes em pactuarem o contrato, conforme reza o art. 442 da CLT.[18] Assim, a própria exposição de motivos da LEP justifica a falta de aplicação dos direitos trabalhistas, consoante a mensagem n. 242 de 1983, abaixo citada:

57. Procurando, também nesse passo, reduzir as diferenças entre a vida nas prisões e a vida em liberdade, os textos propostos aplicam ao trabalho, tanto interno como externo, a organização, métodos e precauções relativas à segurança e à higiene, embora não esteja submetida essa forma de atividade à Consolidação das Leis do Trabalho, dada a inexistência de condição fundamental, de que o preso foi despojado pela sentença condenatória: a liberdade para a formação do contrato. (grifo da autora)

Ou seja, o legislador optou por não conceder os direitos celetistas ao preso em razão da sua falta de liberdade para a formação do contrato. O legislador considerou que a sentença penal condenatória retirou a liberdade do preso para a formação contratual em razão do trabalho ser obrigatório. Como o direito trabalhista clássico cuida do trabalho do homem livre (que é aquele que pode escolher para quem e no que trabalhar), o trabalho prisional não se encontraria dentro das situações merecedoras de atenção do direito trabalhista, o que resultou na edição do artigo 28 da LEP:

Art. 28 LEP. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva.

...........................................................................................................................

§ 2º O trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho.

Apesar dos entendimentos aqui trazidos, a dificuldade em tratar da obrigatoriedade reside no fato da falta de oportunidades de trabalho na prisão, visto que a oferta de postos de trabalho é bem menor do que a mão de obra disponível. Dessa forma, encontra-se um abismo entre a formalidade e a materialidade da laborterapia. Exatamente por existir essa disparidade entre o disposto pela lei e o realizado na prática é que foram trazidos aqui diversos doutrinadores defendendo a manutenção da obrigatoriedade do trabalho carcerário. Porém, para demonstrar a dificuldade do trabalho carcerário ser considerado, efetivamente, obrigatório, serão apresentados dados do INFOPEN, que se trata de um Sistema de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, através do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), quais sejam os últimos dados constantes no portal da instituição, de junho de 2011:[19]

População carcerária no país: 513.802 pessoas;

Homens: 93%; Mulheres: 7%

48% são jovens com menos de 30 anos de idade;

Realizando trabalho interno, existem:a) 33.996 pessoas no apoio ao estabelecimento penal;b) 24.184 em parceria com a iniciativa privada;c) 2.834 em parcerias com órgãos do estado;d) 281 em parcerias com paraestatais (sistema S e ONGs);e) 12.704 realizando trabalhos artesanais;f) 1.026 realizando atividades rurais;g) 4.005 realizando atividades industriais.

Realizando trabalho externo, existem:a) 8.482 pessoas em parceria com a iniciativa privada;b) 2.573 em parcerias com órgãos do estado;c) 559 em parcerias com paraestatais (sistema S e ONGs);d) 2.573 realizando trabalhos artesanais;e) 391 realizando atividades rurais;f) 1.208 realizando atividades industriais.

De acordo com os dados, a população carcerária do Brasil em 2011, seria composta por mais de 500 mil presos, sendo 93% homens. Somando todas as modalidades de trabalho prisional, o número de presos laborando é 94.816, isto é, um número muito aquém do número total de apenados. Assim, é evidente que o trabalho carcerário está muito distante de ser considerado obrigatório.

Corroborando tais índices, o Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, datado em 18 de fevereiro de 2013, realizado pela ONU a respeito do sistema carcerário brasileiro, traz o número aproximado de presos laborando:

No que diz respeito à terapia ocupacional (trabalho interno e externo), cerca de 110 mil presos (cerca de 20% da população carcerária) exercem atividades de artesanato ou trabalham em projetos industriais e agrícolas sob parcerias com os organismos do sector [sic] ou auto-governo [sic] privadas.[20]

Conforme assinalado, em 2013, a situação continua muito similar, um índice pequeno, cerca de apenas 20% dos apenados cumprem atividade laboral. Assim, superada a controvérsia a respeito da possível obrigatoriedade laboral subexistir, comprova-se que tal situação está presente apenas no plano formal, e não no plano material.

Em que pese tais argumentos a respeito da manutenção da obrigatoriedade, conforme os dados acima trazidos, não há trabalho para todos, existem filas de espera para o trabalho em algumas prisões. Então, no momento em que não há postos de trabalho suficientes, qual a razão de continuar se valendo do instituto da obrigatoriedade? O trabalho obrigatório, na verdade, acaba não o sendo, visto que não há trabalho para todos, se tornando apenas "letra morta" em nossa legislação. Destarte, o preso acaba demonstrando a sua vontade de trabalhar, muitas vezes tendo que realizar o "rodízio de trabalho" nas prisões, para todos conseguirem trabalhar e obter o benefício da remição da pena.[21] A obrigatoriedade ficaria apenas no plano formal, na Lei, servindo para a marginalização dos direitos trabalhistas.

É claro que quando o beneficiário do labor for a administração pública, a concessão da tutela celetista aos presos é impossível, visto que para se tornar um empregado público, é necessário obter a aprovação em concurso conforme disciplina o artigo 37, II da Constituição.[22] Porém, não se pode esquecer que em muitas ocasiões, é a iniciativa privada a favorecida pelos trabalhos prestados, e dessa forma, o liame empregatício poderá surgir, desde que presentes os elementos essenciais da relação de emprego. 

Todavia, mesmo o preso trabalhando em prol da administração pública, alguns direitos trabalhistas deverão ser preservados, como é o direito às férias. Agora, suponha-se, por exemplo, a situação de um condenado a oito anos ao regime semiaberto. Imagine-se que o mesmo preso resolva trabalhar logo no início do cumprimento de sua pena e assim se mantenha até a sua soltura para a vida em liberdade, quanto tempo essa pessoa irá trabalhar sem direito ao descanso anual, ou seja, as férias? Sem dúvidas, ao término da pena, a pessoa estará com alguma fadiga física, pois o corpo precisa de certo tempo estendido para repor suas energias. Conforme explana Maurício Godinho Delgado a respeito do referido descanso:

De fato, elas fazem parte de uma estratégia concertada de enfrentamento dos problemas relativos à saúde e segurança do trabalho, à medida que favorecem a ampla recuperação das energias físicas e mentais do empregado após longo período de prestação de serviços.

[...] também têm fundamento em considerações e metas relacionadas à política de saúde pública, bem estar [sic] coletivo e respeito à própria construção de cidadania.[23]

Epaminondas de Carvalho defende o mesmo ponto de vista em relação às férias, mas aplicado ao trabalho prisional:

É fácil ver que o direito ao gozo de férias remuneradas constitui uma das mais importantes conquistas do trabalhador. Qual a razão de ordem jurídica ou moral invocada para a denegação do benefício ao penitenciário que trabalha durante um ano, dispensando considerável soma de energias?

Qualquer justificação, além de anti-humana, não poderá ser enquadrada na nova concepção do direito, já que não vivemos mais estribados no falso postulado da igualdade teórica.

A cessação do trabalho, com o fim de repouso, é uma necessidade que se não pode negar a pessoa humana, já porque tal direito tem uma tendência universalista, já ainda porque, a repetição de atos de atividade, leva fatalmente ao esgotamento de energias, à fadiga, causa psicológica dos acidentes.

Qualquer que seja a espécie de atividade humana, o trabalho não deve ser executado em estado de fadiga.

Sob este perfil, a sociedade exige que o penitente ao ser devolvido ao seu meio, conserve uma capacidade de trabalho revigorada, visando, assim, [sic] um melhor rendimento.

Pouco importa que o descanso seja feito no próprio estabelecimento penal, de forma intercalada ou prolongada. Pouco importa, ainda, que não possa o recluso afastar-se temporariamente do ambiente em que trabalha e vive, muito embora, possa ser transferido para outro presídio de igual regime.

Cremos que, nos tempos modernos, é necessário que o trabalhador descanse para que não execute trabalhos em estado de esgotamento. O repouso, portanto, como lei biológica que é, não pode ser negado ao penado, pois seria negar a própria dignidade da pessoa humana.[24]

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É evidente, até mesmo para um leigo, que o trabalho realizado ano após ano sem o período de descanso detém uma possibilidade maior de causar acidentes. O Estado, ao possuir a custódia do indivíduo, deveria guiar o trabalho de forma que a integridade física e psíquica do apenado não seja abalada. Assim, deveriam ser concedidas as férias anuais para os apenados trabalhadores.

O preso precisa aprender, precisa ser educado de que, após tanto tempo de trabalho, há o repouso anual remunerado. Não precisaria ser o descanso anual típico celetista de 30 dias, mas, no caso, um descanso de 10 dias, inclusive para o apenado entender como funciona a sistemática trabalhista (período aquisitivo de férias, para depois ocorrer o período concessivo), configurando uma típica interrupção do contrato de trabalho, inclusive para os cálculos de remição da pena. Entende-se que o período de férias pode ser reduzido, pois as férias possuem diversas finalidades, para descansar, para viajar, para o lazer, mais tempo com a família, entre inúmeros benefícios. Como o preso encontra-se com a sua liberdade de ir e vir cerceada, muitos desses benefícios não são adimplidos, e assim o número de dias de férias poderá ser reduzido.

Se o contrário for demonstrado para ele, isto é, que apenas há trabalho sem o descanso anual, o trabalho do apenado poderá fazer o caminho contrário ao da ressocialização: além de lesionar fisicamente e psicologicamente a pessoa, poderá transformá-lo em um "revoltado contra o sistema", mais do que, porventura, ele já possa ser. Esse é o entendimento exemplificativo em relação às férias, porém, outros direitos trabalhistas podem e devem ser pensados no contexto do trabalho prisional.

Cumpre ressaltar que o projeto de Lei n. 513 de 2013 que pretende alterar a LEP continua a prever a mesma sistemática de marginalização celetista para o trabalho carcerário.[25] Porém, apesar da justificativa da "falta de liberdade" para contratação exposta na exposição de motivos de 1984 em decorrência da obrigatoriedade do trabalho do apenado, o PL não prevê mais a sua obrigatoriedade, mas sim o incentivo ao labor.[26] Dessa forma, mesmo sem a obrigatoriedade do trabalho, de acordo com a nova vontade do legislador pátrio disposta no PL, a marginalização persistirá. A incongruência e ilogicidade persistem.


4. A (NÃO) RECEPTIVIDADE DO TRABALHO OBRIGATÓRIO APÓS A CRFB/1988

Conforme demonstrado, o trabalho do preso continua a ser considerado obrigatório diante da doutrina majoritária. Porém, inicialmente, poder-se-ia considerar que o presente artigo da LEP (promulgada em 1984) não foi recepcionado após o advento da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, pois em seu artigo 5°, inciso XLVII, alínea "c", prevê a vedação da pena de trabalhos forçados, podendo haver um conflito entre a norma constitucional e a norma penal. De acordo com a Constituição de 1988 não poderão existir as seguintes penas:

Art. 5° CRFB/1988.

............................................................................................................................

XLVII. Não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

Quando ocorrera a promulgação da LEP, a Constituição em vigor era a de 1967, alterada após a Emenda Constitucional n. 11, de 13 de outubro de 1978, que em seu artigo 153 lista o rol de direitos e garantias fundamentais, além das penas incabíveis:

Art. 153 CRFB/1967. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

............................................................................................................................

§ 11. Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, nem de banimento. Quanto à pena de morte, fica ressalvada a legislação penal aplicável em caso de guerra externa. A lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento no exercício de função pública.

A Constituição de 1988, em relação às penas proibidas, foi diploma constitucional inovador, visto que proíbe a pena de trabalhos forçados. Todas as Constituições anteriores, 1946 (art. 141, § 31),[27] 1937 (art. 122, n. 13),[28] 1934 (art. 113, n. 29),[29] 1891 (art. 72, § 20 e 21)[30] e 1824 (art. 179, XX),[31] apenas continham, no máximo, disposições parecidas, se não iguais, às da Constituição de 1967.

Consequentemente, realizando-se um comparativo entre as duas Constituições, a de 1967 e a de 1988, é fácil a verificação de que no momento de publicação da LEP não existia a vedação de pena de trabalho forçado, apenas a vedação da pena de morte, de prisão perpétua e de banimento. Logo, quando promulgada a LEP, o artigo 28 era perfeitamente constitucional. A proibição da pena de trabalho forçado foi introduzida pela Constituição de 1988. Portanto, poder-se-ia pensar que a obrigação do trabalho para os apenados, prevista no artigo 31 da LEP, após o advento da CRFB em 1988, tornou-se não recepcionada em razão da vedação da pena de trabalhos forçados.

Celso Ribeiro Bastos, em seu livro Comentários à Constituição do Brasil, publicado logo após o seu advento, explica o teor da vedação da pena de trabalhos forçados:

Pode parecer estranho que a Constituição proíba trabalhos forçados justamente quando estudos acerca dos problemas prisionais estão a evidenciar o caráter extremamente reeducador da atividade laboral. Seus aspectos benéficos ficam comprovados durante próprio encarceramento, como posteriormente, na vida em liberdade, quando o então aprendido poderá ser de enorme valia na obtenção de trabalho.

Para compreender-se perfeitamente essa vedação há, no nosso entender, que se dar a devida dimensão ao qualitativo "forçados". O que o Texto quis excluir é a possibilidade da imposição de trabalhos com cominação de penas, o que vale dizer, procurou-se banir aqueles labores exigidos coercitivamente. É que aqui a própria valia do trabalho fica posta em causa, prejudicada pelo seu aspecto coercitivo, que assumirá certamente o ar de uma pena aflitiva suplementar. De resto, é preciso atentar-se para possíveis abusos passíveis de ocorrência nesse campo, como nos dá conta Dostoievski, em Recordações da casa dos mortos, ao narrar que o pior castigo enfrentado pelos detidos era o terem de carregar pedras de um lado para outro e, depois, recolocá-las no lugar de origem. O trabalho privado de significação prática é execrável.

É evidente que a Lei Maior não está a repelir métodos positivos de estimulação ao trabalho que poderíamos considerar como autênticas sanções premiais. Assim, entendido o trabalho como uma técnica de dignificação do próprio homem e respeitada a vontade do presidiário em cumpri-lo ou não, livre está o sistema carcerário de estabelecer vantagens, privilégios, compatíveis evidentemente com a vida do recluso ou detento, mas que possam funcionar como um estímulo para a aceitação de tarefas operosas.[32] (grifo da autora)

Sendo assim, o autor em questão considera, conforme grifado, que não poderá ocorrer a imposição de trabalhos forçados com a imposição de penas, além do fato de que deverá ser respeitada a vontade do presidiário em cumpri-lo ou não. Portanto, conclui-se que, para o constitucionalista, a figura do trabalho obrigatório da LEP, de acordo com a nova ordem constitucional, não poderia mais vigorar, dado o fato da observância à vontade do preso.

Por sua vez, Alexandre de Moraes disserta de forma diversa:

As penas de trabalho forçado não se confundem com a previsão de trabalho remunerado durante a execução penal, previsto nos arts. 28 ss. da Lei 7.210/84 (Lei de Execuções Penais). O trabalho do condenado, conforme previsão legal, como dever social e condição da dignidade humana, terá sempre finalidade educativa e produtiva, sendo igualmente remunerado, mediante tabela prévia, não podendo ser inferior a três quartos do salário mínimo (art. 29 da citada lei). A própria lei prevê que o sentenciado deve realizar trabalhos na medida de duas aptidões e capacidade. Essa previsão é plenamente compatível com a Constituição Federal, respeito à dignidade humana e visando à reeducação do sentenciado.[33]

Dessa forma,   visualiza-se que, dentro da doutrina constitucionalista, os entendimentos não são uniformes, uma vez que Alexandre de Moraes justifica que a pena de trabalhos forçados e o trabalho do apenado são institutos distintos. Não foram encontrados demais doutrinadores constitucionalistas que entrem no mérito da obrigatoriedade ou não do trabalho prisional.

Alice Monteiro de Barros disserta sobre o assunto, justificando que o trabalho do preso é uma espécie de execução da pena, não uma pena de trabalhos forçados: "Lembre-se que não haverá penas de trabalhos forçados (art. 5°, XLVII, "c", da Constituição). Em consequência, o trabalho do presidiário é modalidade de execução da pena, e não uma espécie de pena".[34]

Por fim, menciona-se Renato Marcão, que, apesar de não justificar, entende que o trabalho do apenado e trabalho forçado são espécies distintas, e dessa forma o artigo 31 da LEP seria recepcionado pela nova ordem vigente:

Respeitadas as aptidões, a idade, a habilitação, a condição pessoal (doentes e portadores de necessidades especiais), a capacidade e as necessidades futuras, todo condenado definitivo está obrigado ao trabalho, o que não se confunde com pena de trabalho forçado, e, de consequência, não contraria a norma constitucional estabelecida no art. 5, XLVII.[35]

Além do mais, Renato Marcão reforça a doutrina majoritária a respeito da obrigatoriedade do trabalho, conforme demonstrado anteriormente.          

Em suma, a doutrina, além de manter o entendimento a respeito da obrigatoriedade, também argumenta que o trabalho prisional em caráter obrigatório foi recepcionado pela nova ordem constitucional de 1988.

Novamente, cita-se a ideia proposta no Projeto de Lei n. 513 de 2013, que pretende alterar a LEP, e em seu artigo 31[36] não prevê a obrigatoriedade do trabalho interno, mas que o preso será incentivado para tanto. Ou seja, diante do legislador, não haveria problemas na manutenção da obrigatoriedade da laborterapia.

Adentrando o ponto de vista trabalhista, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) trata do tema em duas Convenções: Convenção n. 105, de 1957, ratificada pelo Brasil através do Decreto n. 58.822 de 14 de julho de 1966, que trata da abolição do trabalho forçado; e a Convenção n. 29, de 1930, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n. 41.721, em 25 de junho de 1957, que trata sobre o trabalho forçado ou obrigatório. Esta última disciplina em seu artigo 2°, item 1:

1. Para fins desta Convenção, a expressão "trabalho forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.

Porém, encontra-se a exceção na alínea "c", item 2, do mesmo artigo:

2. A expressão "trabalho forçado ou obrigatório" não compreenderá, entretanto, para os fins desta Convenção:

............................................................................................................................

c) qualquer trabalho ou serviço exigido de uma pessoa em decorrência de condenação judiciária, contanto que o mesmo trabalho ou serviço seja executado sob fiscalização e o controle de uma autoridade pública e que a pessoa não seja contratada por particulares, por empresas ou associações, ou posta à sua disposição;

Assim, pode-se concluir que, diante dos conceitos da OIT, o trabalho prisional será forçado/obrigatório (são considerados sinônimos dentro do mesmo item), pois conforme a conceituação do item 1, é exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção (que no caso é a configuração da falta grave quando o preso não executa o seu dever de trabalhar, prevista no art. 50, VI combinado com o art. 39, V da LEP), e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente (pois é obrigatório pela LEP). Apenas não será considerado forçado ou obrigatório em função da ressalva do item 2, letra "c", pois há uma condenação judiciária e também em razão da fiscalização e do controle de autoridade pública.

A questão torna-se polêmica no momento em que a Convenção estipula outra condição para o trabalho do apenado, disposta no final da letra "c": "que a pessoa não seja contratada por particulares, por empresas ou associações, ou posta à sua disposição". Algo que, na prática, o Brasil não observa, pois é verificada no atual contexto prisional a entrada maciça de particulares valendo-se da mão de obra carcerária.

O Pacto de Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, promulgado no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto n. 592 de 06 de julho de 1992, estabelece a mesma situação em seu artigo 8, item 3:

3. a) Ninguém poderá ser obrigado a executar trabalhos forçados ou obrigatórios;

b) A alínea a) do presente parágrafo não poderá ser interpretada no sentido de proibir, nos países em que certos crimes sejam punidos com prisão e trabalhos forçados, o cumprimento de uma pena de trabalhos forçados, imposta por um tribunal competente;

c) Para os efeitos do presente parágrafo, não serão considerados "trabalhos forçados ou obrigatórios":

i) qualquer trabalho ou serviço, não previsto na alínea b) normalmente exigido de um indivíduo que tenha sido encarcerado em cumprimento de decisão judicial ou que, tendo sido objeto de tal decisão, ache-se em liberdade condicional;

E ainda, no mesmo sentido, O Pacto de San José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969, realizada entre os países-membros da Organização dos Estados Americanos (portanto possui vigência apenas na América), subscrita durante a Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, adentrando no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto n. 678 de 06 de novembro de 1992, possui o mesmo entendimento internacional já exarado, conforme abaixo:

Art. 6º. Proibição da escravidão e da servidão

............................................................................................................................

2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de proibir o cumprimento da dita pena, imposta por um juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso.

3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo:

a) os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade judiciária competente. Tais trabalhos ou serviços devem ser executados sob a vigilância e controle das autoridades públicas, e os indivíduos que os executarem não devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado;

O Pacto também ressalta, no seu artigo 6°, item 3, letra "a" que: "os indivíduos que executarem os trabalhos não devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado." Ou seja, existem três regulamentações internacionais, duas em caráter mundial, uma em caráter americano, todas ratificadas pelo ordenamento jurídico pátrio, que versam a respeito da exceção quanto à obrigatoriedade do trabalho prisional, considerando-o como uma forma lícita, desde que os presos não sejam contratados ou colocados à disposição de particulares.           

4.1. AS DIFERENÇAS ENTRE TRABALHO FORÇADO, OBRIGATÓRIO E DEGRADANTE

Além de tudo aqui já abordado, insta frisar que apesar da OIT, assim como o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da Costa Rica considerarem trabalho obrigatório e forçado como sinônimo, tais terminologias não são consideradas sempre de tal forma. É considerada a diferença terminológica, pois o trabalho obrigatório é aquele imposto pelo direito público, como um dever público. Como exemplo para tanto tem-se no Brasil o caso do labor prisional. Outra situação é o serviço militar, assim como outros atos que os cidadãos são impelidos a realizar: o mesário, assim como a função de jurado e de escrutinador. São deveres cívicos, ligados ao senso de responsabilidade e cidadania. Em outros países há a obrigatoriedade ao trabalho para o fim de utilidade ou necessidade pública para prevenir ou reparar prejuízos comuns (situação prevista no artigo 2°, item 2, "d" da Convenção 29 da OIT).

Por sua vez, o trabalho forçado, conforme aduzido por Luís Antônio Camargo de Melo:

O trabalho escravo ou forçado, contudo, segundo o conceito hodiernamente adotado, não será somente aquele para o qual o trabalhador não tenha se oferecido espontaneamente, porquanto há situações em que este é engodado por falsas promessas de ótimas condições de trabalho e salário. Esta situação, inclusive, é a que mais se verifica atualmente.

Imprescindível, porém, para a caracterização do trabalho escravo ou forçado, que o trabalhador seja coagido a permanecer prestando serviços, impossibilitando ou dificultando, sobremaneira, o seu desligamento.[37]

Luís Antônio demonstra que não é apenas a situação do trabalhador ser forçado a trabalhar que considerará o trabalho como escravo. A problemática vai além, pois há casos que em que são pregadas ilusões através de contratações fraudulentas, e após, o trabalhador percebe que foi enganado e deseja rescindir o vínculo, porém, não consegue. O autor continua o seus ensinamentos, ao demonstrar como que o trabalho forçado poderá ocorrer através de três coações:

Esta coação poderá ser de três ordens: moral, psicológica e física.

Será moral quando o tomador dos serviços, valendo-se da pouca instrução e do elevado senso de honra pessoal dos trabalhadores, geralmente pessoas pobres e sem escolaridade, submete estes a elevadas dívidas, constituídas fraudulentamente com o fito de impossibilitar o desligamento de trabalhador.

Será psicológica quando o trabalhador for ameaçado de sofrer violência, a fim de que permaneça trabalhando. Tais ameaças dirigem-se, normalmente, à integridade física do trabalhador, sendo comum, em algumas localidades, a utilização de empregados armados para exercerem esta coação.

Ameaças de “surra” e de morte não são raras, estabelecendo-se um clima de terror entre os trabalhadores.

A ameaça de abandono do trabalhador à sua própria sorte, em determinados casos, constitui-se em um poderoso instrumento de coação psicológica.

Muitas vezes o local da prestação dos serviços é distante e inóspito, centenas de quilômetros da cidade ou distrito mais próximo, sendo certo que diversos relatos dão conta de trabalhadores desaparecidos ao tentar fugir da exploração.

............................................................................................................................

[...] além de sofrerem ameaças de violência física (o que, por si só, exerce forte coação sobre muitos) os trabalhadores são, efetivamente, submetidos a castigos físicos e, não sendo estes “suficientes”, alguns deles são sumariamente assassinados, servindo, então, como exemplo àqueles que pretendam enfrentar o tomador dos serviços. É a coação de ordem física.[38]

Dessa forma, de acordo com o autor, a conceituação do trabalho escravo e forçado está relacionada ao fato da impossibilidade ou dificuldade em romper o vínculo com o tomador dos serviços através da coação moral, psicológica ou física. A coação moral surgiria no momento que o empregador abusaria da falta de instrução do empregado para impossibilitar o fim do vínculo, aliado ao fato do empregador forçar o trabalhador a realizar altas dívidas. Já a psicológica ocorre quando houver intimidamento através de ameaças caso o empregado fuja ou denuncie seu empregador. Por fim, a física, ocorre quando é utilizada a violência física contra os trabalhadores.

Maurício Godinho Delgado assim afirma a contrastante separação entre o atual sistema contemporâneo do trabalho livre e os trabalhos servis e escravos:

Se a ausência da liberdade no interior da relação servil ou escrava conduzia à emergência da sujeição como critério de vinculação entre o titular do meio de produção e o produtor/trabalhador envolvido, não será esse o efeito constatado no sistema produtivo contemporâneo. É que a presença da liberdade/vontade no interior da relação empregatícia afasta a possibilidade do uso do critério do simples comando/obediência, do critério da sujeição como padrão de relacionamento direto empregado/empregador no mundo atual. Inviabilizado o critério fundado na coerção, por incompatibilidade com o trabalho livre, constrói-se – como já apontado – o critério da subordinação objetiva, dirigida à forma de prestação do trabalho, sem interferência na vida e liberdade pessoal do trabalhador.

O critério da subordinação, entretanto, é natural e historicamente elástico. Comporta, assim, fórmulas alternativas em que se contrapõem tanto padrões constituídos por elevada concentração de ordens e controle objetivos [...].

A segunda alteração exponencial produzida pelo trabalho livre no interior da relação de produção hegemônica contemporaneamente – se comparada com as relações de produção que lhe foram precedentes – reside especificamente no papel da coerção no núcleo dessa relação. Se a presença da liberdade/vontade já compromete a função da coerção na relação empregatícia, a própria estrutura e dinâmica da contemporânea relação de produção dispensam, como regra, o recurso imediato à coerção como fórmula essencial ao funcionamento do sistema. A relação de produção empregatícia é extremamente mais sofisticada que as relações produtivas servis e escravas, caracterizando-se por uma fórmula de estruturação e funcionamento que organicamente dispensa a coerção como instrumento de existência e dinamismo do sistema produtivo.

De fato, na economia contemporânea, o sistema de produção, apropriação e distribuição cumpre seu integral ciclo sem a necessidade imediata e imperativa do uso de instrumentais coercitivos. O sistema tem uma sofisticação desconhecida nos sistemas precedentes, hábil a permitir que a apropriação do resultado do trabalho do produtor se faça no próprio circuito econômico, sem recurso a mecanismos não-econômicos [sic]. Esta sofisticação se expressa pelo salariato. O trabalhador produz conscientemente para o titular do empreedimento e, em contrapartida, recebe conscientemente uma paga pelo trabalho e contrato pactuados. Ao contrário da noção de expropriação (óbvia na servidão/escravatura) transparece a princípio, no salariato, a noção de contrato sinalagmático, isto é, acordo de vontades contrapostas e contra-influentes [sic].[39]

Dessa forma, nas palavras de Godinho, visualiza-se a separação entre o trabalho forçado e o trabalho livre, visto que, no primeiro caso, o trabalhador não se coloca à disposição patronal, ou almeja romper o vínculo e não consegue. Já o trabalho livre é dotado de subordinação objetiva, não há interferência na vida pessoal do empregado, pois os comandos patronais ficam restritos aos ditames da relação de emprego. Na relação de emprego, conforma já salientado, a vontade é necessária, isto é, o consenso de ambas as partes para a formação e execução contratual. Não há espaço para coerção. O que vinculará o empregado ao corpo empresarial não será o instrumento coibitivo, pois o que prenderá o empregado à força de trabalho da empresa será a remuneração.

E, por fim, cumpre o esclarecimento em relação ao trabalho degradante. Gustavo Filipe Barbosa Garcia ensina: "O trabalho degradante, e mesmo o trabalho análogo à condição de escravo como um todo, são a negação e a antítese do chamado "trabalho decente", o qual é aquele que respeita o princípio da dignidade da pessoa humana".[40] Isto é, o trabalho degradante é qualquer trabalho, escravo ou não, que não respeita as condições adequadas de trabalho, ferindo as diretrizes expedidas em relação à saúde e segurança dos trabalhadores.

 Nesse sentido, no Brasil, a prática de trabalho análoga à de escravo, que configura a sujeição a condições degradantes de trabalho, ou ainda ao trabalho forçado (relacionado à restrição da liberdade do trabalhador), constituiu crime de acordo com o artigo 149 do Código Penal.[41]

Sobre a autora
Laura Machado de Oliveira

Professora da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Mestra pela UFRGS em Direito do Trabalho. Advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho. Autora de diversos artigos trabalhistas. Citada reiteradamente em acórdãos do TST. Autora do livro "O direito do trabalho penitenciário" pela Lumen Juris.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Laura Machado. A obrigatoriedade do trabalho prisional prevista na Lei de Execução Penal de 1984 e a vedação da pena de trabalhos forçados da Constituição de 1988:: a possível não receptividade do instituto e a consequente restrição aos direitos trabalhistas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4564, 30 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45027. Acesso em: 23 dez. 2024.

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