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Kafka, Lacan e o direito tributário brasileiro: a sustentabilidade do sistema pelo gozo do parcelamento

Parte II - Metamorfose, gozo e o parcelamento tributário:

Agenda 17/01/2016 às 12:24

Nesta segunda parte, relaciono o empreendedor no Brasil com o personagem Gregor Samsa, de Franz Kafka. Faço uso de Lacan e apresento a sustentabilidade do sistema tributário através do gozo (do Outro) nas adesões aos parcelamentos.

Gregor Samsa é, talvez, o personagem mais vivo do nosso século: o século da alteridade. Rejeição, solidão e introspectividade são algumas das marcas indeléveis que se registram dolorosamente em quem lê a obra A Metamorfose, de Franz Kafka.

A contundência deste livro tão perturbador reside, para mim, na maneira como o autor nos obriga a nos hospedarmos na caverna úmida e sombria, que é o quarto de Gregor Samsa; espaço alegórico, muito íntimo de quem é rejeitado diante de uma posição existencial não familiarizada. Em outras palavras, o drama de Gregor Samsa faz com que o leitor saboreie as amargas feridas de quem é repudiado justamente por aqueles que o deveriam acolher. É o absurdo de tentar criar uma empatia pelo monstro.

Imagino que tais palavras calem fundo em quem já tenha vivido semelhante experiência. Pensando assim, eu ousei relacionar a figura deste personagem, meu homem elefante preferido, com os empresários no Brasil, que são, atualmente, na expressão política e dicotômica de Carl Schmitt, os inimigos públicos da Receita Federal.

Pois bem. Na primeira parte deste ensaio, Kafka, Lacan e o Direito Tributário brasileiro, cuidei de relacionar o contribuinte brasileiro com Josef K., outro personagem de Franz Kafka, da obra O Processo. Naquela oportunidade, pude mostrar como a falta de transparência fiscal patrocina a insegurança jurídica nas relações da empresa com o Estado. Para tanto, foi lançado mão da psicanálise de Jacques-Marie Émile Lacan como cimento nessa edificação, donde o Direito é uma estrutura organizadora dos nosso desejos (Lei do Pai), e a incerteza de seu cumprimento um contínuo estado de asfixiante ansiedade.

Nesta segunda parte, procurarei revelar os pontos de tangência que aproximam o empreendedor no Brasil com a metáfora kafkiana da alteridade, figurado em Gregor Samsa: filho economicamente ativo, que, um dia, acorda metamorfoseado num inseto gigante.

Interessante observar a maneira como Kafka descortina o peso de uma posição financeira favorável enquanto condição de uma aceitação – talvez, esta seja sua crítica ao capital. Quero dizer que Gregor Samsa era tanto ou mais filho, quanto mais servia na sustentação de sua família. Aliás, ele foi filho até o momento em que sua existência deixou de ser favorável financeiramente a seus consanguíneos, vez que, já no prólogo da obra, sua feição monstruosa motiva sua demissão.

A partir deste evento, da descoberta de sua mudança, a família Samsa sofre de um surto teratofóbico. Gregor substitui todas as cruzes a serem carregadas. Todavia, antes da decisão de rejeitá-lo plenamente, por não enxergarem mais o seu  filho naquele ente – atrevo-me a dizer que ele perdeu sua função naquela família –, Kafka nos apresenta com muita riqueza a relação afetiva entre os dominantes da casa e o rejeitado.

Nas palavras do autor:

[Gregor] já sabia, desde o primeiro dia da sua nova vida, que o pai só considerava o rigor como a forma mais adequada de trata-lo.

Mesmo impingido pela rispidez, é muito transparente que Gregor insiste na comunicação e na aproximação, apoiado numa pueril esperança de ser reconhecido, quiçá acolhido. Tanto é assim que ele apresenta demasiada cautela em suas ações, até porque a família não o compreende; apenas escuta ruídos de um monstro. Entretanto, por uma ironia linguística, Gregor os compreende, tanto o que falam, como o que sentem.

Os exemplos são inúmeros. Dentre eles, transcrevo a seguinte passagem:

Por isso Gregor, temendo que o pai pudesse considerar pura maldade uma fuga pelas paredes ou para o teto, permanecia por enquanto no chão. Entretanto teve de reconhecer que não aguentaria aquela corrida por muito tempo; pois enquanto o pai dava um passo, ele tinha de executar uma ifinidade de movimentos. Já sentia falta de ar, pois, mesmo em outras épocas, nunca possuíra pulmões muito dignos de confiança. Cambaleava juntando forças para a corrida, mal mantendo os olhos abertos; no seu torpor não via outra salvação a não ser correr; (...). Gregor ficou paralisado de susto; era inútil continuar correndo, pois o pai estava decidido a bombardeá-lo.

Este sentir de criatura abominada, momentaneamente tolerada, sob o jugo da violação, é, mutatis mutandis, o sentimento que o homem industrioso possui em relação ao Governo, sobretudo diante da Receita Federal do Brasil. Cada vez mais, os empresários sentem-se como se a Fazenda os repudiassem e o quisessem ver sangrando. O afeto não é diferente daquele experimentado por Gregor Samsa: inseguro, acuado, rejeitado e com medo.

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O Estado parece tolerar os empreendedores, principalmente os financeiramente rentáveis, o que significa dizer aqueles aptos a pagarem toda e qualquer exigência tributária, independentemente da legalidade ou não desta obrigação. Diante disso, pergunta-se: quem é o verdadeiro monstro? Não foi por acaso que Thomas Hobbes denominou este grande corpo artificial (o Estado) de Leviatã, vale lembrar, um monstro bíblico advindo dos mares, descrito no livro de Jó.

E onde Lacan entra nisso? Demonstrada a relação que existe entre o ordenamento jurídico e a relação de significantes que estruturam o inconsciente – sobretudo os registros da ordem Simbólica –, resta apresentar a ligação entre a estrutura normativa no Brasil, e toda a insegurança jurídica que ela carrega consigo, com o gozo do contribuinte rejeitado por meio das adesões aos parcelamentos tributários.

Assim sendo, com vistas a uma melhor compreensão do aqui proposto, doravante tratarei, de maneira lacônica e não exaustiva, sobre la jouissance em Lacan. Afinal, nas palavras deste psicanalista francês: “lembrarei ao jurista que, no fundo, o direito fala do que vou lhes falar – o gozo”[1].

A introdução da ordem simbólica pela interdição do Nome-do-pai, cujo efeito na criança é o enlaçamento do desejo com a linguagem – lembrando a primeira parte deste ensaio –, faz com que o gozo seja lançado para fora do corpo (simbolicamente) castrado. Isso porque, ao barrar a relação incestuosa da criança com a mãe, pela metáfora paterna, o significante do Nome-do-pai, dando nome ao espaço que se esvaziou, estabelece a sujeição do gozo, agora, ao discurso do Outro.

Nas palavras de Bruce Fink:

Na medida em que o desejo habita a linguagem – e em uma estrutura lacaniana não há, a rigor, desejo sem linguagem – podemos dizer que o inconsciente está repleto de tais desejos estranhos. (...) Nesse sentido, podemos interpretar o enunciado de Lacan de que o inconsciente é o discurso do Outro, de uma maneira muito direta: o inconsciente está repleto da fala de outras pessoas, das conversas de outras pessoas, e dos objetivos, aspirações e fantasias de outras pessoas (na medida em que estes são expressos em palavra). [2]

Portanto, a Lei do Pai, quando reconhecida e veiculada pela mãe, tanto desloca o desejo da criança para a ordem do Simbólico, submetendo-a, neste instante, às leis civilizatórias, como também precipita o gozo para o discurso do Outro. Não se é outra coisa, senão o objeto perdido a.

Na explicação de Lacan:

há perda de gozo. E é no lugar dessa perda, introduzida pela repetição, que vemos aparecer a função do objeto perdido, disso que eu chamo a. [3]

Podemos concluir que a linguagem, enquanto repetição de significantes que constitui o sujeito – o discurso do Outro, na qualidade de tesouro dos significantes –, é meio, igualmente, de um retorno ao gozo[4].

Porquanto, a partir dela, da linguagem, que o sujeito, então, clivado, é apresentado a duas relações com o gozo: como perda e como suplemento da perda, isto é, o mais-de-gozar (relação feita com a mais-valia de Karl Marx[5]). Aliás, é nessa hiância causada pelo objeto perdido que se forja o sujeito demandante por um tamponamento.

A demanda gerada pela hiância vem direcionar o sujeito cindido em busca do seu complemento numa variedade de objetos que transbordam dos objetos naturais. Logo, funcionarão tanto ou mais como tampão desse vazio da falta de gozo, quanto maior for a produção de linguagem em que se estende o registro do objeto perdido a; incluindo, claro, a produção de linguagem jurídica.

Feita estas considerações, retomemos ao Direito Tributário brasileiro, este corpo de diplomas legais que, em razão da sua incompreensão e da opacidade que subjaz em toda norma tributária, gera em seus contribuintes uma asfixiante insegurança jurídica, assim como a demanda pelo gozo que o suplemente.

Ora. Que o empresário brasileiro sofre da total incerteza de que suas ações comportem a legalidade exigida pela lei tributária é óbvio – falha no alinhamento do princípio de prazer com o princípio de realidade, motor da produção desenfreada de autos de infrações no Brasil. Contudo, é importante também dizer que a sustentabilidade deste sistema reside, a meu ver, no gozo (do Outro) pela demanda e adesão aos parcelamento tributários.

Retomemos o que foi falado sobre o empreendedor no Brasil: é um personagem da obra de Kafka; o que significa caracterizá-lo como rejeitado, apreensivo e inseguro. Sua insegurança é dada na incompreensão do emaranhado que constitui o corpo de enunciados prescritivos tributários. Ademais, a sua apreensão e rejeição é motivada, principalmente, pelo modo que procede a Receita Federal diante das suas funções, agindo com total falta de transparência e, declaradamente, por meio de seus agentes fiscais, na massacrante maioria, como se em guerra estivesse com as empresas.

Sob o jugo do aparato do Estado, que, além de impor contra as empresas um sistema tributário composto por hieróglifos enigmáticos, também se reveste de hostilidade e afronta – chegando mesmo a ter transparência só quando lhe convém (vide lista dos maiores devedores divulgadas pelo Ministério da Fazenda[6]) -, isto é, como se um inimigo fosse, o que faz não deixar alternativas aos empresários, exceto uma adesão aos parcelamentos de seus débitos - vale dizer, dívidas geradas pela própria incompreensão do sistema.

Quero dizer que os parcelamentos têm uma dupla função: (I) apaziguar o altíssimo nível de ansiedade do empresário, cujos desejos se acumulam em razão da insegurança e falta de satisfação pelo cumprimento da lei, e; (II) o gozo provisório (do Outro) de aceitação do Estado, representado, por exemplo, na emissão das Certidões Positivas com efeito Negativos, fortalecendo, dessa maneira, para a manutenção do sistema tributário, que cada vez mais se encontra distante de uma reforma.

Concluindo, é vivendo debaixo desta síndrome teratofóbica da Receita Federal, em que o monstro é o empresário que deve tributos ao Brasil, que faz dos parcelamentos tributários uma rota de fuga passageira desta condição existencial kafkiana; passageira, evidentemente, pois haverá sempre o seu (eterno) retorno, quando o empresário torna a questionar-se, igualmente a Gregor Samsa, naquela manhã cinza e vaporosa: “O que aconteceu comigo?”.


Notas

[1] LACAN, Jacques. O seminário: mais, ainda. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (Livro 20), p. 10.

[2] FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Trad. Maria de Lourdes Sette Câmara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 26-29.

[3] LACAN, J. (1969-1970/1992) O seminário livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 46.

[4] “a repetição se funda em um retorno do gozo” LACAN, J. (1969-1970/1992) O seminário livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 44.

[5] “o que Marx denuncia na mais-valia é a espoliação do gozo. No entanto, essa mais-valia é o memorial do mais-de-gozar, é o seu equivalente do mais-de-gozar. A sociedade de consumidores adquire seu sentido quando ao elemento, entre aspas, que se qualifica de humano se dá o equivalente homogêneo de um mais-de-gozar qualquer, que é o produto de nossa indústria, um mais-de-gozar — para dizer de uma vez — forjado." LACAN, J. (1969-1970/1992) O seminário livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 76.

[6] http://s.conjur.com.br/dl/500-maiores-inscritos-dau.pdf

Sobre o autor
Bruce Bastos Martins

Advogado inscrito na OAB/SC 32.471 e sócio da Lobo & Vaz Advogados Associados. Nascido em Florianópolis/SC, Brasil. Mestrando em Direito Tributário na Pontifícia Universidade Católica de Sao Paulo - PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Especialista em Direito da Aduana e do Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Professor Seminarista pelo IBET. Autor de artigos em publicações especializadas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Bruce Bastos. Kafka, Lacan e o direito tributário brasileiro: a sustentabilidade do sistema pelo gozo do parcelamento: Parte II - Metamorfose, gozo e o parcelamento tributário:. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4582, 17 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45112. Acesso em: 24 nov. 2024.

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