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Os efeitos da revelia e a Fazenda Pública: análise doutrinária e jurisprudencial.

Agenda 17/12/2015 às 19:01

O presente artigo tem por objetivo discutir a incidência dos efeitos materiais e processuais da revelia quando é a Fazenda Pública, dotada de diversas prerrogativas conferidas pela legislação processual, que não apresenta sua peça de defesa.

Palavras-chave: Revelia; Efeitos; Indisponibilidade do Interesse Público; Fazenda Pública.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A Revelia e seus efeitos no âmbito do Direito Processual Civil Brasileiro: 2.1 Efeito material da revelia; 2.2 Efeito processual da revelia; 2.3 Outros efeitos decorrentes da revelia; 3 A incidência dos efeitos da revelia em face da Fazenda Pública: 3.1 O entendimento dos tribunais superiores; 4 Considerações finais; Referências; Notas.  

1 INTRODUÇÃO

O tema envolve uma abordagem ampla sobre os efeitos da ausência jurídica de apresentação de contestação numa relação processual, para então proceder a um enfoque pormenorizado acerca dos efeitos materiais e processuais da revelia em face do Poder Público, considerando, sobejamente, a indisponibilidade ínsita aos direitos defendidos pela Fazenda Pública em juízo.

O estudo dos efeitos da revelia aplicados à Fazenda Pública tem considerável importância prática nas causas envolvendo um particular litigando em face do Estado, sobretudo, quando o objeto da discussão é um contrato da administração, oportunidade na qual se encontra a administração pública em pé de igualdade com o particular, como ocorre, por exemplo, nos contratos de locação firmados entre um município e uma pessoa jurídica de direito privado.

2 A REVELIA E SEUS EFEITOS NO ÂMBITO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

Nas palavras de Sidnei Amendoeira Jr, “defender-se no processo (...) é um ônus, e não um dever ou obrigação. Se o réu não se defende, ele sofre as consequências processuais negativas daí advindas.” [1]

Nosso Código Processual Civil, no capítulo III, do Título VIII, dispõe acerca da principal consequência negativa da omissão do réu em se defender, a revelia.

Fredie Didier, no seu Curso de Direito Processual Civil, conceitua didaticamente o instituto da revelia:

A revelia é um ato-fato processual, consistente na não apresentação tempestiva de contestação. Trata-se de espécie de contumácia passiva, que se junta a outras como, por exemplo a não–regularização da representação processual (art. 13, II,CPC). Há revelia quando o réu citado, não aparece em juízo, apresentando a sua resposta, ou, comparecendo ao processo, também não apresenta a sua resposta tempestiva. [2]

Registre-se, destarte, que, com esteio na lição de Daniel Amorim Assumpção, a revelia se traduz numa ausência obrigatoriamente jurídica da contestação, eis que a mera existência fática da peça de defesa, como no caso em que ela é apresentada fora do prazo legal ou quando protocolada junto a juízo diverso do feito, por exemplo, não é capaz de ilidir os efeitos decorrentes do indigitado instituto.[3]

Elpídio Donizetti leciona que a “revelia decorre do não-atendimento à citação, ato pelo qual o réu é condenado a responder, querendo, no prazo legal”[4]. Explica o jurista que, malgrado a doutrina majoritária limite-se a conceituá-la como ausência de contestação, esta ausência, em verdade, “relaciona-se com um dos efeitos da revelia, o principal deles, que é a presunção de veracidade dos fatos articulados na inicial.” [5]

Nessa esteira, a melhor doutrina, abalizada na dicção legal dos arts. 319 e ss., do CPC, aponta dois principais efeitos imediatos decorrentes da revelia, quais sejam: a presunção de veracidade dos fatos afirmados pelo autor, encarado como efeito material, e a desnecessidade de intimação do réu revel, considerada efeito processual.

2.1  EFEITO MATERIAL DA REVELIA: PRESUNÇÃO DA VERACIDADE DOS FATOS AFIRMADOS PELO AUTOR

O efeito material, certamente, representa o efeito mais relevante da revelia, consubstanciando-se na confissão ficta do réu, o que demonstra que nosso código processual seguiu a linha do processo civil germânico, na contramão do direito luso.

Amendoeira Jr. esclarece a respeito do efeito material que:

[...] os fatos alegados pelo autor e não contestados pelo réu, justamente pela ausência de contraponto, são presumidos como verdadeiros, não geram questões, revelando-se, em princípio, como pontos incontroversos, ou seja, pacíficos, sobre os quais não pende nenhuma dúvida, daí ser desnecessária a produção probatória e, em sendo assim, o feito pode ser julgado antecipadamente.[6]

Nesse ponto, é necessário vislumbrar que se trata de uma presunção apenas juris tantum de veracidade dos fatos podendo ser afastada no caso concreto, sobretudo, nas hipóteses previstas no art. 320 do CPC.

A respeito, Daniel Assumpção acrescenta que:

Ao afirmar que a presunção de veracidade é relativa, é importante notar que o seu afastamento no caso concreto não permite ao juiz a conclusão de que o fato alegado não é verdadeiro. Não sendo reputados verdadeiros os fatos discutidos no caso concreto, o autor continua com o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito, sendo concedido a ele o prazo de 10 dias para especificação de provas (art. 324 do CPC). [7]

Assim, ainda que considerados verdadeiros os fatos, a procedência da ação não é imperativa. A esse respeito, leciona Arruda Alvim:

Outro aspecto que temos que considerar, haurido do art. 319, é o de que são reputados verdadeiros os fatos, o que não implica, contudo, que a demanda seja necessariamente ganha pelo autor, pois daqueles fatos, ainda que devam ser considerados verídicos, segundo a lei, poderão não decorrer das consequências tiradas pelo autor, como poderão eles não encontrar apoio em lei, o que, então, levará, apesar da revelia, a um julgamento de improcedência.[8]

Como dito, o artigo 320 do Código de Ritos[9] traz expressamente três hipóteses em que o efeito material da revelia não incidirá.

O primeiro caso refere-se à pluralidade de réus, quando algum deles contestar a ação (art. 320, I, CPC). A doutrina entende que esse dispositivo aplica-se indistintamente ao litisconsórcio unitário, eis que, no litisconsórcio simples, será necessária uma identidade de matéria defensiva.

A segunda hipótese ocorre se o litígio versar sobre direitos indisponíveis, direitos de cunho não patrimonial ou mesmo de cunho patrimonial quando houver interesse de incapazes (art. 320, II, CPC).

Por fim, se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público, que a lei considere indispensável à prova do ato, não haverá a indigitada presunção de veracidade (art. 320, III, CPC).

A essas hipóteses, a doutrina acrescenta ainda algumas outras situações em que inexiste presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor, ainda que verificada a revelia.

Assumpção cita como exemplo os fatos inverossímeis, elucidando que, tendo o juiz “a impressão de que os fatos não são verdadeiros, aplicando no caso concreto as máximas de experiência, poderá exigir do autor a produção de prova, afastando no caso concreto o efeito da revelia.”[10]

É o que Didier explica em sua obra: “o simples fato da revelia não pode tornar verossímil o absurdo: se não houver o mínimo de verossimilhança na postulação do autor, não será a revelia que lhe conferirá a plausibilidade que não possui” [11]

Elpídio Donizetti acrescenta outra situação, ao lecionar que “não incide a presunção de veracidade quando, embora revel o réu, o assistente simples dele, atuando como gestor de negócios, contestar no prazo legal (art 52, parágrafo único).”[12]

Ainda, Didier traz à tona o caso em que houver citação ficta (por edital ou por hora certa), no qual o curador especial haverá de promover a defesa do réu revel e também não terá o ônus de impugnação específica.[13]

Por derradeiro, relevante registrar que a inverossimilhança como causa excludente dos efeitos da revelia foi prevista no art. 345, IV, do Novo Código de Processo Civil (Lei n 13.105/15), que também determinou o afastamento de tais efeitos quando as alegações de fato trazidas pelo peticionante estiverem em contradição com as prova constante dos autos.

2.2 EFEITO PROCESSUAL DA REVELIA

Leonardo Carneiro da Cunha, em sua obra Fazenda Pública em Juízo, traz, de forma didática, a definição do efeito processual da revelia:

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O efeito processual da revelia, que consiste na dispensa de intimação do réu para os atos do processo (CPC, art. 322), somente se produz se o réu além de não contestar, não comparece nos autos. Tal efeito, em outras palavras, somente é produzido se e enquanto o réu não atua no processo.[14]

Tal efeito restou positivado no art. 322 do CPC[15], acrescido pela Lei n° 11.280 de 16 de fevereiro de 2006, a qual outrossim estabeleceu a possibilidade de o réu revel intervir em qualquer fase do processo, ocasião em que cessarão os indigitados efeitos processuais da revelia.

Como afirma Bedaque: “se o réu, embora já esgotado o prazo para contestar, constituir advogado e passar a atuar regularmente no processo, não há razão para privá-lo da ciência dos atos do processo.”[16]

A esse respeito, a súmula 231 do STF estatui: “o revel, em processo civil, pode produzir provas desde que compareça em tempo oportuno.”[17]

Por derradeiro, cabe consignar que o art. 346 do Novo Código de Processo Civil alterou ligeiramente a redação do art. 322 do CPC/73, dispondo que:

Art. 346.  Os prazos contra o revel que não tenha patrono nos autos fluirão da data de publicação do ato decisório no órgão oficial.

Parágrafo único.  O revel poderá intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontrar.

2.3 OUTROS EFEITOS DECORRENTES DA REVELIA

Alguns doutrinadores como Didier e Daniel Amorim Assumpção enumeram outros dois efeitos decorrentes da revelia. São eles: a preclusão em desfavor do réu do poder de alegar algumas matérias de defesa e a possibilidade de julgamento antecipado da lide.

Nos termos do art. 300 do CPC[18], compete ao réu alegar toda a matéria de defesa na contestação, sob pena de preclusão, ressalvadas as alegações a direito superveniente, as questões de ordem pública e as que, por expressa disposição legal, puderem ser formuladas a qualquer tempo e juízo (art. 303, CPC). [19]

A preclusão da matéria de defesa, com as ressalvas do art. 303 do CPC, se apresenta, portanto, como um invariável efeito da revelia.

Quanto à possibilidade de julgamento antecipado da lide (art. 330, CPC[20]), Leonardo Carneiro da Cunha, em tom elucidativo, esclarece que tal efeito é decorrente da presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor: “significa que já há incontrovérsia, não havendo mais necessidade de prova.”[21]

Como leciona Assumpção, “esse efeito na realidade é uma mera consequência da geração do efeito principal da revelia.”[22]

Explicando melhor:

[...] reputando-se verdadeiros os fatos alegados pelo autor, a consequência é o julgamento antecipado da lide; enquanto não gerado esse efeito por qualquer das razões já enfrentadas, será caso de especificação de provas, o que naturalmente afasta a possibilidade de julgamento antecipado.[23]

3 A INCIDÊNCIA DOS EFEITOS DA REVELIA EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA

O instituto da revelia, considerada como a ausência jurídica de contestação, invariavelmente não possui qualquer limitação prática de incidência quando é a Fazenda pública que figura no polo passivo da relação processual. “Sendo ré a Fazenda Pública, e não apresentando contestação, é ela revel.”[24]

Necessário, todavia, perquirir quanto à produção dos efeitos da revelia, sobretudo, seu efeito material.

Inicialmente, cumpre esclarecer que não há qualquer óbice para a incidência do efeito processual da revelia aos entes públicos em juízo.

Isso porque a indisponibilidade do interesse público e a sua supremacia sobre o interesse privado não serão desrespeitadas ao se deixar de intimar a Fazenda Pública dos atos processuais após a declaração de sua revelia.

Ainda mais se levado em conta que a Administração Pública, por meio de seu procurador, pode a qualquer momento ingressar no feito e passar a atuar regularmente no processo, passando a receber ciência dos atos processuais realizados a partir do ingresso.

O que gera discussão e, em razão disso, será o objeto principal de nosso trabalho é a incidência dos efeitos materiais da revelia em face do ente público demandado.

Como já analisado, o art. 320 do CPC, em seu inciso II, preceitua que a revelia não induz a presunção de veracidade dos fatos alegados quando o litígio versa sobre direitos indisponíveis.

Dessa forma, a doutrina e a jurisprudência tendiam a afirmar que o efeito material da revelia, consubstanciado na presunção de veracidade dos fatos alegados, não ocorreria quando a Fazenda Pública estivesse no polo passivo, eis que os direitos defendidos por ela em juízo sempre seriam indisponíveis.

Arruda Alvim já enunciava que, nas ações de estado, como investigação de paternidade, conversão de separação em divórcio, ou, ainda, nas ações movidas contra as pessoas jurídicas de direito público, não há o que se falar em revelia.[25]

Corroborando tal tese, acrescenta Leonardo José Carneiro da Cunha, que, em decorrência da prevalência do interesse coletivo frente ao individual e da indisponibilidade do interesse público, exsurge a presunção da veracidade e legitimidade dos atos praticados pelas autoridades administrativas. Sendo assim, arremata o autor:

[...] os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade, de maneira que cabe ao autor, numa demanda proposta em face da Fazenda Pública [...] elidir a presunção de legitimidade dos atos administrativos, comprovando as alegações feitas na petição inicial. [26]

Nesse esteio, para ter seu pedido julgado procedente, é ônus do autor afastar a presunção de legitimidade dos atos administrativos, mediante provas constitutivas de seu direito, malgrado a Fazenda Pública tenha sido revel.

Conclui Leonardo: “sabe-se que a presunção de veracidade gerada pela revelia é relativa (...) uma simples presunção relativa não poderia ter o condão de afastar a presunção de legitimidade dos atos administrativos.”[27]

Não menos importante, mister considerar uma corrente que vem ganhando força entre a jurisprudência pátria, mitigando o entendimento detalhadamente exposto.

De início, mister trazer à baila ensinamento de Marinoni e Mitidiero, conceituando direito indisponível:

Direito indisponível é aquele que não se pode renunciar ou alienar. Os direitos da personalidade (art. 11,CPC) e aqueles ligados ao estado da pessoa são indisponíveis. O direito da Fazenda Pública, quando arrimado em interesse público primário também o é. O direito da Fazenda Pública com esteio no interesse público secundário não é indisponível.[28]

Mazza, por sua vez, esclarece o que seriam os interesses públicos secundários:

[...] interesse público secundário é o interesse patrimonial do Estado como pessoa jurídica [...] Na defesa dos interesses secundários, a Administração Pública poderia utilizar conceitos, institutos e formas próprios do Direito Privado.[29]

De posses de tais conceitos, conclui-se que, nos casos em que o interesse público secundário, definido como o interesse patrimonial da administração, está sendo discutido na lide, não há razão para considerá-lo indisponível. Afasta-se, portanto, o fundamento jurídico que impede a incidência dos efeitos materiais da revelia, apoiado na dicção legal do art. 320, II, do CPC.

Esse posicionamento conta com a acepção da 2ª Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça e será aprofundado no tópico seguinte.

3.1 O ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Há vários precedentes no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a corroborar com a tese de que não se aplica a presunção de veracidade dos fatos narrados pelo autor – efeito material da revelia - em face da Fazenda Pública. 

Nesse esteio, confira-se o seguinte aresto, julgado em outubro de 2013:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. FAZENDA PÚBLICA EM JUÍZO. EFEITO MATERIAL DA REVELIA. CONFISSÃO. NÃO APLICABILIDADE. 1. Não se aplica à Fazenda Pública o efeito material da revelia, nem é admissível, quanto aos fatos que lhe dizem respeito, a confissão, pois os bens e direitos são considerados indisponíveis. 2. Agravo regimental a que se nega seguimento. [30]

De igual modo, citam-se os seguintes julgados:  AgRg nos Edcl no REsp 1.288.560/MT, AgRg no REsp 1.137.177/SP e EDcl no REsp 724.111/RJ.

A não incidência do efeito material da revelia quando a Fazenda Pública figurasse no polo passivo da relação processual tratava-se, portanto, de posição pacífica no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, sem maiores controvérsias.

Amparava-se, pois, na tese de que os interesses defendidos pela Fazenda Pública, em qualquer situação, seriam indisponíveis, razão pela qual imperava a incidência do art. 320 do CPC.

O julgado paradigmático acerca do tema em voga partiu da 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça, tendo por relator o ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 06/11/2012.

O REsp 1.084.745/MG[31] julgou um caso em que a empresa Xerox Comercio e Industria LTDA ajuizou ação de cobrança em face do município de Monte Carmelo/MG, aduzindo ter firmado relação locatícia de equipamentos, a qual não restou adimplida, motivando a rescisão contratual.

Em razão da ausência de contestação do Município, foi decretada a revelia pelo magistrado, o qual, em julgamento antecipado da lide, considerou a incidência do efeito material da revelia e julgou a ação procedente.

Em reexame necessário, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve a sentença, em sua essência, alterando apenas capítulo concernente aos juros.

Interposto Recurso Especial, a questão alcançou o Superior Tribunal de Justiça, que, por meio do relator Ministro Salomão, suscitou a excepcionalidade da relação jurídica em litígio, a qual não merecia a aplicação da mesma ratio aos casos anteriormente julgados pelo tribunal.

Isso porque, nos processos em que a Administração Pública litiga sobre obrigações tipicamente de direito privado, a exemplo do contrato de locação, não há o que se falar em “direitos indisponíveis” para fins de incidência do art. 320, inciso II, do CPC.

Para sustentar tal posicionamento, Salomão deixou clara a existência de diferença entre os contratos administrativos – regidos pelo sistema jurídico de Direito Público - e os contratos da administração – contratos privados celebrados pela Administração Pública, subordinados ao direito comum.

Malgrado em ambos prevalecer o interesse público, é certo que, nos contratos da administração, a Fazenda atua em pé de igualdade com o particular, não havendo o que se falar em prerrogativas públicas, como as cláusulas exorbitantes.

Destarte, nas palavras do Min. Salomão:

[...] permitir uma superioridade no âmbito processual – típica das relações contratuais regidas pelo direito público (contratos administrativos) – acabaria por desnaturar a própria relação jurídica contratual firmada.[32]

Em seguida, concluiu: “afastar as consequências materiais da revelia, de forma reflexa, atinge também a relação jurídica material, uma vez que, no âmbito contratual, a Administração não está em posição de superioridade.”[33]

Mencionou também o Ministro a questão dos interesses públicos secundários, entendido como a necessidade de a Administração obter vantagens para si e cuja defesa pela administração em juízo não ensejaria a aplicação de qualquer prerrogativa pública, tese a qual nos debruçamos no capítulo 3 deste artigo.

Considerando, dessa forma, a inadimplência contratual como “uma ilegítima e deformada feição do interesse público secundário” [34], e, por ela ter sido o motivo determinante da relação processual, inevitável a incidência da revelia e seus efeitos decorrentes.

Sendo assim, a supremacia do interesse público e sua indisponibilidade não teriam o condão de afastar plenamente os efeitos materiais da revelia para o caso em análise.

Apesar do exposto, o recurso especial não foi provido. Todavia, impende esclarecer que o não provimento ocorreu exclusivamente porque a procedência do pedido não decorreu exatamente dos efeitos materiais da revelia, mas sim da preclusão incidente na prova de pagamento da obrigação (fato impeditivo do direito do autor), que cabia, in casu, à Fazenda Pública.

O indigitado entendimento é ainda isolado nas turmas do STJ, mas começa a contar com aceitação dos demais tribunais pátrios, como se vê do seguinte acórdão da lavra do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:

CIVIL. CONTRATO DE compra e venda. PACTO COMISSÓRIO. INADIMPLEMENTO. RESOLUÇÃO. PERDAS E DANOS. LUCROS CESSANTES. REVELIA. ART. 319 DO CPC. CONTRATO DE DIREITO PRIVADO. 1. Verificada a inadimplência do comprador que celebrou contrato de compra e venda com pacto comissório, nos termos do art. 1.163, do CC/16, afigura-se correta a sentença que julgou procedente o pedido de resolução contratual. 2. Ademais, quanto ao pedido de perdas e danos formulado pela CONAB, por se tratar a lide sobre direitos disponíveis, e não tendo havido contestação, presumem-se verdadeiros os fatos narrados na inicial (art. 319 do CPC), pois "os efeitos materiais da revelia não são afastados quando, regularmente citado, deixa o Município de contestar o pedido do autor, sempre que não estiver em litígio contrato genuinamente administrativo, mas sim uma obrigação de direito privado firmada pela Administração Pública" (REsp 1084745/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/11/2012, DJe 30/11/2012). Indenização devida. 4. Sentença mantida. Remessa oficial desprovida.[35]

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A revelia, conceituada como ausência jurídica de contestação, tem como principais efeitos a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor (efeito material) e a dispensa de intimação dos atos do processo (efeito processual), malgrado a doutrina aponte ainda outros efeitos dela decorrentes.

Nada obstante, há casos em que mesmo decretada a revelia não incidirão seus efeitos plenamente, como, por exemplo, quando estiver em litígio direitos indisponíveis.

Por essa razão, a jurisprudência pátria, apoiada na doutrina processualista, por muito tempo, entendeu que, em litígios nos quais a Administração Pública figurasse como ré, inaplicável seria o efeito material da revelia, eis que os bens e direitos por ela defendidos sempre seriam considerados indisponíveis.

Argumentava-se ainda que a presunção de veracidade gerada pela revelia, considerada relativa, não teria o condão, por si só, de afastar a presunção de legitimidade ínsita aos atos administrativos, do que decorre que o autor, para ter seu pedido julgado procedente, teria o mesmo ônus probandi, seja a Fazenda Pública revel ou não.

Nada obstante, ainda que não conte com aceitação ampla da doutrina e da jurisprudência pátria, filiamo-nos ao entendimento trazido pelo julgado paradigmático constante do REsp 1.084.745, da lavra da Quarta Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, tendo como relator o Ministro Luis Felipe Salomão.

O entendimento consubstancia-se, inicialmente, na separação entre contratos administrativos e contratos da Administração.

Os primeiros são regidos pelo sistema jurídico de Direito Público, sob a égide da supremacia do interesse público, materializado pela presença de cláusulas exorbitantes, entre outras prerrogativas. Enquanto os segundos são contratos de natureza privada, nos quais a administração está em posição de igualdade com o particular, a exemplo do contrato de locação, razão pela qual a presença de prerrogativas públicas desnaturaria a própria relação contratual firmada.

Disso decorre que a supremacia do interesse público, bem como sua indisponibilidade, não justificaria o afastamento por completo dos efeitos materiais da revelia nas hipóteses em que estiver em discussão contrato regido predominantemente pelo direito privado, ou seja, situações em que a administração pública não se encontra em posição de superioridade diante do particular.

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NOTAS

[1] AMENDOEIRA JR., Sidnei. Manual de Direito Processual Civil, Volume 1: Teoria Geral do Processo e Fase de Conhecimento em 1º Grau de Jurisdição. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 361.

[2] DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 5. ed. Salvador: Editora Juspodvum, 2013, v.1, p. 541.

[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 5. ed. São  Paulo: Método, 2013, p. 385.

[4] NUNES, Elpídio Donizetti. Curso Didático de Direito Processual Civil. 13ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 445.

[5] Idem.

[6] AMENDOEIRA JR., Sidnei, op. cit., p. 363.

[7] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. op. cit., p. 387.

[8] ARRUDA ALVIM, José Manoel. Manual de Direito Processual Civil. 14ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 348.

[9] Art. 320. A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: I - se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; II - se o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III - se a petição inicial não estiver acompanhada do instrumento público, que a lei considere indispensável à prova do ato.

[10] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, op. cit., loc.sit.

[11] DIDIER Jr., Fredie, op. cit., p. 521.

[12] NUNES, Elpídio Donizetti, op. cit., p. 446.

[13] DIDIER Jr., Fredie, op. cit., p. 522.

[14] DA CUNHA, Leonardo Carneiro. A Fazenda Pública em Juízo. 10a. ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 97/98.

[15] Art. 322. Contra o revel que não tenha patrono nos autos, correrão os prazos independentemente de intimação, a partir da publicação de cada ato decisório.

[16] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado. São Paulo: Atlas, 2004, p. 974.

[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 231. Disponível em: <http://www.dji.com.br/normas_inferiores/regimento_interno_e_sumula_stf/stf_0231.html>.

[18] Art. 300. Compete ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir.

[19] Art. 303. Depois da contestação, só é lícito deduzir novas alegações quando: I - relativas a direito superveniente ;II - competir ao juiz conhecer delas de ofício; III - por expressa autorização legal, puderem ser formuladas em qualquer tempo e juízo.

[20] Art. 330. O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença: II - quando ocorrer a revelia (art. 319)

[21] DA CUNHA, Leonardo Carneiro, op. cit., p. 100.

[22] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, op. Cit., p. 391.

[23] Idem.

[24] DA CUNHA, Leonardo Carneiro, op. cit., p. 97.

[25] ARRUDA ALVIM, José Manoel, op. cit, p. 347.

[26] DA CUNHA, Leonardo Carneiro, op. cit, p. 99.

[27] Idem.

[28] MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme. Código de processo civil: comentado artigo por artigo. São Paulo: RT, 2009, p. 326.

[29] MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

[30] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp: 1170170 RJ, Rel. Ministro Og Fernandes. Data de Julgamento: 01/10/2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&processo=1170170&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO> Acesso em: 10 set. 2014.

[31] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 1084745, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão. Data de Julgamento: 06/11/2012. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&processo=1084745&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO> Acesso em: 10 set. 2014.

[32] Idem.

[33] Idem.

[34] Idem.

[35] BRASIL. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL 1ª Região. REO: 9517/GO, Rel. Juiz Federal Márcio Barbosa Maia. Data de Julgamento: 19/03/2013. Disponível em: <http://trf-1.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23094568/remessa-ex-officio-reo-9517-go-20003500009517-9-trf1> Acesso em: 10 set. 2014.

Sobre o autor
Eduardo Araujo Rocha Ximenes

Analista Processual do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-UNIDERP. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará.

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