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Direitos humanos e cultura: uma análise segundo o pensamento de pluralidade de Hannah Arendt

Agenda 08/05/2016 às 16:42

Nas questões de direitos humanos, é sempre necessário que se leve em consideração o respeito à diversidade cultural.

Resumo: A cultura representa a expressão da diversidade da condição humana. Ela compreende todas as ideias, os comportamentos, o conhecimento, a arte, as crenças, as leis, a moral, os costumes e os padrões de conduta aprendidos, adquiridos e transmitidos pelos indivíduos em sociedade. Como representação de um complexo social é possível ser observada nos mais distintos povos, variáveis manifestações culturais, assim a diferença é um pressuposto básico à cultura e está presente no processo histórico de todas as sociedades. Dessa maneira, seria possível inferir que na atual concepção de mundo faz-se necessário, nas relações de Direitos Humanos e cultura, uma análise que leve em questão o respeito à diversidade cultural. No entanto, no âmbito do Direito Internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, adotou uma concepção universalista. O presente trabalho pretende analisar, através de pesquisas bibliográficas, a relação entre Direitos Humanos e Cultura na obra de Hannah Arendt, destacando a concepção de pluralidade da condição humana e a possível antinomia existente entre o ideal de Direitos Humanos universais e a efetivação do direito a diversidade cultural.

Palavras-chave: Direitos Humanos, Cultura, Hannah Arendt.


Introdução

O termo cultura possui significado amplo, pode representar a expressão do ser humano, seus comportamentos e seus feitos, compreendendo aquilo que é comum, aprendido ou perpassado para os demais indivíduos de determinado âmbito social.

Ela abrange as crenças, as ideias, as atitudes, os valores, as normas, os costumes, a moral, o conhecimento, a arte, a conduta dos indivíduos em sociedade, dentre as mais plurais manifestações da condição humana.

Sendo a cultura não apenas um aspecto da existência humana, mas uma condição essencial para ela, pois não é possível uma natureza humana sem manifestação cultural, fez-se necessário uma proteção do direito a diversidade cultural.

A proteção desses direitos considerados essenciais, como a cultura, foi legitimada pela busca da efetivação dos Direitos chamados Humanos, inerentes aos indivíduos por estes possuírem a dignidade humana. A história dos Direitos Humanos é longa e marcada por inúmeros percalços, mas só após o período da Segunda Guerra Mundial, diante das atrocidades cometidas pelo nazismo que os direitos humanos ganharam destaque no âmbito internacional. Houve uma globalização e internacionalização da proteção a esses direitos, dentre uma vasta gama de direitos que são inerentes ao homem, o direito a diversidade cultural ganhou destaque. A proteção do direito as diferentes manifestações culturais e a busca pela sua efetividade foi abordada segundo duas perspectivas: a universalista e a multiculturalista.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 propôs a proteção universal ao direito à cultura e suas multiplicidades. No entanto, questiona-se se seria possível adotar uma perspectiva universal, ao passo que vivemos em um mundo com relações multiculturais.

Ao longo do presente trabalho, pretende-se analisar a relação entre os Direitos Humanos e a cultura através dos pensamentos de Hannah Arendt. Dando enfoque a construção das concepções de Direitos Humanos para a autora. Além de refletir sobre a possível antinomia entre os Direitos Humanos universais e a concepção multicultural de mundo através da compreensão de pluralidade da condição humana e de humanidade adotadas pela filosofa.


A cultura e os Direitos Humanos

A cultura é a expressão da diversidade do homem e de suas pluralidades. Ela não representa um acessório a existência, mas é algo inerente ao ser humano, como ensina Geertz (1973, p.46 e 49) a "cultura não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela (...). Não existe algo como uma natureza humana independente de cultura ”a cultura pode ser analisada, sob vários enfoques, como ensina Marconi e Presotto (2011, p. 54) :

São ideias (conhecimento e filosofia); crenças (religião e superstição); valores (ideologia e moral), normas (costumes e leis); atitudes (preconceito e respeito ao próximo); padrões de conduta (monogamia, tabu); abstrações do comportamento (símbolos e compromisso); instituições (família e sistemas econômicos); técnicas (artes e habilidades) ; e artefatos ( machado de pedra, telefone)

Ela compreende todos os aspectos da condição humana, sejam eles os padrões de conduta aprendidos, adquiridos ou transmitidos pelos indivíduos em sociedade. Segundo Hall (2003, p. 43):

A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar.

De acordo com a perspectiva de Hall, os indivíduos “tornam-se” seres culturais, a cultura é uma produção do ser humano, inerente à condição humana e, que pelas tradições transforma o individuo como uma espécie de metamorfose em que existe uma transfiguração de mão dupla na qual mudamos a cultura e ela nos modifica profundamente, agindo como parte integrante do nosso ser e dignidade. Dessa maneira, a cultura é algo intrínseco aos indivíduos, essencial a dignidade da pessoa humana e, consequentemente, imperiosa para efetivação dos Direitos Humanos.

A busca pelo reconhecimento, efetivação, implantação e manutenção dos chamados Direitos Humanos talvez seja um dos grandes problemas da humanidade. A construção histórica dos Direitos Humanos é longa e permeada de dificuldades, seja em sua implantação até a sua própria concepção.

Nesse sentido, Bobbio (1992) distingue três fases na história da formação das declarações de direitos, a primeira fase pode ser identificada nas obras filosóficas que sustentavam que o homem possuía direitos considerados naturais, sendo que no momento em que as teorias filosóficas são reconhecidas por um legislador, como ocorreu através da Declaração de Direito dos Estados Norte-americanos e com a Declaração Francesa, estabeleceu-se a formação de um sistema de valores; a segunda fase representa a efetivação dos direitos através da positivação de direitos que possuem validade dentro de um determinado Estado e a terceira fase que teria sido alcançada através da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, sendo que tais direitos tinham um caráter universal, não ficando limitado apenas a um Estado.

Para Bobbio, as três fases demonstram a transição de uma universalidade abstrata, passando por uma fase marcada pela particularidade concreta e concluindo com a universalidade concreta dos direitos fundamentais positivos, através da Declaração Universal da ONU de 1948.

Após a Segunda Guerra Mundial a dignidade da pessoa humana e os Direitos Humanos são colocados como paradigmas a serem cumpridos e preservados no âmbito internacional, assim dispõe Piovesan (2010, p. 118) “a dignidade humana, foi fundamento básico dos direitos humanos e valor intrínseco à condição humana, é concepção que, posteriormente, viria a ser incorporada por todos os tratados e declarações de direitos humanos”.

Diante das atrocidades cometidas pelo nazismo em busca da “perfeição” da raça ariana e a tentativa de excluir tudo que fosse diferente, inclusive as multiplicidades culturais, fez-se necessário à criação de mecanismos para a preservação desses Direitos Humanos.

Dessa maneira, ocorreu à criação da Organização das Nações Unidas e a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, os países participantes tinham como objetivo principal promoverem a internacionalização dos Direitos Humanos, ou seja, torná-los globais e universais. Os direitos considerados inerentes a todos os seres humanos e essenciais para a dignidade da pessoa deveriam ser acessíveis aos mais distintos povos nas mais longínquas localidades do mundo.

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A Declaração resgatou os ideais da Revolução Francesa de igualdade, liberdade e fraternidade, mas agora em âmbito internacional. A busca pela igualdade nas relações teve destaque, nesse sentido esclarece Comparato (2010, p. 240):

Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948 representa a culminância de um processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, como se diz em seu Art II , e esse reconhecimento universal da igualdade humana só foi possível quando ao término da mais desumanizadora guerra de toda a história, percebeu-se que a ideia de superioridade de uma raça, de uma classe social, de uma cultura ou de uma religião, sobre todo as demais põe em risco a própria sobrevivência da humanidade.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos visava um alcance universal desses direitos, além de inovar ao consagrar que os direitos inerentes à condição humana compõe uma unidade indivisível, independente e inter-relacionada, na qual os direitos civis e políticos hão de ser conjugados com os direitos econômicos, sociais e culturais. A declaração de 1948 é caracterizada, essencialmente, pela sua amplitude e universalidade; nesse sentido Piovesan (2011) citando Cassin dispõe:

Esta Declaração se caracteriza , primeiramente, por sua amplitude. Compreende um conjunto de direitos e faculdades sem as quais o ser humano não pode desenvolver a sua personalidade física, moral e intelectual. Sua segunda característica é a universalidade: é aplicável a todas as pessoas, de todos os países, raças, religiões e sexos, seja qual for o regime politico dos territórios nos quais incide

Dessa maneira, buscando uma universalidade dos direitos humanos incluindo o direito a cultura, a Declaração Universal dos Direitos Humanos propôs a proteção universal da diversidade cultural. Nesse sentido, Trindade (1997, p.416) afirma:

A universalidade dos direitos humanos decorre de sua própria concepção, ou de sua captação pelo espírito humano, como direitos inerentes a todo ser humano, e a serem protegidos em todas e quaisquer circunstâncias. Não se questiona que, para lograr a eficácia dos direitos humanos universais, há que tomar em conta a diversidade cultural.

Apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 ter adotado uma perspectiva universal, faz-se necessário analisar a concepção multicultural desses direitos, visto que existem inúmeras divergências quanto à abrangência e efetividade da proteção a diversidade cultural de maneira universal, pois na contemporaneidade vivemos em um mundo essencialmente dinâmico, multicultural e plural e essa aplicação universal dos direitos humanos, por vezes, não assiste de maneira devida a preservação e perpetuação da cultura.


Os aspectos universais e multiculturais do direito à diversidade cultural.

Após o período da Segunda Guerra Mundial, com a criação da Organização das Nações Unidas e a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, surgiu no mundo a discussão sobre a possibilidade da proteção eficaz do direito a diversidade cultural. Tal direito poderia ser adotado segundo duas perspectivas: a universalista e a multiculturalista dos Direitos Humanos.

A concepção universalista elenca que os Direitos Humanos decorrem da dignidade da pessoa humana, dessa maneira seria um valor intrínseco à condição humana. Nesse sentido Melo (2010) ensina que de acordo com a concepção universalista, independentemente do contexto histórico, geográfico, político ou socioeconômico, existem normas que são universais, funcionam como padrões mínimos de proteção aos Direitos Humanos que possibilitam a existência e a defesa destes direitos no âmbito internacional, sendo que estes direitos são reconhecidos por diversos Estados que os ratificam por meio de tratados internacionais.

Esse ideal de Direitos Humanos Universais foi reforçado pela Declaração de Viena de 1993 na Conferência Mundial de Viena. Podendo ser elencado no parágrafo 50 da Declaração:

Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente, de maneira justa e equânime, com os mesmos parâmetros e com a ênfase. As particularidades nacionais e regionais e bases históricas, culturais e religiosas devem ser consideradas, mas é obrigação dos Estados, independentemente de seu sistema político, econômico e cultural, promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

Na defesa da aplicação dos Direitos Humanos Universais, Bobbio ( 1992. p 25,26) dispõe:

A questão dos direitos humanos na atualidade não reside na analise dos seus fundamentos por diferentes argumentos , mas sim no debate sobre a sua eficácia e a respeito dos mecanismos institucionais necessários para assegurar as garantias dos direitos fundamentais da pessoa humana. Os fundamentos sendo necessariamente divergentes não poderão constituir-se em argumentos que unifiquem e justifiquem universalmente os direitos humanos. Direitos humanos seriam, assim, princípios que perpassariam diversas culturas e somente poderiam ser aceitos, como direitos na medida em que fossem aceitos por diferentes culturas e sistemas jurídicos.

Na perspectiva atual, um dos principais objetivos dos adeptos da concepção universalista dos Direitos Humanos é combater a prática de toda e qualquer prática que venha ferir a dignidade da pessoa humana ou qualquer tipo de afronta ao chamado “mínimo ético irredutível”. Impondo uma espécie de imperialismo cultural do mundo ocidental, que busca universalizar não apenas a dignidade da pessoa humana, mas também as práticas culturais dos mais distintos povos.

Em contrapartida, para os multiculturalistas, a diversidade cultural em toda sua complexidade deve ser analisada segundo o contexto em que está inserida, buscando ponderar que os direitos humanos, engendrados no bojo de uma tradição liberal-burguesa, não estão mais centrados nos direitos individuais, mas incluem direitos sociais, econômicos e culturais, como dispõe Wolkmer (2006) citando Stavenhagen. Dessa maneira, para que ocorra a efetiva proteção aos Direitos Humanos, em especial as pluralidades culturais faz-se necessário observar as peculiaridades de cada cultura. Sob esse aspecto Boaventura de Souza Santos esclarece:

Os direitos humanos têm que ser reconceptualizados como multiculturais. O multiculturalismo, tal como eu entendo, é precondição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma politica contra- hegemônica de direitos humanos no nosso tempo. Na medida que todas as culturas possuem concepções distintas de dignidade humana, mas são incompletas, haver-se-ia que aumentar a consciência dessas incompletudes culturais mútuas, como pressuposto para um dialogo intercultural. A construção de uma concepção multicultural dos direitos humanos decorreria desse dialogo multicultural.

A concepção multiculturalista admite que para a efetiva proteção aos Direitos Humanos são necessárias politicas que levem em consideração à diversidade, a pluralidade, as multiplicidades culturais com o intuito principal de proteger aos grupos socialmente vulneráveis no âmbito internacional.

Dessa maneira, acredita-se que para a efetivação dos Direitos Humanos seja necessário um maior respeito à diversidade reconhecendo a pluralidade alheia, outro aspecto importante é estabelecer um dialogo e a abertura entre as mais distintas formas de cultura.

Visto a importância do assunto e da dificuldade de se estabelecer uma concepção de Direitos Humanos eficaz, que proteja a diversidade cultural e preze pela dignidade da pessoa nas mais plurais particularidades da condição humana, é de imperiosa relevância analisar a relação entre os direitos humanos e a cultura sob os mais distintos âmbitos, seja no estudo do direito internacional, nas ciências politicas, na história e na filosofia.


Direitos Humanos e cultura: uma analise segundo o pensamento de pluralismo de Hannah Arendt

Hannah Arendt foi uma das maiores pensadoras de todos os tempos, em sua filosofia ela analisou o homem e sua interação com o mundo, sobretudo os indivíduos diante da sua condição humana. Na sua obra A Condição Humana (1958), ela propõe e estuda os conceitos inerentes a tal condição, são eles: a ação, a liberdade e igualdade perante o ideal de dignidade que é a fonte dos Direitos Humanos.

Conforme Arendt, os Direitos Humanos, declarados no século XVIII, possuem problemas já em sua própria fundamentação, a própria Declaração dos Direitos do Homem representou a previsão da emancipação do homem, ao passo que naquele momento a o fato de possuir a condição humana e ser dotado de dignidade propiciou que o homem fosse à fonte da lei. Assim, o individuo não estava limitado às regras provenientes de uma divindade, nem da vontade de um soberano, o homem havia se libertado de qualquer tutela era dotado de direitos simplesmente por ser humano. No entanto, como dispõe Arendt (1906-1975. p, 324) “mal o homem havia surgido como ser completamente emancipado e isolado, que levava em si mesmo a sua dignidade, sem referência a alguma ordem superior que o importasse, diluía-se como membro de povo”, visto que “surgia um paradoxo contido na declaração dos direitos humanos inalienáveis: ela se referia a um ser humano “abstrato” , que não existia em parte alguma”.

Nesse sentido, a concepção de Direitos Humanos que emanam do homem ou da condição humana, de um ser que é abstrato e não definível, opõe-se a condição humana de pluralidade, essencial a ação humana. Hannah (1906- 1975. p 16) define pluralidade como: “A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmo, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha existir”, diante desse conceito fica evidente que é requisito da condição humana a premissa de singularidade, em que os humanos são indivíduos dotados de características especificas e únicas. O ser diante da sua humanidade, não pode ser delimitado por concepções universais, visto que possuí peculiaridades inerentes a sua existência.

Sob esse aspecto, a própria estruturação dos Direitos Humanos na ideia de homem, abstrata e universal, que exclui qualquer particularidade e singularidade dos indivíduos que existem no mundo real, vai de encontro à própria atividade dignificadora do ser humano denominado pela autora de a ação. Brito (2006) destaca que:

“ A ação é política em sua natureza, pois é a interação peculiar do ser humano concreto e singular com outros homens tão concretos e diversos quanto existem em uma comunidade real. E é precisamente por essa característica que cada indivíduo, concreto e singular, emana dignidade; porque é único, e não uma cópia homogênea e substituível de uma natureza genérica.”

Dessa maneira, na perspectiva arendtiana, os Direitos Humanos, perdem o próprio sentido de dignidade, visto que deveriam ser um reflexo da dignidade da pessoa humana, pensados e dispostos em harmonia com a pluralidade humana, não de maneira universal.

A discussão entre a ideia de Direitos Humanos universais frente à diversidade cultural pode ser analisada sob o pensamento de pluralidade elencado por Hannah Arendt. A cultura é algo inerente ao ser humano, esta enraizada na nossa condição humana e, nós humanos somos seres condicionados, como dispõe a filosofa ( 1906-1975. p,17) :

Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição para a sua existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam seus autores humanos.

Diante do exposto, é possível elucidar que as expressões culturais são essenciais para a condição humana. Sendo a cultura produção do homem e fruto de sua atividade no âmbito social, é essencial aos indivíduos, indispensável à dignidade da pessoa humana e, consequentemente, imperiosa para efetivação dos Direitos Humanos. Ou seja, a cultura é condição da existência humana, Arendt (1906-1975. p, 17) esclarece que :

Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas os homens criam as suas próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana.

A cultura sendo criação humana, expressão da originalidade do indivíduo, dotada de caráter e condição da existência, pois, é demonstração da pluralidade de cada individuo deve ser protegida. Sob esse aspecto, seria função primordial dos Direitos Humanos zelarem pela efetivação e realização das multiplicidades culturais, no entanto, a sua atual concepção universal vai contra o ideal de pluralidade; em que somos dotados de características únicas, personalíssimas, assim, a eficácia de tais direitos não é alcançada.

Em sua obra enfatiza que o direito fundamental de cada indivíduo, antes de qualquer um dos direitos enumerados em declarações, é o direito a ter direitos, isto é, o direito de pertencer a um comunidade disposta e capaz de garantir-lhe qualquer direito. Dispõe também que para a efetividade das declarações, leis, normas e todo documento em que o poder seja perpetuado às palavras devem está em harmonia com os atos, esclarece Arendt (2011. p, 64) que:

E o poder não pode ser armazenado e mantido em reserva para casos de emergência, como os instrumentos de violência: só existe a sua efetivação. O poder só é efetivado enquanto palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções mas para revelar realidades , e os atos não são usados para violar e destruir , mas para criar relações e novas realidades

Assim, para que ocorra uma efetividade da Declaração Universal dos Direitos Humanos, faz-se necessário que o conteúdo do documento esteja de acordo com a realidade fática para que a cultura como condição do homem e as diversidades culturais como expressão da humanidade sejam preservadas, o conteúdo da Declaração não deve ser utilizado para mostrar o domínio dos países pertencentes a ONU contra as demais nações e culturas, mas para expor a realidade do mundo que é uma realidade plural. Dessa maneira, os atos devem ser utilizados para criar uma nova e melhorada perspectiva entre os embates culturais e a condição atual de Direitos Humanos universais, pois tal concepção não leva em questão as multiplicidades da condição humana e da sua multiplicidade cultural.

Para solucionar os problemas decorrentes da real efetividade dos Direitos Humanos, visto que o universalismo não está apto, Hannah Arendt propõe que deve ser estabelecido o ideal de humanidade, que possui como finalidade o estabelecimento de uma humanidade comum, que deve englobar todos os seres humanos e se caracterizar precisamente por ser um conjunto de elementos diversos. Sobre esse aspecto elucida Brito (2006) :

Tal forma de conceber a humanidade é um caminho para superar os problemas levantados pela forma tradicional de se lidar com os direitos humanos. Esses deixam de se embasar em uma ideia abstrata e contrária à condição do ser humano, adquirindo uma abrangência que visa envolver cada homem particularmente. Esse envolvimento, por sua vez, impõe o compromisso de se fazer parte dessa comunidade abrangente. Cada homem é responsável por pertencer à humanidade, pois todas as suas ações atingirão à totalidade de pessoas de que faz parte, e serão reflexos de si mesmo. Cada homem é, por isso, solidário na responsabilidade comum e recíproca. A dignidade de se pertencer a comunidade traz consigo, categoricamente, responsabilidade, porque dignidade e responsabilidade são correlatas

Diante do ideal de humanidade elucidado pela autora, a dignidade humana e os Direitos Humanos, tornam-se questões politico práticas; ou seja, são essenciais para a construção de uma comunidade em que ocorra a garantia da expressão cultural de cada individuo . No entanto, a necessidade dessa construção em uma sociedade cultural engloba a totalidade dos seres humanos, coexistindo com a permissão e a possibilidade da ação de cada um de seus componentes para a que dessa maneira ocorra a efetivação dos direitos a diversidade cultural.


Considerações finais

A cultura é um fenômeno fundamental para o desenvolvimento da condição humana, elementar para a formação da identidade dos indivíduos, inerente a dignidade da pessoa e essencial para o desenvolvimento das potencialidades dos homens em sociedade. Assim, a preservação e perpetuação da cultura considerada como Direito Humano são protegidas pela ONU e estão dispostas na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

A Declaração adota uma concepção universalista, quanto à interação dos Direitos Humanos em determinada cultura, que por vezes não respeita o contexto histórico, geográfico, politico, ou socioeconômico, em inúmeros casos é imposta as culturas diversas e possui o pressuposto para justificar os processos de dominação de determinados povos em relação a outros, centrados apenas na tutela de direitos civis e políticos, revelando-se ultrapassados frente a um mundo multicultural.

A perspectiva multiculturalista está em maior consonância com a realidade de mundo intercultural em que vivemos, visto que na atualidade existe uma ampliação dos direitos considerados inerentes aos seres humanos, que passam a incorporar os direitos econômicos, sociais e culturais, segundo uma perspectiva integral, local e intercultural.

Quanto à relação Direitos Humanos e cultura, a filosofia de Hannah Arendt contribui para analise de tal tema sob um enfoque distinto, observando as concepções da condição humana e de pluralidade. Isso permite um estudo mais profundo segundo os distintos aspectos que vão além das simples concepções das normas. Observando que a pluralidade nos atribui caráter de diferença, ter a condição humana torna os seres distintos de tudo que já existiu, exista ou venha existir, sob o pressuposto que a cultura é atributo da pessoa e essencial a sua dignidade, deve ser preservada. Hannah Arend, também contribui na analise da efetividade dos documentos que legitimam a aplicação dos direitos humanos no âmbito internacional e propõe o ideal de humanidade em contradição ao universalismo adotado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Diante do estudo das relações existentes entre os Direitos Humanos e as multiplicidades culturais, faz-se necessário, atualmente, compreender a ideia que todas as culturas possuem a sua concepção de dignidade e que todas elas devem ser respeitadas, buscando um equilíbrio entre os pressupostos elencados na Declaração de 1948, a interpretando de maneira ponderada, procurando o enriquecimento das pluralidades culturais, em que exista o respeito às diferenças culturais de cada sociedade, a redução das desigualdades e a inclusão dos diversos povos e culturas no âmbito internacional de proteção aos direitos.

Assim, as politicas de direitos humanos devem, por meio de diálogos com as diversas culturas, buscar alternativas para a transformação da normatividade jurídica internacional que tornem os direitos humanos legítimos e aplicáveis a todas as realidades sociais, protegendo a dignidade da pessoa segundo a perspectiva cultural em que está inserida.


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WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Sequência, n.53, dezembro/ 2006.

Sobre a autora
Betânia Gusmão Mendes

Advogada sócia do escritório Mota & Gusmão. Graduada em Direito pelas Faculdades Santo Agostinho, Montes Claros- MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Betânia Gusmão. Direitos humanos e cultura: uma análise segundo o pensamento de pluralidade de Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4694, 8 mai. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45526. Acesso em: 7 nov. 2024.

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