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Reflexões...

Agenda 29/12/2015 às 15:50

Que futuro esperar de crianças jogadas nas ruas, relegadas à própria sorte?

A leitura recente de uma sentença onde o magistrado, à época da decisão, citou um trecho da reportagem “As mães reféns do crack”, publicada na revista Veja, salvo engano em 2011, para fundamentar sua decisão e condenar o réu por tráfico de drogas e associação para o tráfico, serviu-me de motivação para escrever este texto e compartilhar uma das experiências mais trágicas que vivenciei no Poder Judiciário.

            Reconheço que um dos maiores choques de realidade que recebi, se deu nos primeiros meses após minha aprovação no processo seletivo do Tribunal de Justiça, quando fui enviado para trabalhar na Vara Criminal de uma Comarca no interior do Estado. Seja pela natureza dos crimes, muitos deles bárbaros e repugnantes, ou pela disparidade existente entre a realidade dos livros e a realidade da vida, o fato é que levei algum tempo até me adaptar totalmente. De qualquer modo, nada chamou mais minha atenção do que o número de processos por tráfico e outros crimes cometidos em seu contexto, principalmente contra o patrimônio e contra a vida. No último caso, quase sempre cometidos por dívidas ou disputas por pontos de venda, entre facções rivais. Particularmente, acredito que as drogas, com especialidade crack, sejam as maiores propulsoras da criminalidade.

            A pedra, na linguagem de usuários e traficantes, é responsável por uma enormidade de vidas destruídas, de sonhos despedaçados, de famílias desfeitas e, lógico, de crimes, muitos crimes praticados em nome do comércio e do vício. Por isso, a motivação do narcotráfico sempre se traduziu para mim de forma especialmente inumana, porquanto busca auferir lucro com a desgraça alheia, pouco importando se os efeitos da droga e o vício destituirão um semelhante de todo e qualquer traço dignidade.     

            Pois bem, uma das principais distinções entre o funcionamento da justiça criminal e as outras áreas são as urgências que chegam diariamente e que precisam ser apreciadas e decididas imediatamente devido à sua própria natureza imperativa. Incluem-se nesse rol a homologação de prisão em flagrante, a concessão de medidas protetivas de urgência, os pedidos de revogação ou decretação de prisão preventiva, dentre outras que devem ser analisadas com celeridade. A partir do momento em que as urgências são recebidas na secretaria, são prontamente distribuídas na assessoria para que sejam tomadas as providências cabíveis. E foi assim que uma prisão em flagrante acabou caindo em minhas mãos. Tratava-se de um velho conhecido, ou como se diz popularmente, uma “figurinha carimbada” naquele Juízo Criminal.

            Delinquente contumaz, desde a pré-adolescência praticava roubos e furtos. Para que se tenha uma noção, pesavam contra ele nada menos do que seis execuções de medidas socioeducativas, resquícios dos seus tempos de menor em conflito com a lei, o que equivaleria a seis execuções penais, se fosse maior de idade quando sentenciado.

            Todavia, mesmo com um histórico tão ruim, o réu, tragicamente, também era vítima: nascido em meio a uma pobreza absurda, era o mais velho de cinco irmãos, todos negligenciados pelos pais desde a mais tenra infância. A fome, o abandono e os maus tratos eram companheiros permanentes. Logo, descobriu nas ruas uma forma alternativa de sobrevivência. Infelizmente – ou seria melhor dizer inevitavelmente? – também descobriu o mal. Aos onze veio o álcool e a partir daí as portas do inferno se abriram: cola de sapateiro, maconha, cocaína e finalmente a pedra, que o escravizou de tal modo que os últimos anos de sua vida tinham se resumido a encontrar meios para alimentar um vício insaciável. Realizou pequenos trabalhos, aplicou pequenos golpes, roubou... Fez de tudo um pouco para satisfazer uma vontade que não se consegue satisfazer. A realidade das ruas é dura, e o crack exige mais, sempre mais.

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            Dormia pelas ruas, abrigado por baixo das marquises de lojas no mercado municipal. Dos pais, pouco lembrava. Às vezes ia ao barraco onde moravam, mas nunca era bem recebido, já que sua chegada se traduzia no furto de qualquer coisa que pudesse ser trocada por uma pedrinha.

            Uma prática comum entre os traficantes é oferecer aos viciados uma dose diária como “recompensa” pela venda de certa quantidade de droga. Uma espécie de cativeiro nefasto, sem correntes ou grades visíveis, mas nem por isso uma prática menos atroz. Dependentes transformam-se em zumbis, que passam as noites em vigília, perambulando pelas zonas de consumo – ou cracolândias – à procura de outros viciados, no intuito de arrecadar a quantia exigida para sua própria dose. Ocorre que esse comércio é regido por regras brutais: a perda de uma pedra pode ser interpretada como roubo e resultar em espancamentos. E se o roubo for confirmado então, é praticamente uma sentença de morte. E foi assim que ele quase perdeu a vida, ao tentar ser mais esperto do que o “patrão”.

            Com seus recém-completos 19 anos, havia saído do presídio apenas três dias antes da nova prisão em flagrante, após o Ministério Público requerer a revogação de sua prisão preventiva, e o juiz deferir o pleito por entender que o seu caso era de internação para tratamento e não de prisão. Concordo. Porém, a disparidade entre a realidade dos livros e a realidade da vida citada anteriormente, se concretizou na inexistência de estabelecimento adequado para sua internação na Comarca. Outra vez nas ruas, compelido pelo vício, realizou uma série de assaltos até ser preso de novo, com dois adolescentes, um deles seu irmão também viciado.

            Diante de tal situação, formou-se um dilema: o que fazer? Estava mais do que comprovado que em liberdade, voltaria a praticar crimes, representando perigo real tanto para a sociedade quanto para si mesmo, em razão dos desafetos que conquistou na “vida louca”. Definitivamente, seu lugar não era nas ruas... nem na prisão.

            É pacífica a doutrina quanto à inimputabilidade por embriaguez – desde que não seja preordenada – entendendo-se esta como um estado de intoxicação provocada pela ingestão de álcool ou outra substância de idêntico efeito. A embriaguez patológica, portanto, dependendo do caso concreto, gera inimputabilidade ou redução de pena. Nesse aspecto, reforço meu posicionamento citando Rogério Sanches Cunha, em sua obra Manual de Direito Penal, Parte Geral: “patológica é a embriaguez doentia, que, conforme o caso concreto, pode ser tratada como anomalia psíquica, gerando a inimputabilidade do agente ou redução de sua pena, nos moldes do art. 26 do Código Penal”. Exatamente por isso, a Lei de Execução Penal dispõe que o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico é destinado aos inimputáveis e semi-imputáveis. Seria a solução ideal, se o Hospital de Custódia do Estado não estivesse lotado. Aliás, como todo o sistema carcerário brasileiro, diga-se de passagem.

            Pelos seus inúmeros interrogatórios em juízo, restava comprovado que ainda possuía capacidade de entendimento, mas era incapaz de se autodeterminar, pois estava constantemente drogado, ou melhor, patologicamente drogado e precisando fumar cada vez mais, já que “a lombra” passava rápido. A situação era tão calamitosa que ele mesmo, ainda na delegacia, pediu para não ser solto, pois em suas próprias palavras “se saísse ia roubar de novo pra fumar pedra”. Fatalmente terminaria como outro jovem em condições similares, executado a tiros, meses antes, por traficantes da região em que morava, num desses chamados acertos de contas.

            Após longo debate e exposição dos fatos ao juiz substituto que cobria as férias do titular e aos representantes do Ministério Público e da Defensoria, conclui-se que não havendo outra saída o melhor seria mantê-lo preso, mesmo contrariamente ao que dispõe a lei, e instaurar o incidente de insanidade mental, para então interna-lo no Hospital de Custódia e Tratamento assim que surgisse vaga disponível. E assim foi feito.

            Peço desculpas por ter abandonado momentaneamente minha linha de publicação. Talvez eu tenha escrito esse texto como um desabafo, ou um grito de revolta. Às portas de um novo ano que se inicia e diante de tamanho quadro de instabilidade e abandono no Brasil, reflito sobre o futuro e as sobre perspectivas que tantos jovens em igual condição podem esperar. A epidemia de crack que assola o país poderia ser contida através da inclusão social. No entanto, esbarramos em constantes desrespeitos aos direitos da população, sobretudo a mais carente e necessitada de auxílio. E enquanto milhões são saqueados dos cofres públicos e milhares de brasileiros em situação de tragédia padecem, em meio ao caos, o gigante continua em sono profundo...

Sobre o autor
Robson Souto

Servidor do TJSE, autor de obras jurídicas.

Informações sobre o texto

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