O Governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), o ex-Governador do Ceará, Ciro Gomes (PDT), e o Presidente Nacional do PDT, Carlos Lupi, lançaram uma nova versão da histórica “Rede da Legalidade”. Agora, a iniciativa busca reunir forças contra o processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, qualificado como tentativa de golpe. O mesmo discurso é realizado por petistas e governistas de várias matizes.
É preciso destacar que o processo de impeachment está expressamente previsto na Constituição diante da prática de eventuais crimes de responsabilidade (art. 85), detalhados na Lei n. 1.079, de 1950. O afastamento do Presidente da República depende da admissão da acusação por dois terços da Câmara dos Deputados (art. 86), uma quantidade de votos superior a exigida para uma mudança na própria Constituição (art. 60, parágrafo segundo). Assim, sem elementos robustos e uma sintomática ausência de mínima sustentação político-parlamentar não prospera um pedido de impeachment. O atual pedido foi apresentado por juristas renomados e conta com uma narrativa político-jurídica consistente. Não é, por óbvio, uma tentativa de golpe. Somente uma provocação completamente vazia, sem a menor condição de ser aceita e tramitar; poderia ser qualificada de tentativa de golpe contra o eleito e, portanto, contra a democracia.
Nesse caso específico, a abertura do processo de impeachment decorre de um ato de vingança, inserido numa sucessão de chantagens, pressões e ameaças, do Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Trata-se de uma das figuras mais reprováveis do mundo político, artífice de uma série de medidas retrógradas que buscam reforçar os mecanismos de opressão e aviltar as já difícil situação de várias minorias sociais, estando profundamente envolvido com uma considerável quantidade de condutas escusas. Entretanto, essas circunstâncias, relacionadas com as motivações e o perfil do personagem responsável pela abertura do processo, não afastam a necessidade de análise dos argumentos postos na denúncia.
A análise estritamente jurídica desse pedido de impeachment não é das mais simples. Com efeito, a problemática das “pedaladas fiscais” reclama uma verificação cuidadosa, com boa quantidade de tempo e reflexão acerca da consumação de eventuais irregularidades com densidade para caracterização como crime de responsabilidade (art. 10, item 9, da Lei n. 1.079, de 1950).
Existe, entretanto, uma perspectiva de análise do processo de impeachment muito mais importante para a sociedade brasileira. Vejamos os dois cenários possíveis.
1. Derrotado o impeachment.
Teremos a manutenção de Dilma e seu projeto político a serviço das elites socioeconômicas nacionais e internacionais. Disse Maquiavel, no famoso livro “O Príncipe”, quando os grandes não conseguem governar com um dos seus (Aécio, por exemplo), governam com um do povo (Lula-Dilma). Em longos anos de governo, o PT sequer arranhou os pilares fundamentais de sustentação de uma das sociedades mais desiguais do mundo (embora seja a sétima ou oitava em produção de riquezas). Com Lula-Dilma: a) a estrutura agrária, majoritariamente latifundiária e retrógrada, permaneceu intocada; b) houve a criação e o aumento vertiginoso do bolsa-empresário no âmbito do BNDES; c) manteve-se o sistema da dívida pública de mais de 4 trilhões de reais que consome mais de 40% do orçamento anual da União no respectivo serviço - Segundo Vicente Nunes, no jornal Correio Braziliense de 9 de dezembro de 2015, "o custo efetivo da dívida pública do governo federal e do Banco Central chegou a inacreditáveis 41,4% nos 12 meses terminados em outubro. (...) O custo efetivo da dívida pública está camuflado nas estatísticas do Banco Central. (...) Para se ter uma ideia do estrago que o custo efetivo da dívida está fazendo nas finanças públicas, os 41,4% resultaram em uma despesa de R$ 506,9 bilhões com juros, o equivalente a 9% do Produto Interno Bruto (PIB). Nunca, na história do país, se pagou tanto aos credores.”; d) preservou-se o tripé macroeconômico: câmbio flutuante-metas de inflação-superávit primário, base para extorsivas e artificiais taxas de juros; e) alimentou-se um sistema tributário profundamente injusto; f) a enorme concentração de mídia persiste; g) foi “prestigiado” o modelo político-eleitoral que amplia o conservadorismo e a corrupção, em especial a partir do bilionário financiamento de campanhas eleitorais por grandes empresas; h) constata-se um aumento da violência epidêmica, com destaque para aquela promovida pelas forças de segurança militarizadas em relação aos jovens negros e pobres das periferias das grandes cidades; e i) observa-se um contínuo ataque retrógrado aos direitos humanos, notadamente aqueles relacionados à comunidade LGBT, aos negros e às mulheres.
A dupla Lula-Dilma, de forma secundária, para não romper totalmente com as origens do “seu” PT, acentuou políticas assistencialistas e limitados “ganhos” sociais. Esses “ganhos” estavam fundados num ambiente externo favorável, relativa estabilidade da moeda e profundo endividamento das famílias (pagando os maiores juros do mundo). Esse ciclo já está esgotado e a própria crise fiscal do Estado inviabiliza a distribuição das “sobras” até agora observada.
Portanto, a derrota do impeachment será a vitória de projeto, em claro esgotamento, de manutenção das condições de exploração da maioria da população brasileira. Aliás, um projeto com requintes de crueldade porque mergulhado de corpo e alma nos maiores escândalos de corrupção da história recente do Brasil.
Nesse sentido, qualifica-se como pura desfaçatez a afirmação do Senhor Luís Inácio Lula da Silva, em discurso recente, de que está por trás da tentativa de afastamento de Dilma o "desejo da oposição de tirar o pobre do poder". Há bastante tempo, Lula, Dilma e o PT abandonaram os pobres por um projeto político de ocupação de postos estatais e para bem servir os verdadeiros donos do poder.
2. Consumado o impeachment.
A posse de Michel Temer, seu PMDB, as forças políticas da “governabilidade”, presentes na salada partidária do PP, PSD, PTB, PSC, PHS, PR, PROS, SD, PRB, entre outros, e talvez o PSDB e o DEM, não implicará em nenhuma mudança significativa naquelas amarras, antes mencionadas, intocadas pelos governos Lula-Dilma. Teremos mais do mesmo, mudadas as fisionomias e os nomes que desfilarão nas mídias como gestores governamentais. Dependendo de uma série de fatores, o peso da direita mais empedernida pode implementar um ataque mais forte aos direitos sociais e às posições duramente conquistadas pelos setores democráticos e populares.
Portanto, temos uma falsa polêmica quando olhado o problema e seus desdobramentos de forma mais profunda. Para os segmentos mais desvalidos da sociedade brasileira teremos a manutenção, com todos os seus instrumentos intocados, do presente projeto de opressão e produção de desigualdades. Uma eventual mudança será cosmética, superficial e meramente institucional. Dilma ou Temer, e as respectivas forças de sustentação política, em boa medida as mesmas, são as duas faces da mesma moeda.
A real saída para a atual crise conjuntural, e mesmo a superação do festival de desigualdades socioeconômicas e opressões de toda ordem que marcam a sociedade brasileira (uma espécie de crise crônica e estrutural que se abate sobre a imensa maioria da população brasileira), pressupõe a construção de um campo e um programa político verdadeiramente representativo dos interesses democráticos e populares. Nenhum dos desfechos para o impeachment, e nenhuma das forças políticas beneficiárias deles (PT, PMDB, PSDB e DEM, para citar os principais) significa uma perspectiva de superação da crise conjuntural e, principalmente, da estrutural.