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A necessidade de se mitigar o duplo grau de jurisdição em prol da plena efetividade do direito fundamental à tutela jurisdicional

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Agenda 18/02/2016 às 12:24

VI – A Mitigação do Duplo Grau de Jurisdição Faz-se Necessária em Prol da Plena Efetivação do Direito à Tutela Jurisdicional

Cumpre iniciar o tema tecendo, preliminarmente, algumas linhas sobre o direito fundamental ao devido processo legal, como premissa essencial à compreensão, de modo holístico, da busca da tutela jurisdicional efetiva pela via da mitigação do duplo grau de jurisdição, sem se olvidar que também aquela constitui o fim maior da cláusula due process of Law, motivadora da existência de uma relação independente entre os três institutos.

O devido processo legal (law of the land, due course of Law ou due process of Law), originado na Inglaterra, de 1215, com a Magna Carta ou “Carta da Liberdade”, deveu-se, em suma, à problemática, desde os tempos de Guilherme, de o rei não respeitar as prerrogativas dos barões feudais. Estes, motivados por insatisfação quanto ao procedimento da realeza, pressionaram o rei João Sem Terra a assinar a Magna Carta, com o fim de limitar os poderes reais no tocante ao direito à vida, à liberdade e à propriedade. Assim foi feito, tornando dever de obediência “ao legítimo julgamento da lei do reino, aos usos e costumes da common law, como condição para, eventualmente, restringir os direitos dos barões”.[79]

Inicialmente, o due processo of law traduzia-se em garantia processual a um processo adequado (ordely proceedings), tendente a preservar os direitos fundamentais dos barões ingleses. Após, com a adesão do direito norte-americano, a partir da Declaração da Independência de Massachusetts, em 1776, a cláusula ganha expressão de direito fundamental material.[80]

Hoje, o devido processo legal constitui garantia fundamental de justiça e é irrenunciável praticamente em todos ordenamentos constitucionais avançados do mundo, visto constituir um princípio abrangente a alcançar as garantias constitucionais do processo, como o acesso à justiça, o direito de ação, o direito do juiz natural, o contraditório, a ampla defesa, o princípio da igualdade, a motivação da sentença, entre outros. Garantias essas que visam perseguir a máxima efetividade da tutela jurisdicional - assim é que a cláusula due processo of law deve ser concebida tanto sob à ótica instrumental como substancial, porquanto voltada a considerar a matriz constitucional – fundamento de validade da lei processual –, impregnada de direitos fundamentais individuais e sociais. Cabe aqui a pertinente observação de Oreste de que “de nada adianta garantir o procedural due process sem garantir o substantive due process”.[81]

Após essa abordagem preliminar, faz-se necessário adentrar no exame específico da restrição normativa justificada racionalmente a certos direitos com vistas à obtenção da tutela jurisdicional efetiva.

Como visto alhures, o Estado legislador contemporâneo deve estruturar o ordenamento jurídico, com técnicas e procedimentos processuais idôneos, de modo a atender as necessidades do direito material e de conferir ao juiz e às partes a oportunidade de se adequarem às particularidades do caso in concreto. E isso normalmente se faz por meio de normas processuais abertas, envoltas de conceitos indeterminados, em razão da própria diversidade fática existente no mundo moderno. Aliás, como bem expressou Marinoni, “para que o processo seja capaz de atender ao caso concreto, o legislador deve dar à parte e ao juiz o poder de concretizá-lo ou de estruturá-lo”.[82]

Assim, o direito de participar do processo (artigo 5º, LV, da Constituição), que se perfaz com o contraditório outorgado ao autor e ao réu e que envolve a participação das partes ao alegar, requerer prova, participar da sua produção, recorrer, responder a eventual recurso interposto pelo adversário, etc., pode, como antes pontuado, sofrer restrição.

É natural e plausível, a lei deixar de prever recurso diante de determinada circunstância factual, quando sua eliminação for justificada pela situação de direito substancial. Isso porque não é possível ao legislador prever, em todo e qualquer caso, recurso a uma outra instância, ou mesmo uma dupla revisão pelo mesmo órgão prolator da sentença. Do contrário, estaria ele negando existir a diversidade de situações concretas como também estimulando a utilização protelatória do recurso e, por consequência, ferindo o direito de participação consubstanciado no direito de ação.[83]

O jurista Luiz Guilherme Marinoni, ao tratar do item LV do artigo 5º da Constituição, leciona que quando se elimina recurso com justificação baseada na situação de direito substancial, não há afronta ao direito de defesa, pois “a norma constitucional diz claramente que são assegurados os meios e recursos ‘inerentes’ ao contraditório – isto é à ação e à defesa”.[84]

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Segue o jurista brasileiro explicando: “A norma constitucional não garante o direito de recorrer impedindo o legislador de estabelecer um procedimento que não dê às partes o direito de recorrer contra o julgamento. Ao contrário, ela afirma que estão garantidos o contraditório, a ampla defesa e os ‘recursos a ela inerentes’. Caso o desejo da norma fosse o de garantir, em todo e qualquer caso, o direito de recorrer, teria apenas dito que aos litigantes são assegurados o contraditório, a ampla defesa, e os recursos, e não o contraditório, a ampla defesa, e os meios e recursos a ela inerentes. Ora, se são assegurados o contraditório, a ampla defesa e os recursos a ela inerentes, é porque os recursos nem sempre são inerentes ao contraditório e à ampla defesa. Não fosse assim, bastaria a norma constitucional ter dito que são assegurados o contraditório e a ampla defesa, pois o direito ao recurso estaria aí necessariamente embutido”.[85]

Assim é que quando a Constituição Federal afirma que estão assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes, conferiu amplitude a partir da perspectiva do due processo of law, em termos de instrumento e de substância. Então, torna-se plausível dizer que certas demandas, nas quais se assegura a ampla defesa, podem sofrer a restrição do direito de recorrer e que outras demandas devam sujeitar-se a uma revisão ou um duplo juízo sobre o mérito, porquanto “os recursos nem sempre são inerentes à ampla defesa”[86]

Note-se que tudo deve ser concebido por meio de uma visão expandida do direito processual. Porque a tendência moderna do processo é sempre a busca da tutela jurisdicional efetiva, em termos de tempestividade e efetividade instrumental-material, deve o legislador infraconstitucional confrontar esse direito com o direito à ampla defesa, e, assim, averiguar a possibilidade de dispensar o duplo juízo quando a situação material justificar racionalmente a restrição do recurso. Como assinalou Marinoni, “o artigo 5º, LV, da Constituição quer dizer que o recurso não pode ser suprimido quando inerente à ampla defesa; e não que a previsão do recurso é indispensável para que seja assegurada a ampla defesa em todo e qualquer caso”.[87]

Assim, a Constituição Federal ao assegurar como garantia o direito ao processo (artigo 5º, XXXV), consagrou o due process of law, o qual atinge o seu desiderato, quando da realização efetiva e tempestiva da tutela jurisdicional, de modo que ao não se limitar o duplo grau de jurisdição, proporcionando diversas etapas de impugnação, abrindo espaço para procedimentos protelatórios e aumentando o volume de demandas, estar-se-á, em realidade, provocando um retrocesso e ferindo o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, corolário do devido processo legal.

Na verdade, a dilação indevida do processo conduz à denegação de justiça, por elevar os custos da demanda, e, como comumente se observa, a parte, que já possui um grau financeiro precário, terá gastos ainda maiores em demandar do que quando renuncia o seu direito. E se renuncia, perde o que merece juridicamente. Quer dizer: antecipa-se a possibilidade de afastar o acesso à Justiça. Esse aspecto, por si só, demonstra que o acesso ao Poder Judiciário não está sendo tecnicamente bem estruturado. Desse modo, diz-se que a justiça plenamente acessível é aquela que torne fácil e possível o sujeito se socorrer do Judiciário, esperando dele a resolução em prazo razoável do litígio, sob pena de afrontar premissa constitucional fundamental (artigo 5º, XXXV e LXXVIII, da Constituição).

Por isso, reprise-se, o Estado legislador deve estar atento em editar normas processuais adequadas capazes de proteger os direitos processuais fundamentais contemplados constitucionalmente. E o duplo grau de jurisdição tem sido modelo a comprovar a excessiva duração dos processos, principalmente quando não é levado em conta, pelo legislador infraconstitucional, determinadas matérias, de cunho substancial, que possibilitem justificadamente restringir o uso do recurso.

Nesse passo, observa-se a importância de se mitigar o duplo grau de jurisdição, em determinadas causas envolvendo questões fáticas, a exemplo das relações de consumo, vizinhança, acidente de trânsito, locação, que guardam um grau menor de complexidade, com o fito de o Poder Judiciário atender mais efetiva e prontamente a tutela jurisdicional.

É recomendável, pois, que se elimine o duplo grau para as causas mais simples, notadamente as que envolvam questões factuais, que não sejam passíveis de provocar divergentes entendimentos sobre determinada matéria dos quais resultem em decisões diferentes. [88]

Por outro lado, o duplo grau de certa maneira aniquila o princípio da oralidade e da imediatidade. A análise profunda do acervo fático-probatório do feito é realizada pelo juiz de primeiro grau, quando da fase instrutória. Momento esse em que o magistrado está pronto para diretamente ver, ouvir e sentir as partes e testemunhas e delas extrair a verdade que acontece no campo da realidade e, assim, formar livremente o seu convencimento.

Chiovenda, ao lecionar sobre a oralidade e imediatidade, pronunciou que “o processo oral é, com ampla vantagem, melhor e mais conforme à natureza e às exigências da vida moderna, porque exatamente sem comprometer, antes assegurando melhor a excelência intrínseca da decisão, proporciona-a com mais economia, simplicidade e presteza”[89]. Disse, ainda, o jurista italiano: “o juiz, a quem caiba proferir a sentença, haja assistido ao desenvolvimento das provas, das quais tenha de extrair seu convencimento, ou seja, que haja estabelecido contato direto com as partes, com as testemunhas, com os peritos e com os objetos do processo, de modo que possa apreciar as declarações de tais pessoas e as condições do lugar, e outras, baseado na impressão imediata, que delas teve, e não em informações de outros”.[90]

Ao juiz de segunda instância, ao contrário, não lhe foi concedido, pelo ordenamento jurídico processual, essa possibilidade de tratar do litígio de forma direta, imediata, perceptivo à participação dos sujeitos, quando declaram ou silenciam, às suas sensações e emoções e que repercutem sobremaneira nas alegações, documentos e fatos esboçados no feito.

E como bem pontuou Oreste, “o juiz de primeiro grau, se não conta com a experiência daqueles de segunda instância, tem a favorecê-lo o conhecimento dos fatos através da prova testemunhal, a concentração e oralidade do processo, permitindo às partes o exercício de seus direitos e prerrogativas. Ademais, nada garante que a última decisão seja mais correta e legítima que a primeira”.[91]

Ademais disso, há quem diga que o juiz de segunda instância possui maior experiência e seja mais instruído, por estar exercendo a magistratura há mais tempo, o que lhe permite decidir melhor atingindo a justiça do caso conflitivo. Contudo, tal linha de pensamento não pode vingar, pois se o juiz mais antigo que não teve contato imediato com as partes, as testemunhas, enfim, todas as provas extraídas da fase instrutória, é um equívoco dizer que ele esteja em melhores condições de julgar do que aquele juiz que conduziu a lide participando efetivamente da prova oral.

E, no tocante a essa questão, Marinoni trouxe pertinente observação: “em nenhum outro local alguém diria que o profissional mais antigo deve dar a última palavra sobre todos os casos, aí incluídos aqueles mais simples, que dispensam maiores divagações, principalmente quando se sabe que uma dupla revisão sempre implica maior gasto de tempo e que a demora sempre prejudica a parte que espera por solução”.[92]

Pontue-se, ainda, que “é evidente que a vontade do juiz interfere no resultado da instrução, uma vez que o magistrado sempre tem que realizar determinado ‘juízo’ prévio (o qual é dele e não de outro juiz) para formular pergunta à parte ou à testemunha. O que se quer dizer, em outros termos, é que se o juiz vai formando seu juízo sobre o mérito à medida que o procedimento caminha, é equivocado supor que alguém que julgará com base nos escritos dos depoimentos das partes e das testemunhas estará em melhores condições de decidir”. [93]

Nesse parâmetro, convém dizer que é imprescindível a ocorrência de uma mudança de paradigma, no que toca ao pensamento de o juiz de primeiro grau não ser digno de confiança. É necessário prestigiar esse juiz, disseminando a ideia de que, a partir do momento em que ele abraça a causa desde o seu nascedouro, sem qualquer elemento passível de influenciar o seu raciocínio perante o itinerário processual, ele sozinho, a partir da imediação e da prova oral – quando se realiza efetivamente a refutação ou contrariedade das posições jurídicas –, estará com um acervo fático-probatório pronto para produzir uma argumentação adequada que racionalmente justifique a afirmação da tutela prometida pelo direito.

Afinal de contas, a ampliação do poder do juiz, como antes analisado, é, diante das normas abertas, uma tendência jurídica e que conduz a conferir maior efetividade e qualidade à tutela jurisdicional.

Sobre esse aspecto, cabe interessante observação de Luiz Guilherme Marinoni de que “em um sistema em que a sentença apenas excepcionalmente pode ser executada na pendência do recurso interposto para o segundo grau e em que todas as causas devem ser submetidas à revisão, a figura do juiz de primeiro grau perde muito em importância. Isso porque se retira da decisão do juiz a qualidade que é inerente à verdadeira e própria decisão, que é aquela de modificar a vida das pessoas, conferindo tutela concreta ao direito do autor”.[94]

A título de ilustração e para demonstrar, ainda mais, ser possível a adoção da mitigação do duplo grau no ordenamento jurídico brasileiro, colhem-se, como modelos, a França e a Itália que há muito incorporaram algumas exceções ao duplo juízo nos seus respectivos ordenamentos jurídico-processuais.

No sistema francês, por exemplo, o duplo grau de jurisdição é tratado, não como uma garantia constitucional, mas como mecanismo recursal regulado pelas leis ordinárias. O Nouveau Code de Procédure Civile garante o direito de apelar e impede a renúncia ao direito de recorrer antes da propositura da ação; de outra parte, concede exceções à regra geral. Há várias situações excepcionais, tais como: atos administrativos, onde se encontram decisões fundamentais do processo contra as quais não se pode apresentar qualquer impugnação; decisões relativas à conexão; extinção do processo em razão da falta de diligência das partes; demandas baseadas no valor patrimonial – demandas imobiliárias, de família, responsabilidade por ato ilícito, entre outras.[95]

Igualmente, no sistema italiano, conferem-se algumas exceções ao duplo grau. No Codice di Procedura Civile, as partes podem convencionar que da sentença não será interposto recurso de apelação, mas tão somente recurso de cassação. Neste caso, deve ser abordado no apelo apenas alegação de violação de dispositivo legal ou equívoco na aplicação de norma de direito.[96]

Ainda, cumpre elencar precedente corroborando a tese da restrição ao duplo grau de jurisdição, oriundo do tribunal constitucional português, citado por Canotilho:

“O Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais não garante, necessariamente, e em todos os casos, o direito a um duplo grau de jurisdição (cfr. Ac 38/78, in DR I, n.º 63 de 17/3/87; Ac 65/88, in DR II, n.º 192 de 20/8/88; Ac 359/86, in DR II, n.º 85 de 11/4/87; Ac 358/86, in DRII, n.º 85 de 11/487. Outros acórdãos no mesmo sentido: Ac TC, n.º 219/89, in DR II, n.º 148 de 30/6/89; Ac TC, n.º 124/90, in DR II, n.º 33 de 8/2/91; Ac. TC, n.º 340/90)”[97]

Esses sistemas recursais oriundos das legislações alienígenas demonstram a preocupação voltada para a brevidade e praticidade do processo, sem, contudo, ofender o devido processo legal em termos de efetividade material da tutela jurisdicional.

Ao final, conclui-se que, em nome da tempestividade e efetividade da tutela jurisdicional, torna-se urgente, no cenário jurídico brasileiro, a mudança de paradigma e voltar o pensamento à criação de normas jurídicas processuais adequadas, direcionadas a excepcionar o duplo grau, no sentido de afastar a sua aplicação em causas mais simples, especialmente as que envolvam matéria fática. E nas que o duplo grau deva ser mantido, que se opte, como regra, a execução imediata da sentença. Do contrário, “a sentença do juiz de primeiro grau continuará valendo pouca coisa, já que poderá, no máximo, influenciar o espírito do julgador de segundo grau”[98]

Sobre a autora
Gabriela Fonseca de Melo

Pós graduada em Direito e Processo do Trabalho no Mackenzie de Brasília. Servidora Pública. Assistente do Ministro Augusto César Leite de Carvalho no Tribunal Superior do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Gabriela Fonseca. A necessidade de se mitigar o duplo grau de jurisdição em prol da plena efetividade do direito fundamental à tutela jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4614, 18 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46305. Acesso em: 19 nov. 2024.

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