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A necessidade de se mitigar o duplo grau de jurisdição em prol da plena efetividade do direito fundamental à tutela jurisdicional

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18/02/2016 às 12:24
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V- O Duplo Grau de Jurisdição Não Constitui Garantia Constitucional

Falar em duplo grau de jurisdição equivale necessariamente a incursionar o sistema recursal, em especial o recurso de apelação, cuja origem remonta ao antigo direito processual imperial romano, o qual percorreu várias fases – legis actiones (ações legais), per formulas (fórmulas escritas) e juízo unificado (extraordinaria cognitio) - até a terceira, derradeira, que deu surgimento à appellatio, correspondente à possibilidade de recorrer da decisão do magistrado para o imperador.[52]

Especificamente, quanto à terceira fase – extraordinaria cognitio –, a appelatio tinha em mira, além de garantir aos cidadãos a possibilidade de ver a decisão revisada e, assim, obter a eficácia da tutela dos seus direitos, que “os imperadores afirmavam e estendiam a aplicação das leis imperiais e garantiam um controle cada vez maior sobre toda a estrutura administrativa romana”.[53]

Com o passar do tempo, a estrutura judiciária romana foi se tornando mais complexa e a quantidade de recursos aumentou. Então, resolveu-se que as apelações – até então julgadas pelo próprio imperador – passaram a ser decididas por outros magistrados (exemplo: prefeito do pretório). Dessa maneira, foi necessário criar diversos graus hierarquicamente interligados para compor a estrutura judiciária, e, com isso, “a parte poderia apresentar mais de uma apelação, desde que acima do julgador estivessem outros magistrados. Assim, quanto mais elevado o grau do magistrado, menor a quantidade de juízes a que se poderia recorrer”.[54]

Nesse período, as sentenças válidas poderiam ser modificadas por um magistrado de grau superior, mas deveriam conter equívoco quanto à aplicação do direito vigente. Contudo, havia limitação ao direito de recorrer por meio da apelação, quando se tratasse de sentenças válidas proferidas pelo próprio imperador, senadores e magistrados, cujo julgamento se fazia sob delegação do imperador e seu poder abarcasse explicitamente essa irrecorribilidade.[55]

Em termos de história retratada de forma sucinta sobre a apelação, cabe anotar, em primeiro lugar, que esse recurso, como meio de impugnar decisões, propiciou a existência não só do duplo grau de jurisdição, mas de uma pluralidade de instâncias de jurisdição; e, em segundo lugar, o direito de recorrer guardava claramente a ideia “hirárquico-autoritária de controle da administração por parte de organismos superiores que chegavam até o imperador, um verdadeiro meio de fiscalização dos magistrados, na medida em que, sendo a atividade judiciária realizada pelos mesmos funcionários que exerciam a atividade administrativa, não existia, evidentemente, uma independência dos juízes a quo em relação àqueles ad quem”.[56]

Trilhando o caminho do sistema da appelatio, muitos países continuaram a adotar a pluralidade de instâncias, como se percebe da explanação de Piero Calamandrei: “Em todos os ordenamentos processuais dos povos civilizados, a partir da extraordinaria cognitio do ordenamento romano, reconheceu-se a conveniência de fazer transitar a mesma causa, antes que em relação a ela se forme a coisa julgada irrevogável, por meio de uma série de exames sucessivos, cuja prática constitua para os jurisdicionados uma garantia de eliminação dos possíveis erros do juiz. Para que essa garantia se torne eficaz é necessário que o novo exame tenha lugar perante um órgão judicial, distinto daquele que primeiro conheceu a causa, de modo que frente ao segundo juiz constitua uma confirmação e um controle da sentença já pronunciada sobre o mesmo objeto pelo juiz anterior”.[57]

No concernente à introdução do sistema recursal no Brasil e quebrando um pouco as etapas históricas relacionadas ao assunto, mas não menos importantes, há registro de que após a independência do Brasil em relação a Portugal, aquele país continuou sendo regido pelas leis portuguesas, especialmente as Ordenações Filipinas, que tratavam de matéria processual, a exemplo da reformatio in pejus, a impossibilidade do revel verdadeiro apelar, bem como os outros casos em que a parte não pode apelar, entre outros. Não obstante, diversas normas foram sendo criadas de modo que o direito processual civil brasileiro foi amoldando-se para ter a sua própria identidade.[58]

Em realidade, a Constituição imperial de 1824 – única Constituição brasileira que elevou, por força das ideias inspiradas pela Revolução Francesa de 1789, as quais foram responsáveis por adotar o duplo grau de jurisdição decorrente do instituto da cassação[59], em nível constitucional e irrestritamente o direito de recorrer – dispunha em seu artigo 158 que “Para julgar as Causas em segunda, e última instância haverá nas Províncias do Império as Relações, que forem necessárias para commodidade dos povos”.[60]

Assim, na seara do constitucionalismo brasileiro, apenas a Constituição de 1824 previu expressamente o duplo grau de jurisdição, as demais ficaram silentes, só dispondo de competências recursais ordinárias, a exemplo da Constituição Cidadã de 1988. Entretanto, no tocante ao processo penal, no Brasil, adota-se a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica), o qual consagra o direito ao duplo grau de jurisdição em matéria penal (artigo 8º, n. 2, h).

Nessa esteira, cumpre aprofundar o instituto sob exame. Inicialmente, o termo duplo grau de jurisdição, tecnicamente, não traduz de forma satisfatória o seu conteúdo. Isso porque o vocábulo jurisdição – do latim jus dicere, dizer o direito – dimana da soberania do Estado, isto é, constitui o poder de julgar derivado do imperium pertencente ao Estado. Assim, exprime o poder de julgar de um juiz outorgado pelo Estado soberano. E, como bem expressou Oreste, “se a jurisdição é uma das projeções do poder soberano, tolerar o duplo grau de jurisdição seria admitir a existência de várias jurisdições e, consequentemente, a pluralidade de soberanias, o que não faz sentido”.[61]

Assim, a jurisdição é a própria manifestação do poder do Estado, vez que, como dito, coube ao juiz, por outorga estatal, dizer o direito – ao aplicar a norma ou fazê-la produzir efeitos concretos, afirma a vontade espelhada na norma de direito material, que guarda os fins do Estado e, portanto, as normas constitucionais reveladoras das suas preocupações básicas[62]. Dessa forma, essa manifestação deve abarcar uma diversidade de objetivos, “conforme seja o tipo de Estado e sua finalidade essencial”.[63]

Em realidade, o duplo grau de jurisdição vem a se relacionar com a competência que, juridicamente, significa a medida da jurisdição ou parcela dela a ser distribuída para o exercício de um ou mais de um órgão. Porque a jurisdição é o poder soberano do Estado outorgado ao juiz, o duplo grau de jurisdição tem a ver necessariamente com a competência de certos órgãos do Judiciário para o reexame de demandas julgadas por outros juízes. Assim, “não há que se falar em dois graus de ‘jurisdição’, mas em dois órgãos do Poder Judiciário analisando a mesma causa”.[64]

Nesse passo, seria melhor dizer duplo juízo sobre o mérito[65], porquanto se analisa uma segunda vez a mesma causa por um outro órgão judiciário, geralmente de grau superior. Quer dizer: a parte que, em sentença de primeiro grau, sair-se sucumbente poderá apresentar recurso, dirigido, normalmente, a um outro órgão de grau superior, cuja decisão será proferida de modo a substituir a primeira, passando a ter eficácia e eventual executoriedade. Assim, o juízo sobre o mérito será realizado por dois órgãos do Poder Judiciário.

Entretanto, há de se considerar também que o órgão julgador poderá ser do mesmo grau de jurisdição, sem afronta à regra da dupla revisão. Isso acontece, por exemplo, com os Juizados Especiais de pequenas causas. O artigo 41, § 1º, da Lei 9.099/1995 prevê o julgamento do recurso por órgão colegiado composto por juízes de primeiro grau. É de bom alvitre lembrar que, a despeito de, em certos casos, o juízo ser do mesmo grau, veta-se direcionar o recurso para o juiz prolator da decisão.

A partir desse contexto, é possível conceituar o duplo grau de jurisdição como sendo a regra ou o mecanismo recursal que propicia ao vencido a faculdade de recorrer da sentença, cujo recurso, constituído de efeito devolutivo, será dirigido a juiz diferente daquele prolator da decisão originária e que terá por tarefa revisar o julgado, o qual desembocará numa decisão substitutiva da primeira, modificando-a ou confirmando-a.

Há muito, o duplo grau de jurisdição vem sendo considerado de modo absoluto como um princípio ou uma garantia, pois representa um meio de controle das sentenças e uma garantia de melhor justiça[66]. Isso porque, para os defensores desse entendimento, “em primeiro lugar satisfaz uma exigência humana. Ninguém se conforma com uma única decisão que lhe seja desfavorável. Em segundo lugar, não se pode olvidar a possibilidade de sentenças injustas ou ilegais, e até mesmo proferidas por juízes movidos pelo temor (coação) ou sentimentos menos dignos (peita). Daí a segurança da justiça aconselhar o reexame das causas por meio dos recursos”.[67]

Outrossim, diz-se que o principal fundamento para manutenção do duplo grau é sua natureza política: nenhum ato estatal pode ficar sem controle. A possibilidade de que as decisões venham a ser analisadas por um outro órgão assegura que as equivocadas sejam revistas. Além disso, imbui o juiz de maior responsabilidade, pois ele sabe que sua decisão será submetida a nova apreciação.[68]

Entretanto, não é possível prosperar a tese defendida no sentido de que o duplo grau de jurisdição constitui meio de controle interno, realizado pelo próprio Judiciário. Isso porque, em primeiro lugar, a finalidade do duplo grau de jurisdição é propiciar ao vencido obter novo exame da questão já decidida; e, em segundo lugar, no Brasil, “os tribunais, através das corregedorias, têm suas próprias formas de inibir condutas ilícitas, que obviamente não se confundem com decisões injustas”[69]. E cabe aqui lembrar do órgão de controle da atuação administrativa, financeira e disciplinar do Poder Judiciário (exceto do STF) e de correição acerca do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes e servidores do Poder Judiciário: o Conselho Nacional de Justiça- CNJ.[70]

Ressalte-se que, desde a sua origem, o controle sobre as atividades legislativas e administrativas guardava uma ideia garantista. Esses sistemas de impugnação contra leis inconstitucionais (judicial review) e atos administrativos ilegais surgiram para garantir, acima de tudo, a proteção do cidadão em sociedade.[71]

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Diferentemente, o sistema recursal, como visto, advém da concepção hierárquico-autoritária. Na época do império romano, liderado por Otaviano Augusto, o qual alterou o processo civil com a introdução da extraordinaria cognitio, esse imperador não admitiu que fosse a apelação dirigida contra a decisão do princips, “tendo em mente que, desse modo, poderia dar aos romanos mais uma oportunidade de exame de seus litígios, a fim de que se fizesse uma ‘justiça melhor’. Na verdade, seu objetivo era tão somente ter um mecanismo de controle e concentração do poder”.[72]

Nos dias atuais, porém, prevalece a concepção de que o recurso visa propiciar a revisão do julgado[73], não servindo de mecanismo de garantia da fiscalização da atividade jurisdicional. Assim também entendeu, tempo atrás, Chiovenda, quando exprimiu não ser possível, “no Estado moderno, a pluralidade de instâncias fundar-se na subordinação do juiz inferior ao superior, por não dependerem os juízes, quanto à aplicação da lei, senão da lei mesma”.[74] Continuou o jurista italiano lecionando que “o recurso ao juiz imediatamente superior é o modo de realizar o princípio do duplo grau. Sem embargo, não sendo mais o recurso, como vimos, a reclamação contra o juiz inferior e sim, simplesmente, o expediente para passar de um a outro exame da causa, a causa no duplo exame conserva a unidade; único é o julgado e é o que emanou em grau de recurso.”[75]

Por outro norte, não é possível dizer que a Constituição Federal garante o duplo grau de jurisdição, ainda que implicitamente. Isso porque, em primeiro lugar, quando o texto constitucional prevê a interposição de recurso para tribunal superior, restringe essa faculdade recursal, ao elencar, por exemplo, em seu artigo 102, III, as matérias recorríveis pela via do recurso extraordinário, e, como bem expressou Luiz Guilherme Marinoni, que, nesse caso, o dispositivo aludido “não exige, para o cabimento do recurso extraordinário, que a decisão tenha sido proferida por tribunal”, porquanto estabelece interposição de recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal nas causas decididas em única e última instância.[76]Quer dizer: a atual Constituição ao mesmo tempo que confere ampla possibilidade de recorrer por meio do recurso extraordinário, quando não limita a interposição somente para decisões proferidas pelos tribunais, restringe o seu cabimento às hipóteses contempladas no seu inciso III.

Nesse aspecto, cabe ressaltar a pertinente observação de Oreste Laspro no sentido de que “[...] o fato de a Constituição prever a existência de recursos, não significa que todas as decisões possam ser impugnadas por meio deles. Aliás, pode-se mesmo dizer que a Constituição em vigor incentivou o legislador ordinário a restringir o direito de apelação. Com efeito, a Carta Política anterior determinava que o recurso extraordinário somente fosse admissível contra as decisões de tribunal, o que, sem dúvida, impedia o acesso aos tribunais superiores a fim de discutir as questões constitucionais e relativas à legislação federal”.[77]

Por outro ângulo, também poder-se-ia dizer que só o fato de, em sede recursal de natureza extraordinária, não ser possível formular pretensões de cunho factual e de questões de direito infraconstitucional já seria suficiente para afirmar que a Constituição da República não garante o duplo grau de jurisdição, tendo em vista a exigência, para se utilizar dessa regra recursal, do efeito devolutivo. O recurso especial segue o mesmo raciocínio, tendo em vista ser limitado quanto à matéria, não sendo cabível às questões fáticas e àquelas relativas à lei local e texto constitucional.

Por fim, é oportuno ressaltar as palavras externadas, com muita propriedade, por Marinoni: “Ter direito ao duplo grau de jurisdição significa ter direito a um duplo exame de mérito por dois órgãos distintos do Poder Judiciário. Partindo-se desse conceito, é evidente que a nossa Constituição não consagra o direito ao duplo grau de jurisdição no processo civil. O fato de a Constituição ter previsto tribunais com competências recursais ordinárias não impede o legislador infraconstitucional de permitir, por exemplo, que o tribunal conheça do mérito da causa sem que o tenha feito anteriormente o juízo de primeiro grau (art. 515, § 3º, do CPC), nem impede, tampouco, a limitação do próprio direito ao recurso em causas de menor expressão econômica (por exemplo, art. 34 da Lei 6.830, de 1980)”.[78]

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Sobre a autora
Gabriela Fonseca de Melo

Pós graduada em Direito e Processo do Trabalho no Mackenzie de Brasília. Servidora Pública. Assistente do Ministro Augusto César Leite de Carvalho no Tribunal Superior do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Gabriela Fonseca. A necessidade de se mitigar o duplo grau de jurisdição em prol da plena efetividade do direito fundamental à tutela jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4614, 18 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46305. Acesso em: 28 mar. 2024.

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