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A necessidade de se mitigar o duplo grau de jurisdição em prol da plena efetividade do direito fundamental à tutela jurisdicional

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18/02/2016 às 12:24
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IV- O Princípio da Participação no Processo e a Tutela Jurisdicional Efetiva

Como dito antes, exige-se à efetividade do direito fundamental à tutela jurisdicional que os procedimentos e a técnica processual sejam modelados adequadamente, de forma idônea, pelo Estado legislador consoante as necessidades do direito material e, na mesma toada, ao Estado juiz é reservada a incumbência de compreender essa estruturação instrumental em conformidade com a maneira dessas necessidades se descortinarem no caso concreto.

Outrossim, cumpre dizer que há situações interligadas que prestam contribuição à efetividade do direito fundamental à tutela jurisdicional: o acesso à justiça, que se perfaz por meio do direito fundamental de ação e de defesa, corolários do princípio da participação, essencial para a própria legitimação do poder estatal – ou como quis Marinoni, indispensável à própria configuração do Estado, ao pensar em proibição da autotutela[39]; a facilitação desse mesmo acesso, como a questão do custo do processo e, por fim, o tempo do processo, o qual se afere a partir da análise do juiz ao debruçar sobre a situação fático-jurídica, bem como da atuação do autor e do réu, os quais devem ser tratados em igualdade de condições, sem se olvidar da imposição de discriminações necessárias à determinadas circunstâncias.

Sabe-se que o conceito de democracia também evoluiu para deixar de ser “um ‘conceito literário’ e um conceito indissociado do problema de forma do Estado (a democracia como forma de Estado) para ser um conceito político-social, verdadeiro indicador dos movimentos sociais”.[40] Assim, como afirma Canotilho, a democracia participativa se fundamenta pelo interesse básico dos indivíduos na autodeterminação política em todos os domínios sociais – a participação política é idêntica à autodeterminação (Habermas) – e na abolição do domínio dos homens sobre os homens.[41]

Destarte, a participação no poder constitui traço fundamental da democracia e, por isso, é inerente ao Estado contemporâneo que prevê, por meio da Constituição Federal, várias formas de participação do cidadão no processo de decisão, a exemplo do referendo popular, plebiscito, da ação popular, entre outros.

No que condiz com o Poder Judiciário, a participação tanto do juiz, como dos cidadãos existe, mas de forma diferenciada da ocorrente no âmbito do Poder Legislativo. Para essa participação se concretizar, é necessário, preliminarmente, o sujeito que sofra “lesão” ou “ameaça a direito” (artigo 5º, XXXV, da Constituição) procurar exercer o seu direito fundamental de ação para ter acesso ao Judiciário – e não poderia ser diferente, tendo em vista que por meio de um due process é possível assegurar eficazmente as posições jurídicas fundamentais ou status activus processualis –, a fim de que este possa apreciar e afirmar o pretendido direito. Busca-se, assim, a tutela jurisdicional. Esse acesso à jurisdição constitui direito de se utilizar da prestação estatal necessária à efetiva participação e, por isso mesmo, não pode ser, de forma alguma, obstaculizado, seja por questões financeiras ou sociais (artigo 5º, LXXIV, da Constituição).

Certamente, o juiz exerce o poder para prestar tutela dos direitos às partes, na perspectiva dos direitos fundamentais. É um veículo ou instrumento do poder, cuja participação se evidencia em diversos momentos, quando do itinerário processual, como por exemplo, solicitar documentos, negar pedidos de provas impertinentes, argumentar e fundamentar as suas decisões, publicar os seus atos etc.

Além do mais, deve estar sempre sintonizado com as peculiaridades das partes no sentido de evitar que a demora do processo lhes cause dano, em especial aquele que reivindica o seu direito, que, muitas vezes, é o mais necessitado em termos econômicos. Dessa maneira, deve o magistrado ficar atento às necessidades e à atuação dos sujeitos da relação processual, para evitar que o tempo se alargue, além do razoavelmente esperado, e, por consequência, prejudicar a efetividade da tutela jurisdicional (artigo 5º, LXXVIII, da Constituição).

Aliás, nessa direção, há muito, se pronunciou Giuseppe Chiovenda, ao se referir ao processo moderno, cuja função jurisdicional se encontra renovada, no sentido de que a posição do juiz é central de órgão público interessado em ministrar pelo modo melhor e mais pronto possível.[42] Exprimiu, ainda, o jurista italiano que é necessário assegurar ao magistrado uma posição que o torne partícipe ativo na relação processual e esteja capacitado para dirigir convenientemente a lide e para conduzi-la da maneira mais célere compatível com uma reta decisão.[43]

Outrossim, ao lecionar sobre o impulso de participação tanto do juiz como das partes e a observância que cada qual deveria ter na busca precisa, quando da sua própria tarefa participativa perante o processo, da tempestividade da tutela jurisdicional, o mesmo jurista italiano afirmou: “Pode-se conceber o impulso processual cometido ao órgão jurisdicional (impulso oficial) ou às partes (impulso das partes). Inspira-se o princípio do impulso oficial na ideia de que o Estado é interessado na rápida definição das lides uma vez iniciadas, e por essa razão seus órgãos devem tomar a iniciativa de seu presto desenlace. Já o princípio oposto move-se da ideia de que o processo civil é assunto das partes, e cabe a estas o direito de dispor sobre o tempo de seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, o ônus de diligenciar o seu andamento”.[44]

Em realidade, a participação do juiz, como bem salientou Marinoni, serve “para garantir que a participação das partes seja igualitária e, assim, para que eventual falha na participação de uma delas possa ser suprida. Nesses termos, a participação do juiz se dá em nome da participação das partes e, por decorrência, para legitimar a sua própria atuação”.[45] Acrescenta o mesmo jurista que “o princípio da imparcialidade do juiz não é obstáculo para a participação ativa do julgador na instrução. Ao contrário, supõe-se que parcial é o juiz que, sabendo que uma prova é fundamental para elucidação da matéria, se queda inerte”.[46]

No tocante aos litigantes, a participação se perfaz por meio do contraditório (artigo 5º, LV, da Constituição), mecanismo técnico jurídico capaz de expressar o direito de alguém participar de um processo que o afeta em sua esfera jurídica e que possui qualidade de direito fundamental.[47]

Nesse ponto, necessário se faz acolher as palavras de Liebman, ao tratar do princípio da participação. Disse ser a atividade processual da parte “útil não só à própria parte, mas também ao exercício profícuo da função judicial, a qual se vale da colaboração, em posições diversas, de todos os sujeitos do processo. É por isso que a estrutura formal do processo é concentrada realmente no contraditório e as regras do desenvolvimento normal do processo são ditadas na suposição da participação ativa de todas as partes”.[48]

Nesse caminho, a participação das partes quando, por exemplo, fazem alegações, apresentam provas, etc, efetivamente se concretiza com a indispensável publicidade dos atos do juiz e a fundamentação das suas decisões, até porque precisam influenciar o seu convencimento e de se contrapor ao adversário. Dessa forma, é possível dizer que a participação do autor e do réu legitimou o processo jurisdicional.

Nessa linha, importa dizer que as normas processuais abertas – como visto, composta de conceitos jurídicos indeterminados –, visando otimizar a participação dos sujeitos no processo, são dirigidas primeiramente ao autor, de modo a que este participe efetivamente dele, quando apresenta suas alegações, participa da produção das provas, recorre ou responde a eventual recurso interposto pela parte adversa. Mas, essas normas conferirão, em seguida, a participação do réu que terá, em condições iguais, a oportunidade de impugnar as postulações daquele, refutando a pretensão de tutela do direito e, mesmo, a utilização de meio executivo inidôneo ou excessivamente gravoso. Conceber-se-á, então, um processo justo ou democrático.

Cumpre, contudo, acrescentar que, em determinadas circunstâncias, torna-se necessário imprimir discriminações de tratamento, tendo em vista, obviamente, as particularidades e diferentes necessidades das partes, vez que não se pode dizer que há uniformidade nas situações de direito material. Ao abordar o assunto, Marinoni, citando Mario Chiavario, esclarece, que essa igualdade de condições ou paridade de armas, “não implica uma identidade absoluta entre os poderes reconhecidos às partes de um mesmo processo nem, necessariamente, uma simetria perfeita de direitos e de obrigações. O que conta é que as diferenças eventuais de tratamento sejam justificáveis racionalmente, à luz de critérios de reciprocidade, e de modo a evitar, seja como for, que haja um desequilíbrio global em prejuízo de uma delas”.[49]

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Convém anotar oportuna manifestação de Marinoni, ao invocar pertinente elucidação de Nocolò Trocker, quando relaciona o princípio da participação mediante paridade de armas e o princípio da oralidade – dois princípios que se complementam para propiciar a plena efetividade da tutela jurisdicional. Disse assim o jurista brasileiro: “a doutrina alemã tem estabelecido uma relação entre o princípio do rechtliches Gehör (princípio político da participação - fundamento de uma participação em contraditório mediante paridade de armas no processo jurisdicional) e a oralidade. Entende-se, em outras palavras, que a oralidade é fundamental para que se permita uma participação mais adequada dos litigantes no processo. Trocker chega a afirmar, ao referir-se a este ponto, que a imediatidade é imprescindível para que o processo possa melhor responder às garantias constitucionais da ação e da defesa”[50]

Desse modo, a “ampla defesa” (artigo 5º, LV, da Constituição) exteriorizada pelo contraditório – expressão técnico-processual do princípio da participação –, pode naturalmente sofrer restrições, racionalmente justificadas, quando forem necessárias para conferir a efetividade da tutela do direito, como se dá, por exemplo, com a tutela antecipada que torna possível a postergação da realização da defesa em sua plenitude, com a limitação do direito à prova, com a inversão do ônus probatório, etc.

Percebe-se, então, que nessa relação participativa de contraposição entre os sujeitos interessados na formação da decisão, o réu objetiva a tutela jurisdicional que negue a tutela do direito solicitada pelo autor, ou seja, o réu, assim como o autor, tem direito à tutela jurisdicional, mas, ao contrário do autor, não possui direito à tutela do direito.[51]

De tudo isso, extrai-se a ilação que a tutela jurisdicional – imbuída de qualidade de direito fundamental –, para ser plenamente efetiva, se vale de vários componentes que estão intrinsecamente ligados e devem conviver em harmonia. Ela envolve a dinâmica integral da realização do due process of Law, o qual abarca, enfim, procedimentos e técnicas processuais idôneas e adequadas às necessidades materiais; o acesso à justiça fácil; a participação igualitária do autor e réu – realizada pelo contraditório –, lembrando sempre das necessárias diferenciações empregadas circunstancialmente; a participação do juiz em termos de compreender a estruturação instrumental e as necessidades substanciais e formais, referentes ao caso concreto e às partes, bem como o seu modo de lidar com o tempo do processo.

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Sobre a autora
Gabriela Fonseca de Melo

Pós graduada em Direito e Processo do Trabalho no Mackenzie de Brasília. Servidora Pública. Assistente do Ministro Augusto César Leite de Carvalho no Tribunal Superior do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Gabriela Fonseca. A necessidade de se mitigar o duplo grau de jurisdição em prol da plena efetividade do direito fundamental à tutela jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4614, 18 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46305. Acesso em: 26 abr. 2024.

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