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A necessidade de se mitigar o duplo grau de jurisdição em prol da plena efetividade do direito fundamental à tutela jurisdicional

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18/02/2016 às 12:24
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III- O Alcance da Proteção: o Modo de Atuação do Estado Constitucional Social para Proteger ou Tutelar Efetivamente os Direitos Fundamentais, Especialmente o Direito Fundamental à Tutela Jurisdicional

Como explanado anteriormente, houve uma transmutação de Estado liberal inerte para o Estado social proativo, o qual guarda ínsito o seu dever de proteção ou dever de tutela aos direitos fundamentais. E isso passou a ocorrer no âmbito dos três órgãos do poder estatal – Legislativo, Judiciário e Executivo. Contudo, o exame da matéria ficará adstrito aos dois primeiros.

O Estado liberal legislativo concebia a lei como sendo genérica, abstrata e universal, em uma sociedade homogênea, direcionada a respeitar a liberdade que seria garantida somente se os homens fossem tratados de maneira formalmente igual, sem relevar, contudo, as desigualdades sociais. Sem se olvidar que esse foi o meio – tratar todos de forma igual - encontrado para aniquilar os privilégios desfrutados pela monarquia absolutista. Assim, a lei deveria ser aplicada da forma como se revelava, nem mais, nem menos. O aplicador do direito sequer poderia se utilizar da interpretação da norma para considerar essas diferenças sociais, ficava adstrito à sua textura.

Já no novel Estado constitucional, acolheu-se a percepção de que a liberdade somente seria usufruída com o mínimo existencial indispensável para se viver com dignidade, porquanto, em realidade, como expressou Lorenz von Stein, “a liberdade é real apenas para aquele que tem as condições para exercê-la, os bens materiais e intelectuais que são pressupostos da autodeterminação”[23]

Então, foi necessário, segundo Luiz Guilherme Marinoni, fazer um resgate da substância da lei, bem como encontrar os instrumentos que possibilitassem a sua limitação e conformação aos princípios de justiça. Segue o renomado jurista lecionando que essa substância e esses princípios foram introduzidos nas Constituições, as quais se tornaram rígidas, no sentido de escritas e não passíveis de modificação pela legislação ordinária, além de serem dotadas de plena eficácia normativa. Assim, a lei perdeu o seu posto de supremacia e, hoje, está totalmente subordinada ao texto constitucional.[24]

Nessa linha, o Poder Legislativo continuou com a função de editar leis, mas, agora, resgatando o seu aspecto substancial. Sua tarefa é editar a lei, mas o faz de acordo com as necessidades e demandas sociais. Hoje, é preciso considerar os valores e fins públicos emanados da Constituição. Por consequência, pode-se afirmar que a lei deve se adequar inteiramente aos direitos fundamentais. Há, enfim, uma conformação da lei a esses mesmos direitos.

Ainda, na lição de Luís Roberto Barroso, o legislador poderá se utilizar do seu poder discricionário para aprovar novas leis ou a sua atuação ficará restringida a certas situações expressamente determinadas pela Constituição e que requerem apenas edição de legislação integradora. Porém, de uma forma ou de outra, não poderá se desvincular do texto constitucional. Em adição, o mesmo jurista leciona que poderá haver mutação constitucional, pela via legislativa, quando “por ato normativo primário, procura-se modificar a interpretação que tenha sido dada a alguma norma constitucional”.[25]

Ademais disso, a diversidade factual levou o legislador a criar normas contendo institutos, cujos conceitos são indeterminados (como, por exemplo, a técnica antecipatória) e normas processuais abertas, ou seja, “normas que oferecem um leque de instrumentos processuais, dando ao cidadão o poder de construir o modelo processual adequado e ao juiz o poder de utilizar a técnica processual idônea à tutela da situação concreta”.[26] Assim, as técnicas processuais não indicam precisamente qual a hipótese de direito material, tampouco os casos concretos sobre os quais incidirá. Por isso, o juiz, imbuído de seu poder-dever de tutelar direitos, ficará obrigado a identificar as necessidades e peculiaridades de direito material envolvendo o caso concreto.

Ao exemplificar essa doutrina, Marinoni bem esclareceu que “não há como conceder tutela antecipada sem antes compreender a razão pela qual se está atuando, ou melhor, sem antes se identificar a espécie de tutela do direito solicitada (inibitória, de remoção de ilícito, ressarcitória etc) e os seus pressupostos (ameaça de ilícito, prática de ato contrário ao direito, dano etc)”.[27]

Isso acontece porque, diante das novas e variadas situações de direito material, “a lei não pode atrelar as técnicas processuais a cada uma das necessidades de direito material ou desenhar tantos procedimentos especiais quantos forem supostos como necessários à tutela jurisdicional dos direitos”[28], lembrando-se que a sociedade vive em constante transformação – mudam-se os valores, as questões sociojurídicas são mais complexas do que outrora e, assim, o enfoque que se deve imprimir passa a ser diferente, exigindo dos operadores do direito maior visão e criatividade para tratar da novidade.

Por isso, o legislador, ao criar uma norma, atua ampliando o poder dos litigantes, de modo que possam identificar e utilizar os meios processuais adequados às variadas espécies de direito material, bem como do juiz, o qual fica investido de poder-dever de “mediante argumentação própria e expressa na fundamentação da sua decisão, individualizar a técnica processual capaz de lhe permitir efetiva tutela do direito”.[29]

Cumpre lembrar que a intenção precípua do legislador, ao criar normas ampliando o poder do magistrado, é justamente oferecer viabilidade para que se conceda maior efetividade à tutela dos direitos. Desse modo, a lei processual deve ser pensada tendo em vista à compreensão da natureza instrumental da norma processual à luz dos direitos fundamentais materiais e do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

Nessa mesma direção, Gomes Canotilho assevera que “a constituição dos tribunais (Gerichtsverfassung) e o procedimento jurisdicional (=processo judicial) estão, em larga medida, ‘constitucionalizados’ (CAPELLETTI, SCHWABGOTTWALD). Isto significa a compreensão constitucionalmente ‘referenciada’ do direito processual e do direito organizatório dos tribunais. Os direitos fundamentais, por um lado, e a organização e procedimento, por outro lado, desenvolvem uma eficácia recíproca: a organização e o procedimento devem ser compreendidos à luz dos direitos fundamentais; estes, por sua vez, influenciam a organização e o procedimento”[30]

E, em se tratando de eficácia de direito fundamental, torna-se necessária a criação de leis revestidas de uma configuração organizatória e procedimental funcionalmente efetivas, considerando as reais condições do desenvolvimento dos direitos fundamentais, seja em seu aspecto material, seja em seu aspecto processual.

Dessa maneira, torna-se clara a vinculação existente entre o legislador e os princípios e as normas constitucionais, na medida em que devem, segundo o mesmo jurista português, conformar “as relações da vida, as relações entre o Estado e os cidadãos e as relações entre os indivíduos, segundo medidas e directivas materiais consubstanciadas nas normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias. Neste sentido, o legislador deve ‘realizar’ os direitos, liberdades e garantias, optimizando a sua normatividade e actualidade”.[31]

No concernente à atuação do Judiciário, como se sabe, não há para o magistrado a solução pronta, preestabelecida e unívoca para as questões jurídicas a serem resolvidas. Segundo Luís Roberto Barroso, “a visão do intérprete como a realidade subjacente são decisivas no processo interpretativo. Tais circunstâncias são potencializadas pela presença, no relato das normas constitucionais, de cláusulas gerais e enunciados de princípio cujo conteúdo precisará ser integrado no momento de aplicação do Direito. Conceitos como ordem pública, dignidade da pessoa humana ou igualdade poderão sofrer variação ao longo do tempo e produzir consequências jurídicas diversas”.[32]

O mesmo constitucionalista afirma, ainda, que a mutação constitucional pode ocorrer quando existe uma nova percepção do Direito a partir da alteração dos valores de determinada sociedade – a ideia do bem, do justo pode variar com o tempo, ou, igualmente, quando diante do impacto de alterações da realidade sobre o sentido, ou a validade de uma norma – o que antes era legítimo hoje pode não ser e vice-versa. [33]

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Assim, não há mais o juiz como sendo “la bouche de la loi” (a boca da lei) da época de Montesquieu, mas o juiz pensante, que se utiliza do processo intelectivo para realizar os ajustes necessários ao ordenamento jurídico que não é de todo perfeito. Encontra, então, bases nos princípios de justiça e nos direitos fundamentais plasmados na Constituição, com o objetivo de adequar a lei que for aplicada ao caso concreto e o faz quando supre lacunas ou a interpreta adequadamente dando-lhe real sentido, podendo, até mesmo, se for o caso, considerá-la inconstitucional.

Nota-se, desse modo, uma mudança de paradigma, tanto no que toca à concepção da fonte legal ou do princípio da legalidade – que antes era visto a partir de uma dimensão formal, hoje, há nele conteúdo substancial, quando se pode chamá-lo de princípio da estrita legalidade ou da legalidade substancial –, quanto à atuação do magistrado ou da jurisdição. Quer dizer: antes a lei se encontrava numa posição de superioridade em relação à Constituição, hoje, deve se subordinar a esta; antes, o juiz apenas enquadrava o caso concreto (norma-fato) à norma legal em abstrato (norma-tipo) ou subsunção – fruto do positivismo kelsiano –, hoje, interpreta a norma jurídica e supre as suas omissões ou imperfeições.

Nesse passo, o juiz pós-positivista, consoante doutrina Luiz Guilherme Marinoni, deve “atribuir sentido ao caso, definindo as suas necessidades concretas, para então buscar no sistema jurídico a regulação da situação que lhe foi apresentada, ainda que tudo isso obviamente deva ser feito sempre a partir da Constituição”.[34]

Ao eleger a técnica processual adequada, o juiz deve, segundo o mesmo jurista, interpretar a norma processual de acordo com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva e se utilizar das técnicas de interpretação conforme e declaração parcial de nulidade sem redução de texto, como forma de evitar a declaração de inconstitucionalidade.[35]

No caso de omissão de regra processual ou de inexistência de técnica processual adequada ao caso concreto, Marinoni leciona que antes de escolher a técnica processual adequada, o juiz deve demonstrar as necessidades de direito material, indicando a forma encontrada. Após a sua escolha, “deverá demonstrar que as necessidades de direito material exigem uma técnica que não está prevista pela legislação processual. Porém, ao juiz não bastará demonstrar a imprescindibilidade de determinada técnica processual não prevista pela lei, mas também argumentar, considerando o direito de defesa, que a técnica processual identificada como capaz de dar efetividade à tutela do direito é a que traz a menor restrição possível à esfera jurídica do réu”.[36] Vale dizer: demonstra-se que “determinada situação de direito material deve ser protegida por certo tipo de tutela jurisdicional, e, para que essa modalidade de tutela jurisdicional possa ser implementada, deve ser utilizada uma precisa técnica processual”[37]

Destarte, toda a atuação jurisdicional, no sentido de demonstrar as necessidades de direito material e da escolha da técnica processual idônea, deve conter uma justificativa. Deve o juiz motivar de forma a externar integralmente o seu raciocínio judicial, com o fim de permitir o controle crítico de sua atividade. Esse controle que se exige da atividade jurisdicional envolve, segundo Marinoni, necessariamente: “a compreensão do significado das tutelas no plano do direito material, das regras do meio idôneo e da menor restrição e mediante o seu indispensável complemento, a justificação judicial”.[38]

Por tudo isso, é fácil perceber que o Estado constitucional legislador tem o dever de proteção ou de tutela aos direitos fundamentais, por meio de normas e atividades fático-administrativas e vinculado sempre estará às questões sociais, aos princípios de justiça e ao texto constitucional. Igualmente, o Estado constitucional jurisdicional guarda o dever de tutelar os direitos fundamentais – e qualquer espécie de direito em função do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (artigo 5º, XXXV, da Constituição) –, mesmo ao se deparar com eventuais omissões de tutela normativa, quando será obrigado a supri-las. Enfim, tutelar o direito, na perspectiva do juiz, é aplicar a lei a partir dos direitos fundamentais, das normas constitucionais e dos valores que elas envolvem.

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Sobre a autora
Gabriela Fonseca de Melo

Pós graduada em Direito e Processo do Trabalho no Mackenzie de Brasília. Servidora Pública. Assistente do Ministro Augusto César Leite de Carvalho no Tribunal Superior do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Gabriela Fonseca. A necessidade de se mitigar o duplo grau de jurisdição em prol da plena efetividade do direito fundamental à tutela jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4614, 18 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46305. Acesso em: 19 abr. 2024.

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