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Desconcentração subjetiva do exercício do poder público e a promoção dos direitos sociais

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Agenda 08/03/2016 às 14:08

4. A participação popular por meio da função jurisdicional como exigência contemporânea e funcional da harmonia constitucional.

Identificados o vínculo, o obrigado e a obrigação, força é reconhecer que há um direito que lhes é correspondente e um sujeito que o titulariza: o direito, traduzido no desempenho estatal eficiente e efetivo; o credor, o povo. Desse modo, se o componente executivo do Estado inadimplementa desarrazoavelmente a Constituição, tem o povo prejudicado, num Estado democrático de direito e em respeito às instituições típicas deste, para além da legitimidade, o poder de exigir do componente jurisdicional do Estado o resguardo da Carta Política e, de conseguinte, a tutela do seu direito, constituindo grave ofensa à Constituição eventual postura de indiferença, sob o pretexto de se homenagear o princípio da “separação” dos “poderes”.

De se notar que a função jurisdicional do poder político é ontológica e constitucionalmente inerte, somente agindo quando diante de um pedido possível de um interessado legítimo e sob o mais intenso e pleno contraditório, tal como é razoável e legitimamente conferido à Fazenda do Povo. Desse modo, não passa ilesa a críticas a alegação de que a função jurisdicional do poder político (e competência jurídico-constitucional), ao conferir curso institucional ao controle popular dos atos ou omissões das instâncias governativas estaria empreendendo protagonismos, uma vez que esse “controle”, como antevisto, é do povo, administrado-jurisdicionado, que pede a tutela de um direito, lesado ou até mesmo somente ameaçado, ao que a função jurisdicional no máximo julga-o procedente, mas nunca citra, ultra ou extra petita, sob pena de nulidade.

 A Constituição, resultante do poder constituinte originário, consubstancia-se na razão de ser e fundamento de existência e validade do poder constituído, do qual qualquer das funções constitui-se mera fração da sua expressão.

É a Constituição, portanto, consoante a compreensão modernamente concebida, a entidade principiológica e normativa fundante, estruturante e subordinante da atuação de todos os atores políticos. Na expressão de Piçarra, “a constituição não funciona aqui como um mero repositório de princípios, carecidos de força jurídica vinculativa, mas como norma fundamental fornecedora de critérios ou parâmetros jurídico-materiais de validade dos actos dos três poderes constituídos, para cuja observância concorrem os recíprocos controlos interorgânicos. Tal parâmetro consubstancia-se, essencialmente, no catálogo constitucional dos direitos fundamentais”.[24]

Sendo a Constituição a fonte formal e material de onde provém o poder político e a configuração tripartite deste, dela, portanto, é que decorre a capacidade específica, primária e preponderantemente afeta à função jurisdicional do poder, consubstanciada na solução e composição dos conflitos sociais intersubjetivos e, cada vez mais acentuadamente, na guarda e defesa do ordenamento jurídico, máxime dos postulados e valores normativos constitucionais, ainda que eventual insubordinação advenha dos agentes políticos integrantes da função legislativa ou executiva do Poder.

Por tais razões, a fiscalização e o controle jurisdicional da instância governativa do poder, necessária e inafastavelmente provocados pelo Povo (jurisdicionado, considerado individualmente ou por seus vários organismos sociais representativos), dada a inércia indissolúvel da função jurisdicional, não devem ser entendidos como perigoso começo de negação da concepção trímera do poder estatal, tampouco deve merecer a crítica do desfalque legitimatório.

Ao contrário, como ressalta Flávio Dino de Castro e Costa, “não existe incompatibilidade principiológica entre o exercício do controle jurisdicional sobre a atuação dos demais Poderes e o postulado inscrito no art. 2.º da nossa Constituição”[25].

Esta reorientação tende a aprimorar o Estado, na medida em que estimula a funcionalidade e operatividade do sistema, cujos efeitos se traduzirão em efetividade constitucional.

Por mais contraditório que, superficial e preliminarmente, possa parecer, o controle injuntivo desincumbido pelo Povo por meio da função jurisdicional do poder, a partir da Constituição, tende a promover, isto sim, a estabilidade do sistema, fazendo com que os subcomplexos de capacidade atuem não se subordinando, mas coordenando-se pelo bem comum, na medida em que devem estar voltados e convertidos para o atingimento do projeto político social delineado na Constituição. Isso responde à carga eficacial do fragmento enunciado da harmonia de que fala o texto constitucional, adjunta à independência dos poderes[26].

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Nessa mesma vertente é o pensamento de Krell quando observa que, “no fundo, a questão envolve a própria supremacia da Constituição: se o texto da Carta Federal declara a proteção ao meio ambiente e a promoção da saúde pública expressamente como deveres do Poder Público, tem que ser dada também a possibilidade ao Judiciário de corrigir as possíveis omissões dos outros Poderes no cumprimento destes deveres. Isto vale especialmente para casos em que a situação omissiva está claramente consubstanciada e não há dúvidas a respeito da atividade necessária para sanar o estado de ilegalidade”.[27]


5. A legitimidade popular – princípio democrático – e o controle da função executiva por intermédio da função jurisdicional.

Konrad Hesse[28] fala da “vontade constitucional”, conclamando a que esta deva ser “honestamente” preservada e solidariamente praticada, pois “quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático. Aquele que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado”.

De quem falte o verdadeiro convencimento de que o poder emana do povo; de quem não se conforma como mandatário da vontade geral do povo; de quem não devote o exercício do poder ao múnus público, só se espera resistência a essa atuação controladora popular por meio da função jurisdicional. Essa é a crise que enfrenta o Brasil. Não é uma crise da Constituição. Não é uma crise do Estado brasileiro. É uma crise de estadistas.

Há vários modos de o Povo postular e perseguir dita substanciação constitucional, seja pelo recorrente, mas espasmódico, veredicto das urnas, seja pela pressão de movimentos sociais organizados etc.

Porém, indubitavelmente, um desses instrumentos, que está formal e constitucionalmente posto à disposição popular, consiste, desenganadamente, na função jurisdicional do poder político.

Ocorre que esta ainda negligencia esse múnus que a sistemática constitucional lhe atribuiu, presa que está, por vezes voluntariamente e por concepções interna corporis, à compreensão ultrapassada de certos dogmas juspolíticos, dos quais se destacam o princípio da independência dos poderes, a pseudo carência de legitimidade popular, além da indisponibilidade intelectual para enfrentar os desafios representados pelas teorias da “reserva do possível” e da “reserva de consistência”[29].

Esse é o quadro que ainda predomina e que representa o estágio atual, no que diz respeito ao tema do controle popular dos atos administrativos por meio da função jurisdicional do poder político, na perspectiva de conferir níveis satisfatórios de efetividade aos direitos fundamentais sociais.

Mas é preciso reconhecer que a questão estritamente política ficou lá atrás, nas discussões que culminaram com a promulgação da Constituição. A partir dela têm-se preceitos juspolíticos e como tais submetem as ações e manifestações dos atores políticos, que lhes sejam posteriores.

Desse modo, impõe-se que se dissemine a compreensão moderna e funcional dos dogmas jurídicos prenunciados, como também as modificações comportamentais no interior da demanda judicial cuja pretensão deduzida tenha por objeto um bem da vida que se relacione diretamente com a efetividade dos direitos sociais, a partir da tutela jurisdicional dos atos administrativos. Nesse sentido, observa Krell que “a limitação do controle judicial dos atos administrativos perde justificativa na medida em que aumenta a intensidade da afetação de direitos fundamentais”.[30]

Não se pode perder de vista, na apreciação desses institutos juspolíticos (harmonia, independência dos poderes e legitimidade), aquilo que tem sublinhado invariavelmente a experiência política nacional (contextualização espaço-temporal, subjetivo-material do Direito; âmbitos de valência da norma; tridimensionalidade do fenômeno jurídico), desde que se iniciou a prática democrática da eleição pelo voto popular direto, consistente no mais franco e insolente desprezo aos compromissos republicanos, alardeados e formalizados em campanha pelos pretendentes aos assentos executivos, momento este em que os postulados fundamentais da Constituição são solenemente exaltados.

Os que disputam o voto popular costumam apresentar-se com um programa de governo e uma penca de promessas e intenções, normalmente consentâneos aos ditames da Constituição. Ocorre que, ao depois de eleitos e já abancados, fazem do descompromisso para com muito daquilo que os fez merecer e conquistar o apoio da vontade majoritária do povo, a sua primeira, convicta, inarredável e mais estável ação administrativa.

Quer-se com essas ilações de cunho político-sociológico-axiológico apenas chamar a atenção para a seguinte indagação: com quem de fato está a crise de legitimidade?

É preciso, então, deslocar essa tensão, que notoriamente tem girado em torno do elemento subjetivo, na vertente mesmo da pessoa dos agentes políticos, e passar a analisá-la sob o prisma institucional.

Fazendo-se isso, logo se vê que a exasperação que toma conta de alguns circunscreve-se a aspectos de vaidade ou de temor dos riscos institucionais a interesses inconfessáveis, antes de ser algo que pudesse efetivamente comprometer o equilíbrio do poder.

O pretendido e decantado distanciamento forte da função jurisdicional do poder com o sistema político não deve ser de modo algum desprezado ou expungido quando em perspectiva a natureza e o exercício da função executiva do mesmo poder. À parte o acesso do elemento subjetivo que lhe empresta corpo e lhe presenta, que se dá por meio do voto popular, em processo que, embora regulado normativamente, tem acentuado matiz político, os desempenhos dos misteres típicos da Administração Pública hão de ser igualmente imparciais e neutros e de conformidade com os preceitos jurídicos positivados, pois que o fato de ser eleito não ressalva o já administrador público do jugo jusfundamental estatuído na Constituição. Uma vez eleito, o homem político, vale dizer, do sistema político, passa a ser agente administrativo e, nestes termos, agente do sistema jurídico, tanto quanto o deve ser o agente jurisdicional[31].

Ora, frise-se, o Judiciário age por provocação, defere ou não defere pedido, não é protagonista, não age moto proprio, não faz nem empreende ações. O Judiciário substitui a autotutela para compor, sob o Direito, os conflitos interpessoais e, uma vez que se atinja a certificação do direito, cumpre não olvidar que os protagonistas continuam a ser as partes substanciais da relação, ou seja, os jurisdicionados, os administrados, os legislados, de um lado, e, do outro lado, o organismo Estado. Eles, sim, é que irão atender não ao comando do juiz mediatamente, mas à lei e à Constituição, do qual a decisão injuntiva da função jurisdicional é veículo certificador ou introdutor da norma, individual e concreta[32]. 

Sobre o autor
Adriano Luís de Almeida Silva

Especialista e mestre em direito. Assessor Jurídico e Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Adriano Luís Almeida. Desconcentração subjetiva do exercício do poder público e a promoção dos direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4633, 8 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46977. Acesso em: 23 dez. 2024.

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