Este texto visa estabelecer alguns parâmetros de aplicabilidade da norma consumerista e de responsabilização civil das partes por atos ilícitos cometidos no interior de condomínios edilícios.
Para atender a tal desiderato, primeiramente, é necessário que no atentemos à possibilidade de direcionar a resolução de um conflito de interesses para o conteúdo normativo (princípios e regras) do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Para tanto, é necessário verificar se as partes envolvidas – condomínio e moradores – são legítimas, se podem se valer do microssistema e, com isso, receber tratamento diferenciado.
O CDC possui três características importantes, tratando-se de um microssistema autônomo, de uma lei principiológica, e que contém normas de ordem pública e de interesse social[1].
A relação de consumo pressupõe a existência da figura de um consumidor e de um fornecedor, com as equiparações previstas no próprio CDC. Essa é a condição necessária e suficiente para serem aplicadas as normas do CDC. É assente, no entanto, na doutrina e jurisprudência, que o CDC não se aplica ao âmbito interno do condomínio, ou seja, entre condôminos.
O condomínio não tem personalidade jurídica. Não é pessoa física nem jurídica. Não presta serviços mediante remuneração. Constitui-se em uma comunhão de interesses, pela qual são rateadas despesas. Não tem objetivo de lucro, distinguindo-se, assim, das sociedades.
O condomínio nada mais é, em essência, que a massa ou o conjunto de condôminos, isto é, o complexo de co-proprietários da coisa comum. Ora, não teria sentido imaginar que cada um dos co-proprietários pudesse ser considerado “consumidor” em relação aos demais e que estes, por sua vez, pudessem ser tidos na qualidade “fornecedores” de “produtos” e/ou de “serviços” uns aos outros, co-respectivamente, pois isto não só contrariaria a natureza mesma das coisas como aberraria dos princípios e das normas jurídicas disciplinadoras da espécie, destoando por completo da realidade e da lógica mais complementar.
Ademais,
não existe verdadeira e própria relação de consumo, não podendo o condomínio, a toda evidência, ser considerado “fornecedor de produtos e serviços”, nem o condômino “consumidor final” de tais “produtos e serviços”, como é de meridiana clareza, ou, em outros termos, de primeira, elementar e inafastável intuição.[2]
À evidência, a relação jurídica estabelecida entre os condôminos e o condomínio não pode ser tutelada pelo CDC.
Note que o condômino é responsável pelo pagamento das despesas condominiais, inexistindo a posição de consumidor final exigida pelo art. 2º do CDC. O condomínio, por sua vez, é responsável pela administração, fiscalização e pelos investimentos dos valores recebidos no empreendimento imobiliário, inexistindo a posição de fornecedor de produto ou serviço exigida pelo art. 3º do CDC.
Nesse sentido, é a jurisprudência do STJ:
CIVIL E PROCESSUAL. AGRAVO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESTITUIÇÃO. CONTRATO DE EDIFICAÇÃO POR CONDOMÍNIO. CDC. INAPLICABILIDADE. INCIDÊNCIA DA LEI N. 4.591/64. – Na hipótese de contrato em que as partes ajustaram a construção conjunta de um edifício de apartamentos, a cada qual destinadas respectivas unidades autônomas, não se caracteriza, na espécie, relação de consumo, regendo-se os direitos e obrigações pela Lei n. 4.591/64. – Agravo não provido. (AgRg no Ag 1307222/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, j. em 04/08/2011, DJe 12/08/2011).
CIVIL E PROCESSUAL. CONTRATO DE EDIFICAÇÃO POR CONDOMÍNIO. AÇÃO DE COBRANÇA E INDENIZAÇÃO MOVIDA POR CONDÔMINOS CONTRA OUTRO. MULTA. REDUÇÃO. CDC. INAPLICABILIDADE. INCIDÊNCIA DA LEI N. 4.591/64, ART. 12, § 3º. I. Tratando-se de contrato em que as partes ajustaram a construção conjunta de um edifício de apartamentos, a cada qual destinadas respectivas unidades autônomas, não se caracteriza, na espécie, relação de consumo, regendo-se os direitos e obrigações pela Lei n. 4.591/64, inclusive a multa moratória na forma prevista no art. 12, parágrafo 2º, do referenciado diploma legal. II. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 407.310/MG, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, j. em 15/06/2004, DJ 30/08/2004, p. 292).
Por conseguinte, a relação jurídica existente entre condômino e condomínio edilício é regida pela Lei de Condomínio e Incorporações Imobiliárias, isto é, pela Lei n. 4.591/64.
Neste momento, portanto, diante da não aplicação do CDC às relações entre condômino/condomínio, e da existência de legislação específica regulamentando essa relação, cabe-nos analisar a responsabilidade dos condomínios edilícios em casos de furto e danos de veículos estacionados em seu interior.
A bem da verdade, a legislação condominial é absolutamente silente no que tange à hipótese de responsabilidade civil no condomínio edilício, o que impõe algumas considerações prévias acerca dessa responsabilidade.
Como cediço, a ação de indenização fundada em responsabilidade civil de direito comum é regulamentada pelo art. 186 do atual Código Civil brasileiro, que dispõe: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”.
Com efeito, para surgir o dever de indenizar, é necessário que concorram três elementos: dano, entendido como a ocorrência do efetivo prejuízo; conduta culposa do agente e nexo de causalidade entre um e outro, que pode não se estabelecer, caso se comprove ter sido o dano provocado por agente externo ou decorrente de culpa exclusiva da vítima.
Considerando tais elementos, há entendimento de que o condomínio é responsável por furtos e danos em seu interior, pois, raramente, há interesse dos condomínios em assumir tal responsabilidade por escrito, em convenção, regulamento interno ou assembleia geral:
Com a utilização de modernos sistemas de segurança e com a contratação, cada vez mais frequente, de guardas particulares ou de empresas de vigilância e segurança armada, a responsabilidade dos condomínios pela subtração criminosa de bens das unidades privativas passa a mudar de feição. Isso porque as despesas para a compra e a utilização de bens e equipamentos de segurança, como circuito fechado de câmeras e TV, sistemas de gravação de imagens em tempo real e botões antipânico, bem como para a contratação de serviços de ronda, vigilância e segurança armada, são todas arcadas pelos condôminos, que, no final das contas, buscam um maior resguardo de sua integridade física e de seus bens.
Ainda:
Se o condomínio utiliza sistema de vigilância próprio ou contrata empresa de segurança privada e armada, ainda que não haja previsão em convenção ou regulamento, passa a assumir a obrigação de zelar pela integridade dos proprietários e dos bens das unidades autônomas[3].
Esse entendimento, no entanto, não vem prevalecendo no âmbito da jurisprudência. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), para que o condomínio possa ser responsabilizado por furtos ou danos ocorridos nas áreas comuns ou na garagem do edifício, é necessário que haja, na convenção de condomínio ou no regimento interno, cláusula expressa prevendo tal responsabilidade. Nesse sentido:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE DO CONDOMÍNIO POR FURTO EM ÁREA COMUM. NECESSIDADE DE PREVISÃO EXPRESSA NA CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO. AUSÊNCIA DA CONVENÇÃO OU REGIMENTO INTERNO DO CONDOMÍNIO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Ausente a Convenção de Condomínio, ou Regimento Interno do mesmo, inviável aferir se há previsão expressa de responsabilidade nos casos de furto em área comum. A presença da cláusula é condição para a responsabilização do condomínio nos termos da jurisprudência pacífica desta Corte. Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AREsp n. 9.107/MG, Relator o Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 24/8/2011.)
RESPONSABILIDADE CIVIL – CONDOMÍNIO – SUBTRAÇÃO DE EQUIPAMENTO DE SOM E DE PERTENCES DEIXADOS NO INTERIOR DE AUTOMÓVEL ESTACIONADO NA GARAGEM COLETIVA DO PRÉDIO – INEXISTÊNCIA DE PREPOSTO, COM A INCUMBÊNCIA DE GUARDAR E VIGIAR OS VEÍCULOS – ENCARGO DE PROMOVER VIGILÂNCIA, COMETIDO AO SÍNDICO, EM CARÁTER GENÉRICO, QUE HAVERÁ DE SER EXERCIDO EM SINTONIA COM OS MEIOS POSTOS À SUA DISPOSIÇÃO, PELO ORÇAMENTO DE RECEITAS – INEXISTÊNCIA DE APARATO ESPECÍFICO DE VIGILÂNCIA E SEGURANÇA – SUBTRAÇÃO, ADEMAIS, QUE TERIA SIDO COMETIDA, COM AMEAÇA A MÃO ARMADA – NÃO CONFIGURAÇÃO DE CULPA IN VIGILANDO– RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. – Ao contrário da posição adotada pela Corte de origem, mostra-se relevante a necessidade expressa previsão na convenção ou, ainda, de deliberação tomada em assembleia no sentido de que o condomínio tenha, especificamente, serviço de guarda e vigilância de veículos. In casu, a circunstância de existir porteiro ou vigia na guarita não resulta em que o condomínio estaria a assumir a prefalada guarda e vigilância dos automóveis, que se encontram estacionados na área comum, a ponto de incidir em responsabilidade por eventuais subtrações ou danos perpetrados. – Em harmonia com os precedentes desta Corte Superior, bem como com lições doutrinárias, merece acolhida o inconformismo, a repercutir na inversão do ônus da sucumbência. – Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 618.533/SP, Relator o Ministro Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 4/6/2007).
Sobre o tema, Rui Stoco pontifica:
Os edifícios em condomínio não respondem, como regra, pelo furto de veículos, seus acessórios ou objetos neles deixados, quando estacionados na garagem do prédio. Ao estacionar seu veículo na vaga de garagem existente no prédio o condômino ou apenas morador ou usuário não transfere a sua guarda à administração do condomínio, nem entre eles se estabelece um contrato de depósito. Aliás, quase sempre as convenções de condomínio trazem disposição nesse sentido, pois, como ali está firmado, as vagas de garagem constituem unidades agregadas à própria unidade residencial ou comercial pertencente ao usuário. Com essa previsão expressa de inexistência de garantia, o condômino, locatário ou mero usuário já não poderá alegar ignorância, posto que alertado, de modo que lhe caberá tomar maiores providências no que pertine à segurança, mantendo seu veículo permanentemente trancado, com os vidros fechados; não deixando objetos de valor visíveis em seu interior; instalando alarme, trava de segurança, sistema de corte de combustível e mantendo seguro do veículo. A obrigação de guarda só pode prevalecer se estiver expressamente prevista na Convenção ou no Regulamento Interno do condomínio ou se este mantiver guarda ou vigilante para o fim específico de zelar pela incolumidade dos veículos estacionados na garagem do prédio.[...] Portanto, para que se possa responsabilizar o condomínio, seria necessário que, por deliberação dos condôminos, determinadas medidas de segurança devessem ser adotadas e houvessem falhado no caso concreto, por culpa do síndico ou de algum preposto[4]
Dessa forma, o condomínio só responde por furtos e danos de veículos ocorridos nas suas áreas comuns se isso estiver expressamente previsto na respectiva convenção de condomínio ou em seu regimento interno.
E um ponto aqui merece nossa especial atenção: mostra-se relevante a necessidade de expressa previsão na convenção ou no regimento interno de que o condomínio tenha, especificamente, serviço de guarda e vigilância de veículos. O simples fato de haver porteiro ou vigia na guarita não resulta na conclusão de que o condomínio estaria a assumir a guarda e vigilância dos veículos estacionados na área comum, a ponto de incidir em responsabilidade por eventuais subtrações ou danos perpetrados.
O fato de existir cerca elétrica e câmera de segurança ou de haver contratado empresa para prestação de serviços de zeladoria não significa que o condomínio assumiu tacitamente a obrigação de guarda dos bens dos condôminos e não afasta a cláusula de exclusão prevista em convenção. Nem mesmo a falta de funcionamento dos equipamentos, que sequer são capazes de obstar a prática de ilícitos, enseja o dever de indenizar.
Nesse sentido, o Colendo Tribunal de Justiça de São Paulo:
Responsabilidade civil. Indenização por dano moral e material. Furto em loteamento fechado. Estatutos da associação de moradores não fixam a obrigação de indenizar eventual dano ao patrimônio. A mera existência de portaria e controle de pessoas não constitui fator capaz de gerar direito de reparação por atos ilícitos praticados por terceiros. Ausência de imputação de culpa à ré. Recurso da ré provido, prejudicado o recurso adesivo interposto pelo autor. (Apelação Cível n. 0274535-04.2009.8.26.0000, 10ª Câmara de Direito Privado, Rel. Coelho Mendes, j. em 30.07.2013).
Ademais, é possível que a própria convenção condominial exclua expressamente a responsabilidade do condomínio, sendo, pois, lícito aos condôminos estabelecer como indevida indenização pelo condomínio em virtude de danos sofridos por veículos estacionados na garagem do edifício, sendo considerada válida a cláusula de não indenizar, consoante se verifica na ementa:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – FURTO EM UNIDADE CONDOMINIAL – PREVISÃO EXPRESSA DE AUSÊNCIA DE RESPONSABILIZAÇÃO NA CONVENÇÃO – INDENIZAÇÃO AFASTADA – RECURSO IMPROVIDO. Estabelecendo a Convenção/Regulamento cláusula de não indenizar, não há como impor a responsabilidade do condomínio por furtos ocorridos no seu interior, ainda que exista esquema de segurança e vigilância, porque não desqualifica a força da regra livremente pactuada pelos condôminos. (APELAÇÃO CÍVEL N. 1.0024.09.760305-4/001, Relator Des. Rogério Medeiros, DJ 29/05/2014).
Dessa forma, estabelecendo a convenção cláusula de não indenizar, não há como impor a responsabilidade do condomínio, ainda que exista esquema de segurança e vigilância, que não desqualifica a força da regra livremente pactuada pelos condôminos.
O conceito de responsabilidade não pode ser estendido a ponto de fazer recair sobre o condomínio o resultado do furto ou do dano ocorridos na área comum, numa indevida socialização do prejuízo. Isso porque o condomínio, embora incumbido de exercer a vigilância do prédio, não assume uma obrigação de resultado, pagando pelo dano porventura sofrido por algum condômino. Sofrerá, no entanto, pelo descumprimento da sua obrigação de meio se isso estiver previsto na convenção.
Ademais, havendo ou não cláusula excludente da responsabilidade, o condomínio tem o dever de indenizar se o furto ou dano for cometido, por exemplo, por vigia ou empregado do edifício, pois no caso configura-se culpa in eligendo do síndico na contratação de pessoal.
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – RESPONSABILIDADE CIVIL – CONDOMÍNIO – FURTO DE VEÍCULO OCORRIDO EM GARAGEM DE EDIFÍCIO – I. Consolidada na jurisprudência do STJ a orientação segundo a qual o condomínio de apartamentos é responsável por ato de seu preposto que causa dano a condômino, sobretudo quando deixa de exercer a devida vigilância. II. O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma ter com o que lhe pertence (art. 1.266, 1ª parte, Código Civil). Se ela se danifica ou é furtada, responde aquele pelos prejuízos causados ao depositante, por ter agido com culpa in vigilando. (STJ – REsp 26.458-7 – SP - Rel. Min. Waldemar Zveiter –DJU 03.11.2009).
Para nós, portanto, o entendimento jurisprudencial prevalecente parece ser o posicionamento mais razoável, partindo do pressuposto de que a responsabilidade do condomínio por crimes de furto e de dano ocorridos nas áreas comuns, gerando prejuízo aos condôminos, só será configurada quando prevista expressamente em convenção, regimento interno ou assumida em Assembleia Geral, dentre as normas preestabelecidas pelos condôminos, salvo na hipótese de culpa do preposto.
Notas
[1] SILVA, Rafael Simonetti Bueno da. Direito do Consumidor: Magistratura e Ministério Público. Questões comentadas. SILVA, Rafael Simonetti Bueno da; MASSON, Cléber Rogério (Coord.). Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011.p. 17-18.
[2] Apelação n. 614098-00/2 – 2º TAC/SP – Juiz Milton Sanseverino. 3ª Câm., j. em 23/10/2001.
[3]MORAIS, Paulo. Responsabilidade civil do condomínio.Folha de S.Paulo Online. 02117. Disponível em: <http://www.morais.com.br/casos1.html>. Acesso em:25fev. 2016.
[4] STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 6. ed.São Paulo: RT, 2004. p. 661-662.