CRISE DO SISTEMA REPRESENTATIVO
4.1.A decomposição da vontade popular
A implantação plena de uma vontade geral, que é o horizonte do Sistema Representativo, foi frustrada pela decomposição da vontade popular em vontade de grupos. E estes, por sua vez, não pertencem a uma só classe, acarretando a existência de um pluralismo de interesses com predominância de alguns destes.
Do ponto de vista histórico, o processo de decomposição da vontade popular em vontade de grupos experimentou três fases. A primeira foi a adoção da técnica do sistema de representação proporcional., que consistia no espelhamento no Parlamento das diversas opiniões políticas existentes no seio da sociedade, que tinham sua importância de acordo com o número de pessoas que as esposavam. Apesar de teoricamente estabelecer uma harmonia, coesão e correspondência entre a sociedade e o poder, a implantação da representação proporcional pode tornar a elaboração das leis morosa e desordenada, além da possibilidade de inconvenientes administrativos, pois a diversidade de opiniões impediria uma atuação estatal mais eficiente, especialmente nas áreas em que se deve decidir com urgência.
Num segundo momento, foi a representação profissional a responsável pela decomposição da vontade popular. Ela se dava através da representação no Parlamento por parte dos setores profissionais, recrutados por organizações trabalhistas e patronais, fora do critério político tradicional da seleção pelo sufrágio popular. Como conseqüência, a representação acabava sendo de um só ou de algumas das classes mais poderosas, havia competição econômica, social e ideológica, com alguns grupos, inclusive, tendo vinculação à doutrina fascista. Tudo isso contribuiu para o descrédito dessa modalidade de representação.
A terceira e atual fase é caracterizada pela formação dos grupos de pressão. São quaisquer grupos sociais que, para satisfazer seus interesses próprios, procuram obter determinadas medidas dos Poderes do Estado e influenciar a opinião pública.
Cumpre ainda se fazer a distinção entre grupos de pressão e grupos de interesse. Estes possuem um caráter de permanência no seio da sociedade, enquanto que aqueles possuem certa transitoriedade, visto que se formam em prol de um objetivo específico.
Os grupos de pressão sempre existiram, em todos os regimes, desde a Antigüidade até os nossos dias, porém, em virtude da consagração constitucional dos direitos e garantias individuais, que abarcam a liberdade de associação e reunião, expressão do pensamento, direito de petição nas sociedades democráticas do Ocidente, tem-se verificado uma atuação mais forte e permanente deles, pela contínua formação de novos grupos nas relações de poder.
Como conseqüência, os governantes se intimidam e passam a seguir as instruções dos grupos, defendendo os interesses destes em detrimento dos interesses coletivos. Além disso, existem outros inconvenientes, tais como: a ameaça que trazem para a atuação independente dos órgãos públicos; uso, não raras vezes, da intimidação, suborno e corrupção; ação manipuladora da opinião pública através dos meios de comunicação; prevalência que acabam por conferir aos interesses que desfrutam maior poder econômico ou organização.
Por outro lado, podemos perceber algumas vantagens em decorrência da atuação de tais grupos: constituem instrumentos de informação sobre a opinião pública para os governantes; expressões de interesses que muitas vezes passariam inadvertidos; contribuição na elaboração de aspectos técnicos de leis; reforço de outras entidades, sobretudo a partidos políticos, nos pontos de comunhão ou divergência. Darcy Azambuja, inclusive, enfatiza a primeira vantagem apresentada quando diz que a melhor fonte de informação sobre a opinião pública são os grupos de pressão, pois, diante da impossibilidade de lidar diretamente com a opinião de todo o corpo eleitoral, o representante teria à sua disposição a opinião pública com pureza e imparcialidade, teoricamente. Contudo, verifica-se que cada meio de comunicação emite a opinião de um partido, de um grupo financeiro ou de uma associação de classe, ou seja, os órgãos de publicidade, pelo vulto de capital que necessitam, tornam-se meios de propaganda para poderosas concentrações financeiras.
Para conhecer as opiniões divergentes, o representante necessitaria ter disponibilidade de tempo e um acesso a um grande número de meios de comunicação, ao invés disso, ele decide com as direções dos partidos políticos, que constituem a terceira fonte de informação sobre a opinião pública. O partido, entretanto, quando se coloca numa posição intermediária entre o representante e o representado cria uma dupla relação: representado -> partido e partido -> representante. Nessa relação o mandato livre é afetado. E o partido tem que buscar a opinião pública, enquanto que os grupos já a representam – ainda que não em sua plenitude – desde que pleiteiem interesses lícitos e usem meios lícitos de persuasão.
4.2.Da representação política à representação de interesses
Segundo o entendimento de Norberto Bobbio, a crise do Regime Representativo decorre da substituição da representação política pela representação de interesses. É oportuno distinguir essas duas representações. A representação política caracteriza-se pelo mandato livre e busca satisfazer os anseios da coletividade enquanto que a segunda se dá pelo mandato vinculado e pela representação de interesses parciais, pertencentes à grupos organizados.
Essa permuta no âmbito da representação decorre de uma transformação do poder do Estado, que consiste em uma crescente expansão da interferência dos grupos de interesse nas relações de poder político. Estas se caracterizam cada vez mais como relações de troca, iniciadas ainda no processo eleitoral, quando os eleitores dão apoio em forma de voto para receber, em contrapartida, benefícios de vários tipos, como patrimoniais ou de status. Além disso, existem também grupos financeiros que patrocinam campanhas eleitorais com o objetivo de criar uma vinculação com determinados candidatos, vinculação essa que, caso sejam eleitos, se transformaria em retribuição político-financeira.
4.3Outras interpretações da Crise do Sistema Representativo
Partindo da observação de que a divisão de trabalho no domínio da criação de lei causou a limitação do princípio democrático de autodeterminação, com a função do governo sendo transferida dos cidadãos organizados em assembléia popular para órgãos especiais, Hans Kelsen, em seu livro "Teoria Geral do Direito e do Estado", defende que as democracias existentes ditas "representativas" não são de fato representativas, mas constituem uma ficção da representação. Ao fazer a distinção entre a responsabilidade jurídica e a responsabilidade política (esta decorrendo do pressuposto de que um corpo eleito não tem chance, ou tem apenas uma chance reduzida, de ser reeleito caso a sua atividade seja considerada insatisfatória pelos eleitores), o insigne jurista austríaco assevera que a simples nomeação ou eleição dos representantes pelos representados não é suficiente para caracterizar uma verdadeira relação de representação. É necessário também que o representante seja juridicamente obrigado a executar a vontade dos representados, e que o cumprimento dessa obrigação seja juridicamente garantido. A garantia típica é o poder dos representados de cassar o mandato do representante, caso a atividade deste não se conforme aos seus desejos. Dessa maneira, o mandato imperativo e a revogação do mandato de funcionários eleitos, segundo o referido autor, são instituições democráticas, desde que o eleitorado seja democraticamente organizado.
De acordo com o pensamento do eminente politicólogo, Sahid Maluf, a deturpação do regime representativo consiste no fato de a soberania popular ser confundida com a vontade da classe dos representantes políticos. Diante dessa desfiguração do sistema, o supramencionado autor propõe uma solução ideal: restringir a competência dos órgãos representativos, sem se chegar ao extremo do mandato imperativo, e manter a permanência da soberania nacional, como força atuante, fiscalizadora, superior à força de representação. Verifica-se, destarte, que suas idéias se aproximam das de Kelsen, quando defende que o representante não deve querer contra o povo, nem pelo povo, mas, sim, querer com o povo ou como o povo, divergindo, por outro lado, quanto ao caráter democrático do mandato imperativo. Sahid Maluf observa, ainda, que os Estados de mais adiantada cultura social e política vêm adotando medidas para refrear os abusos, a prepotência e a irresponsabilidade das corporações representativas. Essas atitudes compõem dois grupos distintos: o primeiro compreende a separação e a limitação dos poderes, a redução do tempo de duração do mandato e a institucionalização do mandato. O segundo, a coexistência, com a representação, de certos institutos da democracia pura, quais sejam, o referendum, o plebiscito, a iniciativa popular das leis, o veto popular e outros.
Ao lado dos tratadistas que vislumbraram principalmente os aspectos concorrentes à crise do regime representativo, cumpre destacar a sensata teoria proposta por Sobolewsky, a qual objetivou fundamentar a representação política com base em um conceito sociológico de "representação". Este foi alcançado a partir do modelo de Duverger e de Burdeau, segundo o qual à representação importa estabelecer correlação ou concordância entre as decisões políticas da elite governante e a opinião pública. As formas mediante as quais se exprimiria a opinião de governantes e governados seriam as eleições, a referenda, as petições, os comícios, as notas oficiais e as declarações de governantes; e os meios técnicos e organizatórios que consentiriam uma expressão sistemática da opinião seriam os meios de comunicação de massas (imprensa, rádio, televisão, etc), os partidos políticos e os grupos de interesse. Para o insigne publiscista polonês, a representação política é um processo em seu aspecto dinâmico, isto é, uma acomodação contínua que se estabelece entre as decisões políticas e as opiniões. Além disso, a representação política não consiste apenas de relações diretas entre governantes e governados, mas também, de forma concomitante, de relações entre os cidadãos e as distintas organizações intermediárias, que servem de porta-vozes à opinião. Essa concepção se alicerça nos fundamentos da teoria marxista do Estado classista, segundo a qual cada Estado é uma representação dos interesses objetivos da classe dominante. Debaixo desse princípio geral é que se há de investigar como os cidadãos e as massas podem eventualmente influir em determinadas decisões estatais. Por último, Sobolewsky admite a impossibilidade de acomodar cada decisão política às opiniões dos governados, mas assevera que com as decisões que recaem sobre determinados assuntos de elevado interesse geral, essa adaptação ocorre.
4.4Aspectos práticos que revelam a crise do Sistema
Após abordarmos alguns pensamentos teóricos sobre a crise do regime representativo, não poderíamos deixar de discorrer sobre alguns aspectos práticos que hodiernamente revelam essa crise e sobre sua principal consequência, a saber, a expansão do desinteresse político entre as pessoas.
Inicialmente, devemos mencionar algumas fontes de distorções do sistema proporcional no Brasil. Com o sistema de representação proporcional, pretende-se que a representação se distribua em proporção às correntes ideológicas ou de interesse integradas no partidos políticos concorrentes. Segundo esse sistema, o quociente partidário, ou seja, o número de lugares cabível a cada partido se obtém através da divisão do número de votos conseguidos pela legenda pelo quociente eleitoral, que por sua vez, é determinado mediante a divisão do número de votos válidos pelo número de lugares a preencher na Câmara dos Deputados, ou na Assembléia Estadual, ou na Câmara Municipal, conforme o caso. O critério de representação proporcional, por outro lado, pode criar uma situação esdrúxula: alguns deputados são eleitos com uma votação pífia, o que revela que não possuem uma boa representatividade junto ao eleitorado. As eleições para Deputado Federal em São Paulo, em 2002, trouxeram-nos um exemplo dessa situação. Enéas Ferreira Carneiro, ao receber 1.570.000 votos, foi responsável por levar para a Câmara Federal outros cinco candidatos do seu partido, o PRONA (Partido de Reedificação da Ordem Nacional). Um desses novos deputados representará, em Brasília, o Estado mais populoso e rico do país, levando na bagagem apenas 275 votos realmente seus. Além disso, há quem sustente que o § 1º do Art.45 da Constituição Federal, ao fixar um mínimo de 8 Deputados Federais por Estado Federado e um máximo de 70, não atende ao princípio democrático do voto com valor igual para todos, consubstanciado no Art.14 da própria Lei Maior, e nega o preceito federalista de que a Câmara dos Deputados deve ser um espelho fiel das forças demográficas de um povo. Para exemplificar tal situação, podemos fazer uma comparação entre os Estados mais e menos populosos do Brasil, segundo o Censo de 2000. São Paulo, com uma população de 36.969.476 habitantes, tem o direito de eleger apenas 70 Deputados Federais, ou seja, aproximadamente um Deputado a cada 528.136 habitantes. Já Roraima, com uma população de 324.152 habitantes, tem o direito de eleger 8 Deputados Federais, isto é, um Deputado a cada 40.519 habitantes.
Num segundo momento, cumpre salientar o papel de relevo exercido pela mídia no contexto da crise do Regime Representativo e de sua principal consequência. A mídia, compreendida como o conjunto dos meios de informação e de comunicação (imprensa, televisão, rádio, internet etc), é uma das principais responsáveis pela formação de opiniões no seio da sociedade. Quando a mídia se afasta da verdade dos fatos para defender os interesses de alguns setores da comunidade em detrimento de outros, a opinião pública encontra-se deturpada, o que se reflete em deformações nos fundamentos da representação política. Pode-se afirmar que a mídia é caracterizada pela ausência de neutralidade axiológica, que pode ser natural ou decorrente da influência de grupos organizados. A primeira forma é uma consequência normal da constatação de que o ser humano, ao desenvolver uma obra cultural, não consegue se desvencilhar dos valores em que acredita, mantendo-se, mesmo que inconscientemente, parcial. A Segunda forma de ausência de neutralidade axiológica pode decorrer tanto da influência exercida por alguns grupos financeiros, em virtude do grande montante de capitais de que necessitam atualmente os meios de comunicação, quanto da vinculação da mídia a alguns segmentos da classe política. No segundo caso, normalmente se verifica a utilização do marketing político para criar uma falsa imagem de candidatos, gerando muitas expectativas no eleitorado. Quando chegam ao poder, entretanto, os eleitos muitas vezes se deparam com duas situações que os impedem de cumprir as suas promessas: a vinculação que possuem com grupos econômicos que financiaram a sua campanha eleitoral e a sua impotência diante de questões onde há a prevalência dos interesses internacionais em um planeta cada vez mais globalizado. Além disso, o acesso ao grande número de informações proporcionado pelas inovações tecnológicas incorporadas aos meios de comunicação nos últimos anos contribuiu para um maior acompanhamento das posições e atitudes dos representantes pelos eleitores. As consequências disso são a distorção da falsa imagem criada no processo eleitoral e a crescente insatisfação do povo em relação à classe política, vista progressivamente como corrupta.