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Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público por dano ambiental:

uma análise crítica

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Agenda 21/01/2004 às 00:00

6. UMA VISÃO CRÍTICA SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO POR DANOS AMBIENTAIS: NECESSIDADE DE NOVOS PARADIGMAS PARA O DIREITO PENAL.

A discussão sobre a responsabilização penal ou não das pessoas jurídicas, e em especial das pessoas jurídicas de direito público, tem uma raiz bem mais profunda do que esta até aqui discutida, situando-se como um problema que vai além de um debate estritamente dogmático, inserindo-se na análise do próprio sistema jurídico-político-econômico adotado, no que diz respeito à própria forma como a sociedade pensa, cria, interpreta e aplica o direito, e principalmente o direito penal.

A este respeito bem claro José Henrique Pierangelli: "Hodiernamente pode-se afirmar, com absoluta segurança, ser a responsabilidade ou irresponsabilidade das pessoas jurídicas, mais do que um problema ontológico ou dogmático, sendo mesmo uma questão de sistema político-econômico e de prática utilidade e eficiência. O sistema da responsabilidade individual se amolda aos postulados da dogmática tradicional, e, portanto, entre nós, no sistema do Código Penal, toda a legislação em que se adote a responsabilidade penal da pessoa coletiva deve ser realizada em legislações esparsas, ou seja, legislação penal especial, cuja elaboração reclama extrema prudência. Deve-se ter por presente, que mesmo a responsabilidade social é uma concepção bastante complexa, cujos componentes, atribuibilidade e a exigibilidade registram tanto situações de fato, como ingredientes de valoração, com bem diz David Baigún." [40]

Realmente, o meio ambiente e a vontade de sua proteção, obrigam ao rompimento com os princípios e regras do direito penal liberal. Exige-se, assim, a mudança de paradigmas do direito penal clássico para o seu correto entendimento e aplicação.

Assevere-se que ao se interpretar, por exemplo, o art. 225 da Carta Magna de 1988, no sentido de afastar a responsabilidade penal da pessoa jurídica em geral e da pessoa jurídica de direito público em especial por danos ambientais, estar-se-ia indo de encontro aos princípios que regem a hermenêutica constitucional; visualizando isoladamente uma regra em afronta à necessária interpretação sistemática que deve prevalecer.

Na realidade, a proteção ao meio ambiente deve buscar ser integrada a todo o conjunto normativo existente, merecendo uma garantia especial em face do seu objeto coletivo e da necessidade preemente de sua proteção. Flávia Piovesan, citada por Edson José da Fonseca, bem destaca: " O direito ao meio ambiente exige, para sua compreensão, a adoção de interpretação sistemática e teleológica. A análise fragmentada do direito ao meio ambiente implicará equívocos, posto que o direito ao meio ambiental interage acentuadamente com o direito à vida e à saúde, ambos direitos invioláveis." [41]

O Direito não se pode manter inerte, devendo as normas e princípios jurídicos se adaptarem aos novos desafios postos, remodelando seus conceitos e paradigmas, a fim de promover a proteção efetiva de novos bens jurídicos que surgem em toda sua pujança, como é o caso do meio ambiente.

Neste âmbito, o Direito Penal Moderno, em especial, ainda tem um fundo essencialmente individualista, e em toda a dogmática, que o informa, é lastreado em conceitos/princípios/normas/institutos que são delineados perfeitamente para proteção de bens pontualizados e específicos, como a vida, segurança, honra, etc.., mas que tem enorme dificuldade em proteger e garantir bens de caráter coletivo, ultra-geracional, como o meio ambiente.

Claramente, o direito penal ainda é ilustrado, em seus exemplos e na sua doutrina, por um repertório legislativo antiquado, que não consegue proteger bens de alcance social e coletivo, como os bens econômicos e ecológicos.

Não existe, ainda, data vênia, conjunto normativo/doutrinário forte e aplicável que consiga dar efetivamente lastro ao combate efetivo da macrocriminalidade econômica e à própria penalização justa dos crimes ambientais. Resta, assim, por mais das vezes às pessoas jurídicas criminosas, em especial, a impunidade pela inaplicabilidade de regras e à vinculação do direito penal ainda a um arcaísmo liberal individualista.

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Infelizmente, quando surgem novas normas que visam a proteger a sociedade contra delitos/crimes ambientais, por exemplo, estas adquirem um caráter pragmaticamente retórico, tendo baixa aplicação e adequação normativa por estarem em constante conflito com toda uma Teoria Geral do Direito e do Delito.

Claro a este respeito são as palavras de Fábio Guedes de Paula Machado que assevera: " Desde logo, o objetivo deste trabalho é o de demonstrar a impossbilidade de enquadramento da responsabilidade penal da pessoa jurídica no sistema jurídico-penal brasileiro tal como ele se encontra, servindo esta lei, ao lado de outras, para expressar ao Direito Penal uma função que ele não tem, qual seja, a de representar uma função simbólica." [42]

Em matéria de penalização criminal das pessoas jurídicas, o direito ambiental irá se defrontar com uma série de conflitos com postulados clássicos do direito penal, tais como a questão da culpabilidade; o problema da adequação das penas; a idéia de que a responsabilização dos diretores e administradores dos entes morais já seria suficiente. Estas idéias não têm sustentáculo nem dogmático, nem fático, como abaixo será demonstrado.

Quanto à culpabilidade, a doutrina tradicional situa-a como um dos elementos do crime que exige para sua configuração a existência de capacidade anímica e individualizada para a prática de um crime. Assim, os entes formais por não terem esta capacidade não poderiam sofrer imputação penal típica.

Ora, como já discorrido anteriormente, a culpabilidade deve adquirir uma feição social, por exemplo, baseando-se na idéia da necessidade de proteção do meio ambiente em benefício de toda a coletividade. Se o legislador previu a penalização das pessoas jurídicas, deve o Direito Penal readaptar seus conceitos para adequar-se às mudanças dos tempos, garantindo a proteção destes novos bens e valores coletivos. Bem assevera a respeito Milton dos Santos Martins : " Não é o arbítrio do legislador que faz os crimes, não dependem dos caprichos dos homem, nem do tecnicismo jurídico dos leguleios. O crime já existe na gravidade das infrações, na lesividade dos interesses legítimos, no destruir as possibilidades de vida e coexistência. O que a sociedade organizada deve em verdade punir são as ações que atentam contra si própria, mas é preciso perceber, importa compreender quais são essas ações, é urgente conscientizar-se da existência do crime que lhe corrói as entranhas morais e físicas. O dano ecológico é antes de tudo uma questão de conscientização da sociedade e a responsabilidade penal conscientização dos Juízes, MP, advogados, legisladores e executivos." [43]

Quanto à adequação das penas, a questão se apresenta de fácil resolução, já que o direito penal não se reduz apenas às penalidades de execução pessoal, quais sejam: penas privativas de liberdade (penas de reclusão, detenção, prisão simples). Há também sanções de restrição a gozo de direitos; de aplicação de multas e até de fechamento compulsório de estabelecimento. A própria Lei 9.605/98 em seu art. 23 colaciona e adapta as penas à realidade das pessoas jurídicas em geral.

Por último, a idéia de que a responsabilização dos diretores seria suficiente e a aplicação de penas cumulativas às pessoas jurídicas conduziriam a um "bis in idem", tal tese não tem amparo legal, lógico, nem social. Ambas, as pessoas físicas e jurídicas, devem ser penalizadas para que sofram principalmente o estigma da condenação penal. Sabe-se que muitas vezes tenta-se acobertar os ilícitos perpetrados sob o manto da pessoa jurídica, confiantes os delinqüentes de que desta forma escapariam de qualquer imputação. Falacioso este entendimento, a pessoa jurídica faticamente comete crimes e deve ser responsabilizada por eles.

Já, quanto à responsabilização penal das pessoas jurídicas de direito público, o direito penal tradicional e a doutrina majoritária, como visto no item pretérito, criam ainda maiores restrições e vedam a possibilidade desta espécie de responsabilização.

Os argumentos são conduzidos até o limite do absurdo, para asseverar a suposta inadequação da aplicação de sanções penais aos entes públicos. Afirmam que o Estado não pode delinqüir, já que age na estrita legalidade e se fosse penalizado criminalmente não teria mais legitimidade para se utilizar de seu "jus puniendi". Além disto, dizem que a própria apenação reverteria em prejuízo da própria comunidade que iria ao final pagar o dano perpetrado, não podendo também os entes públicos sofrerem aplicação de penas como interdição, suspensão de atividades sob pena de afetar a continuidade dos serviços públicos prestados. Estas são somente algumas objeções à tese da responsabilização penal das pessoas jurídicas de direito público, anteriormente desenvolvidas.

Data vênia, entendo não haver sustentáculo aos argumentos acima colacionados, estando os mesmos baseados em pré-conceitos e teses de cunho formal, lastreadas em um direito penal individualista e ainda arcaico. Isto porque não existe razão ontológica para diferenciar as pessoas jurídicas de direito privado das de direito público quanto à aplicação de sanções penais. Como já ressaltado, os entes públicos são uns dos maiores poluidores e degradadores do meio ambiente seja na execução de suas políticas públicas, na construção de obras públicas; e na sua própria omissão no trato e fiscalização da atuação dos entes privados.

O que não se atenta nesta discussão é para o verdadeiro preconceito ainda remanescente de que o Estado não pode responder pelos seus atos, tese esta que já foi expurgada no âmbito do direito administrativo e civil, não tendo ainda sido suplantada somente na órbita do direito penal.

Quanto à questão de que o ente estatal age na estrita legalidade e é detentor do "jus puniendi", não podendo realizar condutas ilícitas nem se auto-punir, é uma outra tese nefasta que já foi rejeitada. Há autores e jurisprudência que admitem inclusive a responsabilização do Estado por atividade legislativa e até jurisdicional, quando causam danos a outrem, porque razão então não se poderia responsabilizar também penalmente as pessoas jurídicas de direito público ?? Não há razão plausível para se pensar o contrário. [44]

Já, no que concerne à idéia da inadequação das penas por não poder o ente público sofrer interdições, nem tampouco ser condenado a pagar muitas sob o pálio de que quem vai adimplir os valores é a própria comunidade, é outro argumento sem sustentáculo, devendo as penas se adequarem à condição peculiar das pessoas jurídicas de direito público. Exemplos podem desmistificar esta tese. Imagine-se que o Estado de Pernambuco destrua uma área florestal de propriedade de um cidadão, o Estado não deveria responder por este dano também na esfera penal ? E ao final ser condenado a realizar a reparação na propriedade particular ? Porque, então, não responderia penalmente o ente público ?

Outro argumento aflorado é o de que quebraria o princípio federativo a penalização de um ente político por outro. Ora, não há também lógica neste argumento, se a União Federal destrói uma reserva florestal da propriedade do Município do Recife deverá responder penalmente pelo dano causado, pagando multa e sendo obrigado a restaurar o ambiente degradado !!! Além disto, não podem também as autarquias e fundações, entes públicos, serem irresponsáveis penalmente pela degradação ambiental que por ventura ocasionem. Admitir o contrário seria estabelecer um privilégio odioso em detrimento a toda coletividade.

Outra tese, defendida pelos opositores, é de que as sanções aplicadas, mesmo sob a conotação de sanções penais, teriam na realidade a natureza de penalidades cíveis ou administrativas. Tal articulação não procede. O estigma diante da comunidade, para qualquer ente público e sua administração, por estar a responder a um processo criminal por danos ambientais causados já é uma das maiores penalizações e tem um efeito de intimidação preemente. Isto porque se estaria penalizando a própria administração do momento e a imagem do seu gestor perante o grupo social, transmitindo-se para a coletividade a certeza de que todos respondem por danos causados ao meio ambiente, tendo todos a obrigação de preservá-lo dentro dos ditames constitucionais.

O Direito Penal não pode ficar alheio e indo de encontro à realidade, a penalização das pessoas jurídicas de direito público deve ser garantida e amparada com base em uma nova dogmática jurídica, baseada principalmente na proteção a bens e valores de cunho coletivo. Fábio Guedes de Paulo é claro ao destacar a necessária conexão entre a Sociedade, os interesses a serem protegidos e o Direito Penal: " Seja como for, a solução de um problema social através do Direito Penal tem lugar em todo caso por meio do sistema jurídico enquanto sistema social-parcial, e isto significa que tem lugar dentro da sociedade. Portanto, é impossível separar o Direito Penal da sociedade; o Direito Penal constitui um cartão de apresentação da sociedade altamente expressiva, igualmente sobre a base de outras partes da sociedade cabe derivar conclusões bastante viáveis sobre o Direito Penal (...) Existe uma dependência recíproca entre a sociedade e o Direito Penal: cabe pedir ao Direito Penal que realize esforços para assumir novos problemas sociais até que o sistema jurídico alcance uma complexidade adequada com referência ao sistema social, do mesmo modo que a inversa ao Direito Penal pode recordar a sociedade que deve Ter em conta certas máximas que consideram-se indisponíveis." [45]

Nesta seara, a dúvida se devemos penalizar os homens que governam pelos seus atos ou o próprio Estado é antiquíssima. Aristóteles já asseverava: " Nem sempre se está de acordo se devemos imputar os fatos ao Estado ou aos que o governam." [46] Entretanto, a solução deve ser bem pragmática porque além da responsabilização dos homens, administradores públicos, por crimes de improbidade administrativa e por delitos ambientais, também deve o ente estatal responder pelos danos causados, sofrendo todo o estigma da sanção penal.

O fenômeno da irresponsabilização total do ente estatal em todas as searas do direito já existiu, atente-se ao postulado: "The King can do no wrong". Entretanto, tal tese caiu, visualizando-se e prevendo-se atualmente, doutrinária e legalmente, a responsabilidade estatal até mesmo sem culpa nas esferas administrativa e cível. Porque então não responsabilizar os entes estatais também penalmente ao serem afetados interesses coletivos, como quando agridem ao meio ambiente ??? Não há razão para vetar tal responsabilização penal....

Sobre o autor
Marcos André Couto Santos

procurador federal junto ao INSS em Recife (PE), mestre em Direito Público pela UFPE, professor universitário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Marcos André Couto. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público por dano ambiental:: uma análise crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 199, 21 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4733. Acesso em: 5 mai. 2024.

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