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Resoluções de processo disciplinar

Agenda 07/03/2004 às 00:00

Questões complexas de processo disciplinar, resolvidas de acordo com a evolução do direito europeu.


Sumário:1.O princípio da precaução.;2.A problemática dos deveres.;3.Teoria do Controle da Qualificação dos Fatos.;4.O princípio da unidade da infração.;5.O princípio da oportunidade.


Questões complexas invadem o desenvolvimento do processo administrativo disciplinar, sem resposta objetiva nos estatutos de servidores e mesmo em normas processuais e materiais nas quais buscamos socorro, como os diplomas penal e processual penal. Por isso, precisamos fazer o enfrentamento com uma visão mais ampla do instituto disciplinar, recorrendo ora a princípios do processo administrativo, do processo penal ou a princípios gerais do direito, ora ao direito comparado, especialmente o europeu, sensivelmente avançado em relação ao nível de improviso com o que a matéria é tratada no Brasil.

Vamos, nessa linha, desenvolver breve estudo de temas que servirão de referências às comissões processantes, às consultorias jurídicas, aos patronos de defesa e às autoridades julgadoras de processos disciplinares. Fomos, para tanto, recolher elementos na clássica doutrina européia, sobretudo em Portugal, França e Alemanha, países que tratam a ordem disciplinar com sistema, com lógica, com civilidade, com ciência; e transportamos tais ensinamentos para a aplicação plena e imediata na resolução de incidentes que não encontram resposta na rotina da tresloucada Administração Pública brasileira.


1.O princípio da precaução

O princípio da precaução ganhou dimensão na União Européia, com o Tratado de Maastricht, que, no § 2º do artigo 130-R, vinculou a União ao imperativo de gerir as suas intervenções no campo do meio ambiente em obediência às ações de prevenção. Essa orientação foi reescrita por ocasião do Tratado de Amsterdam, no qual ficou como o artigo 174.

O professor Mário Frota, da Universidade de Paris e da Universidade Lusíada do Porto, reportando-se ao tema, ensina que o princípio da precaução

"é invocável em situações em que os saberes científicos não permitem, no estado em que se acham, afastar a regra que justifique a prevenção, mas supor tão só a consistência de um risco".

Podemos dizer que esse princípio permite – ou determina – a adoção de medidas que visam reduzir um possível risco. Aplica-se, portanto, como bem destaca o citado mestre,

"em caso de uma forte probabilidade de prejuízos".

No processo administrativo disciplinar, podemos encontrar várias situações de risco em potencial, que exigem cautela da Administração Pública. Um expediente mal conduzido, com avaliação equivocada do mérito ou com ausência de segurança jurídica, pode conduzir o Poder Público a uma aventura, ou absolvendo um servidor verdadeiramente faltoso e, assim, patrocinando a impunidade; ou, no outro extremo, condenando alguém sem garantias, levando o processo ao plano judicial onde, anos depois, acaba fulminado. Nesta hipótese, a reintegração do funcionário, com todas as vantagens, transforma-se em uma dívida imprópria, pesada, debitada na conta do contribuinte. Acaba sendo este o verdadeiramente penalizado no processo.

São as seguintes as situações de aplicação do princípio da precaução, com emprego no processo disciplinar, como decorrência de uma construção que fazemos a partir das linhas do direito europeu:

a) Incerteza científica – Os conhecimentos científicos pelo menos indicam probabilidade de perigo. Pode acontecer, por exemplo, diante a uma perícia não conclusiva, suscetível de questionamento. Assim, a comissão acolhe, para efeitos de recomendar a condenação, um laudo pericial dúbio, com pontos obscuros, com imprecisão de métodos, com quesitos respondidos de forma subjetiva. Não há dúvida que há risco em potencial. A perícia é o auxílio da ciência e esta não pode ser incerta. Incerta é a avaliação do leigo. Logo, em nome do princípio da precaução, há que se determinar o esclarecimento das obscuridades ou o refazimento da prova. Em que pese eventual custo ao erário – ou comprometimento de prazos – impõe-se o princípio, guia maior que o texto frio da lei.

b) Incerteza jurídica – A incerteza jurídica pode vir de duas formas:

- incerteza jurídica propriamente dita

– ausência de prova provada, ou seja, de prova recolhida aos autos do processo, de maneira a dar garantia quanto ao mérito. Se diferentes pessoas examinarem os autos, basta que uma tenha dúvida sobre a materialidade ou a autoria. Não há, neste caso, certeza. Há, sim, risco em potencial, que enseja a prevenção pela retomada da instrução processual até exaurir o esclarecimento.

- Insegurança jurídica

– aqui, a dúvida repousa em aspectos de direito. Por exemplo: quando não se tem a certeza de que o meio processual empregado é o legítimo; que a forma adotada para aquele ato é a correta; que a conclusão atende a um acertado e pacificado entendimento jurídico. Havendo margem para dúvida, recomenda-se, em nome do princípio da precaução, a consulta à area jurídica, que deverá aprofundar o estudo, examinando ao extremo as cautelas que os tribunais têm indicado como balizas.

c) Ausência de motivação – todo ato, toda decisão, ainda que interlocutória, precisa ser motivada, tem que ser esclarecida, para que não possa suscitar má interpretação. A motivação, alíás, é da essência dos atos administrativos e também é princípio do processo no Brasil, assim posto no art. 2º, caput, da Lei do Processo Administrativo – Lei nº 9.784/99. Havendo ato não explicado, há possibilidade de prejuízo. Logo, deve-se ter a cautela de providenciar o saneamento. Como exemplo, o indeferimento imotivado da prova. E lembre-se: motivar não é consignar uma justificativa qualquer; significa expor as razões de fato e de direito que sustentam a decisão. Nessa linha, destaca-se o eminente professor Vieira de Andrade, catedrático da Universidade de Coimbra, que tem obra referencial sobre o dever de fundamentação dos atos administrativos.

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Assim visto, o princípio da precaução, adotado na Europa especialmente nos domínios da saúde e do meio ambiente, ganha novo foro, no plano do processo disciplinar.


2.A problemática dos deveres

A infração disciplinar sabidamente é atípica. Em que pese alguns estatutos de servidores, como a Lei nº 8.112/90 referirem-se a tipificação da infração, devemos fazer a leitura como enquadramento por aproximação na norma geral disciplinar. Tipificar, por outro lado, significa enquadrar no tipo, ou seja, nos exatos elementos constantes da descrição penal. Obviamente, o legislador não pode prever, em tipos, todas as possibilidades de incorreções na conduta funcional dos servidores públicos. Qualquer tentativa nesse sentido resultaria em um trabalho de tanto fôlego quanto a produção de um novíssimo dicionário.

Como ensina Luis Vasconcelos Abreu, doutrinador português,

"a criação de verdadeiros tipos deixaria de fora muitas condutas disciplinarmente relevantes, que ficariam impunes, com sacrifício da igualdade e da justiça. Daí a opção ser necessariamente outra."

Portanto, o princípio da legalidade tem-se por atendido na medida em que faz-se o enquadramento do comportamento do funcionário em uma previsão geral constante no estatuto. Isso está longe de ser subjetivo, pessoal e incerto. Medidas, que começam com o bom senso e passam pela interpretação alicerçada em princípios de direito, permitem o enquadramento adequado e justo. O que não pode acontecer é o administrador criar, aleatoriamente, deveres ou proibições.

Questão também relevante diz respeito ao descumprimento de praxe administrativa. Os tribunais portugueses, em especial a Corte Superior que examina as matérias administrativas, na linha do que se vê na Alemanha, têm se pronunciado, com propriedade, como bem lembra Luis Vasconcelos Abreu, no sentido de que

"não constitui infração disciplinar o fato de um agente administrativo não ter respeitado uma praxe que se diz existir. Os deveres dos agentes administrativos serão estabelecidos por lei ou regulamento administrativo."


3.Teoria do Controle da Qualificação dos Fatos

O direito europeu, rico no trato da ordem disciplinar, oferece à colação a idéia matriz do controle da qualificação dos fatos. E a ela segue o controle da adequação da decisão aos fatos.

Vê-se, então, dois momentos:

a)Verifica-se se o fato recebeu o devido enquadramento.

b)Examina-se se a decisão corresponde ao fato enquadrado.

Entram aqui regras científicas de interpretação, o conhecimento dos princípios que norteiam o processo disciplinar, a visão dos princípios inerentes à Administração Pública e a ciência das garantias individuais e processuais dos acusados. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ganham especial contorno nesse contexto.

Ainda de Portugal, recolhe-se interessante Acórdão do Superior Tribunal Administrativo. Um médico vinha efetuando consultas particulares em um ambulatório pertencente a um Centro de Saúde, utilizando nestas – e também nas consultas que dava no seu consultório particular – impressos de receitas e elementos auxiliares de diagnóstico dos serviços de saúde pública. Respondendo a procedimento disciplinar (em Portugal, chama-se procedimento), sofreu a pena máxima que lhe poderia ser aplicada na esfera administrativa. O STA, todavia, entendeu, a partir do exame minudente da conduta do médico, que as ações dele traduziam apenas "uma negligência e má compreensão dos deveres funcionais". A pena, para este caso, deveria ser de multa (o estatuto local tem essa previsão). Resultou anulada, por conseqüência, a decisão da Administração Pública. Foi o controle da qualificação dos fatos, feita, in casu, pelo Poder Judiciário.

No Brasil, temos também precedentes na jurisprudência. O Superior Tribunal de Justiça, sem que representasse invasão no exame do mérito do ato administrativo, determinou a conversão de pena de demissão em suspensão, uma vez que o fato não estava adequadamente enquadrado. Havia nos autos elementos favoráveis ao funcionário e que foram desconsiderados pela autoridade julgadora (Acórdão ROMS 10316/SP – DJ 22.05.2000, pág. 00142). O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 77.849, do qual foi relator o Ministro Leitão de Abreu, igualmente converteu pena de demissão em suspensão de noventa dias, beneficiando funcionário da Prefeitura Municipal de Cambará, porque a autoridade julgadora do processo administrativo disciplinar não pode aplicar punição em desproporção com a intensidade da falta realmente apurada.

Essa atividade de controle, advertida pela experiência da Europa, vista nos processos disciplinares a correr no Brasil, deve ser preventiva. A própria comissão processante precisa cercar-se de cautela na produção do Relatório, a fim de não induzir a autoridade julgadora ao erro. Em etapa seguinte, a área jurídica, no seu trabalho analítico, e a própria autoridade julgadora devem exercitar o controle, considerando as duas formas acima relacionadas. Ou seja: examina-se se o fato está devidamente enquadrado; verifica-se se a decisão corresponde exatamente ao fato imputado.


4.O princípio da unidade da infração

O juízo disciplinar deve reportar-se à globalidade do comportamento do funcionário. Podemos, então, estar diante de diversos fatos, praticados em momentos diferentes. Estes, juridicamente, vertem para uma única infração disciplinar. Nessa idéia assenta-se o principio da unidade da infração disciplinar, tratada com relevo no direito europeu.

Não é o dever infringido que individualiza a infração disciplinar. O que regula a compreensão é o binômio violação de deveres / unidade da infração.

O servidor que recebeu propina de A em um mês, de B, no mês seguinte, de C três meses depois, praticou uma infração disciplinar continuada. O caso será tratado de forma unitária. O Superior Tribunal Administrativo português, examinando recurso do funcionário que recebeu, em ocasiões diferentes, vantagens indevidas (pagamento de estadia em um hotel na Suíça e, noutra ocasião, um cheque de 10 mil dólares) viu, nisso, o típico caso de infração disciplinar continuada.

O crime continuado é, em Portugal, punido com a pena correspondente à conduta mais grave que integra a continuação, de acordo com o art. 78, n 5, do Código Penal daquele país. O diploma penal brasileiro trata da questão no art. 71, assim estabelecendo:

"Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplicando-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticos, ou a mais grave, se diversas,, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços."

Em obra na qual versa sobre as relações do procedimento disciplinar português com o processo penal, Luis Vasconcelos Abreu observa que os tribunais administrativos do seu país têm adotado a idéia do crime continuado, transportando-a para o plano disciplinar. Entretanto, ela não chega com o mesmo efeito: considera-se, em primeiro plano, a globalidade das condutas, não apenas a mais grave. As condutas são unificadas, para efeitos de enquadramento disciplinar. O efeito, recolhido do Direito Penal, tem reflexo especialmente na questão da prescrição. Na ação ou omissão continuada, nào se abre o prazo prescricional no momento do conhecimento inicial; ele não é o marco definitivo, posto que a continuidade amplia o alcance das medidas administrativas.


5.O princípio da oportunidade

O princípio da oportunidade corresponde, na Alemanha, à discricionariedade da ação – Handlungsermessen. Fazemos o registro, no presente estudo, unicamente pelo aspecto curioso que encerra, uma vez que, no nosso ver, não tem aplicação no Brasil. Pelo contrário, choca-se com princípios e normas do ordenamento jurídico brasileiro.

Mayer, em Berlim, em 1963, já tratava da oportunidade da ação disciplinar. Em resumo, pode-se dizer que a linha adotada é de considerar o poder disciplinar como faculdade. Não é um poder-dever. A Administração tem um juízo discricionário, podendo avaliar a conveniência ou não da instauração de medida punitiva. Não precisa, por conseqüência, perseguir todas as infrações.

A matéria é curiosa. Dentre nós, não pode prosperar. A legislação é imperativa, desde a primeira Constituição da República. Podemos afirmar que é uma ordem, repetida nos estatutos da União, Distrito Federal, Estados e Municípios: a autoridade que tiver conhecimento de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a imediata apuração. Se não o fizer, incorrerá, de plano, em improbidade administrativa, como está patente na Lei nº 8.429, art. 11, II. E, dependendo da motivação do ato omissivo, teremos os crimes de prevaricação ou condescendência criminosa. O interesse público, portanto, é indisponível.

Países europeus, todavia, adotam uma flexibilidade nesse sentido. As exigências do interesse público podem ser avaliadas pelo gestor, de acordo com os casos concretos. Nem sempre esse interesse repousa na punição. O sentido maior, como sustentam adeptos dessa corrente em França, é limitar os custos da realização da justiça, racionalizando as ações do Poder Público. A discricionariedade não deixa de perseguir um fim legítimo, que não é o patrocínio da impunidade. Como resguardamos, entretanto, tal princípio não tem aplicação dentre nós.


Bibliografia

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OTTO MAYER, Derecho Administrativo Alemán, trad. Espanhola, Buenos Aires, 1982.

Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados. O autor presta consultoria às mais importantes estruturas da Administração Pública do país desde os anos 1990. Conhece os riscos da gestão e as formas de prevenir responsabilidades, o que o tornou conferencista internacional sobre matérias relacionadas ao serviço público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Léo Silva. Resoluções de processo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 243, 7 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4855. Acesso em: 18 nov. 2024.

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