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Da violação aos direitos humanos na recusa de internação de pacientes testemunhas de jeová.

Necessidade da adoção do termo de consentimento livre e esclarecido na tutela da dignidade da pessoa humana

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Agenda 29/04/2016 às 10:07

1.      O Consentimento do Paciente e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 Considerado um dos elementos centrais da relação médico-paciente, o consentimento informado tem sido definido como a concordância do paciente em submeter-se a determinado procedimento ou intervenção médica, após receber suficiente informação sobre seu diagnóstico, bem como sobre os riscos e benefícios do tratamento oferecido.

  Trata-se de uma pré-condição ética e legal na prática médica e possui três aspectos fundamentais: informação, entendimento e decisão.

 O consentimento informado foi considerado pelo Supremo Tribunal Constitucional Espanhol como “direito humano fundamental”[2], o que revela não apenas sua valorização, mas também a sua íntima associação com os direitos fundamentais, como a vida, a liberdade e, especialmente, a dignidade humana.

No Brasil, a necessidade de obtenção do consentimento informado pelo paciente, já foi apreciada pelo Poder Judiciário, sendo a sua falta reputada como “negligência médica” passível de reparação[3].

Visando documentar o consentimento informado, os hospitais apresentam os chamados Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ou Termos de Consentimento Informado (TCI), documentos que indicam o procedimento ou o tratamento médico proposto, seus benefícios e riscos.

A adoção de um TCLE atende aos princípios da “autonomia” e do “consentimento informado”. Também assegura o respeito ao princípio da legalidade no contexto da preservação da liberdade pessoal (art. 5º, inciso II, CF), o direito à privacidade (art. 5º, inciso X, CF) e resguarda a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF).

Ocorre que, atualmente, o TCLE tem sido utilizado em alguns hospitais apenas como um documento para isentar o médico e a instituição de qualquer erro resultante do tratamento oferecido. É uma postura decorrente da Medicina Defensiva, prática por meio da qual o médico ou o hospital adota procedimentos e tratamentos apenas para evitar a exposição a uma demanda judicial (SEKHAR & VYAS, p. 295, 2013).

Esse comportamento acarreta, dentre outras medidas, um apego descomedido a termos engessados, pré-formatados, reduzindo o consentimento informado a um formulário que deve ser tão somente aderido pelo paciente. Não há qualquer negociação acerca do seu conteúdo, sendo o livre consentimento substituído pela adesão (FERNANDES &PITHAN, p. 80, 2007).

Isto ocorre por uma única razão: o paciente é visto como um inimigo em potencial que a qualquer momento poderá processar o profissional médico e a instituição hospitalar.

Infelizmente, a Medicina Defensiva e o emprego imoderado de TCLEs de adesão têm impedido um grupo de pacientes a exercer seu direito ao “acesso à saúde” (art. 196, CF) em alguns hospitais do Brasil.


 2. Da Recusa administrativa de internação de pacientes Testemunhas de Jeová.

No ano de 2010, o Ministério Público do Estado de São Paulo recebeu denúncias de pacientes Testemunhas de Jeová que tiveram sua internação recusada ou cancelada por parte de algumas instituições hospitalares. A alegação dos hospitais era de que tais pacientes não queriam assinar um termo geral e padronizado de consentimento informado que autorizava a aplicação de transfusão de sangue.

Como é de conhecimento geral, as Testemunhas de Jeová, por convicções religiosas, não aceitam transfusões de sangue. Por outro lado, exercem seu consentimento informado para solicitar tratamentos médicos que dispensam a utilização de hemocomponentes[4].

A decisão dos pacientes Testemunhas de Jeová nos casos denunciados não constituía uma limitação ou um problema para o profissional médico. Eram situações em que o processo de consentimento informado tinha sido realizado entre o paciente e o médico. Diante da recusa à transfusão de sangue, seria adotado um protocolo clínico ou cirúrgico que dispensaria o emprego de hemocomponentes.  Desta forma, não havia indicação clínica de transfusão de sangue.

Portanto, nada mais coerente que o paciente assinasse um TCLE que refletisse seu real consentimento, de acordo com o protocolo que seria adotado durante sua internação hospitalar, previamente ajustado com seu médico.

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Contudo, no dia da internação ou, em alguns casos, estando o paciente já preparado para um procedimento cirúrgico, lhe era apresentado um TCLE do “tipo-padrão” com cláusula autorizando a administração de transfusão de sangue. Diante disso, não havia alternativa aos pacientes senão riscar tal item ou inserir alguma observação informando que a terapia transfusional não seria aceita. Como resultado, a internação era cancelada pela administração hospitalar, o paciente recebia alta e voltava para casa sem a realização do procedimento por vezes aguardado após uma longa fila de espera.

Tratava-se de um entrave apenas burocrático apenas com efeitos devastadores na saúde mental, emocional e física do paciente. A negativa de atendimento não partia do médico. Este, agindo dentro de sua liberdade profissional, adotaria um protocolo disponível no hospital para atender ao consentimento informado do seu paciente.

                 Diante destes fatos, o Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (PT nº 0022368/10) constatou:

Neste particular, a propósito, tudo indica realmente um procedimento padrão dos hospitais em fixar nos termos de consentimento na hipótese de tratamento hemoterápico, via transfusão, por meio de cláusula impressa e sem possibilidade de supressão, o que reclama em toda situação uma adesão incondicional dos pacientes aos quais se vê apresentado.

De outra parte, documentos anexados (...) atestam a situação de recusa ao atendimento médico apenas em razão da insubmissão do paciente, por objeção de consciência, aos termos da imposição da utilização da técnica de tratamento por eles rejeitada, tudo levando a crer, realmente, na repetição sistemática dessa postura por parte das entidades hospitalares (PT nº 0022368/10, fls. 40).

Após esclarecer que a recusa à transfusão de sangue por parte dos pacientes Testemunhas de Jeová não constituía nenhuma afronta ao direito à vida, pois tais pacientes desejavam ser tratados por meio de outras opções terapêuticas disponíveis nos hospitais denunciados e o médico responsável estava plenamente de acordo, o Conselho Superior do Ministério Público acrescentou:

(...) nenhuma anormalidade cerca a opção legítima dos representantes, sendo mesmo arbitrária a solução dada por hospitais que se valem de termos pré-preparados, para justificarem a recusa, impensável, ao sagrado direito à saúde dos pacientes integrantes da seita religiosa em questão, o que soa como ato discriminatório à minoria (PT nº 0022368/10, Decisão de 04/05/2011, fls. 8/9).

Em resultado da decisão do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo, diversos hospitais ajustaram seus TCLEs a fim de melhor se adequarem à Constituição Federal e à legislação vigente, em respeito à autonomia do paciente, à livre atuação do médico, assegurando o direito à saúde aos pacientes Testemunhas de Jeová. 

O procedimento de impor um termo de consentimento geral e padronizado é um retrato da Medicina Defensiva. Um TCLE padrão, genérico e que não permite a adaptação dos seus termos ao protocolo clínico que realmente será ministrado revela mais temor do hospital em demandas judiciais do que zelo no atendimento ao paciente. Revela ainda preconceito contra um grupo religioso que advoga um viés de tratamento diferenciado, não tradicional, mas com opções terapêuticas referendadas pela Medicina. Observou-se em alguns casos que tais termos de adesão também foram usados como forma de repelir pacientes Testemunhas de Jeová que não eram bem-vindos em determinados hospitais.

Ocorre que, ao invés de conceder proteção jurídica, a referida prática não só viola a autonomia e a dignidade do paciente, mas também a autonomia e a liberdade do médico. O Código de Ética Médica estabelece que nenhuma disposição estatutária ou regimental do hospital limitará as escolhas, pelos médicos, dos meios cientificamente reconhecidos a serem utilizados na execução do tratamento (Resolução CFM n.º 1931/09 - Princípios Fundamentais, item XVI).

Os tratamentos eleitos pelo paciente e pelo médico, após o processo de consentimento informado, não podem ser restringidos pelo hospital. Por conseguinte, o hospital não pode limitar o conteúdo do TCLE. Esta é uma verdade consolidada no meio jurídico, inclusive. Quem pode o mais (liberdade para estabelecer os tratamentos e procedimentos médicos cientificamente reconhecidos), pode o menos (estabelecer que o conteúdo do TCLE reflita o protocolo médico eleito).

Ademais, os Conselhos de Medicina têm enjeitado a apresentação ao paciente de termos pré-formatados ou “termos-padrão”. Seguem alguns exemplos.

O Conselho Regional de Medicina do Estado do Paraná no Parecer nº 1.571/04, ao analisar a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, destacou:

Como a própria Resolução salienta a denominação correta é: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido... A palavra livre caracteriza a possibilidade de que o sujeito da pesquisa (ou paciente que será submetido a qualquer procedimento médico ou cirúrgico) poderá não concedê-lo, bem como ter assegurado o direito de atuar livre de qualquer tipo de coação, coerção, ou constrangimento.

O linguajar do referido parecer é bastante claro no sentido de que o paciente tem o direito de manifestar sua opção ou recusa a determinados procedimentos ou tratamentos no TCLE. Assim, a imposição de termos padronizados e a recusa de internação de paciente que não concorde com alguma cláusula ou aspecto do “Termo”, viola a política nacional de saúde, configurando-se como medida ilegal. Neste sentido, o aludido Parecer nº 1.571/04 do CRM/PR, esclarece:

O Termo de Consentimento deve ser veículo de efetiva e dialógica relação entre médico e paciente, reduzindo a habitual e indesejável assimetria ainda prevalente. Deve ser considerado como oportunidade do paciente ser ouvido e respeitado como ser humano e não como mecanismo de defesa do médico contra eventuais processos judiciais.

 

O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro no Parecer 124/03 proferiu entendimento idêntico:

EMENTA: Não deve ser adotado um termo de consentimento informado tipo “padrão”, pois a cada novo passo no diagnóstico, e no tratamento do paciente, devem ser expostos e autorizados os novos procedimentos, sempre em busca da conduta ideal.

Por mais que reconheçamos as vantagens que possam advir da assinatura do mesmo é nossa impressão de que é muito difícil para qualquer paciente dar uma “carta branca”, uma autorização para qualquer procedimento que tenha de ser feito, pois cada ato médico tem naturalmente a sua adequada indicação, risco, vantagem e desvantagem... Além disto, por mais que queira um Diretor normatizar, cada médico tem seu ponto de vista, sua forma de relacionamento médico-paciente e sua responsabilidade na proposição dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, sempre em busca da conduta ideal.

       Conforme se observa do conteúdo do parecer acima, os “Termos-Padrão”, além de serem desarrazoados por exigirem uma “carta branca” do paciente para administração de procedimentos em seu corpo que muitas vezes nem sequer compreende, também retiram a autonomia profissional do médico.

3. Escolha esclarecida de tratamento médico e a necessidade de um Termo de Consentimento flexível.

 

 O direito de escolha de tratamento médico sem transfusão de sangue pelos pacientes Testemunhas de Jeová adultos tem sido garantido pela legislação e pela jurisprudência brasileiras.

Amparado no direito de recusa estipulado no art. 15 do Código Civil, bem como no direito constitucional à vida digna e à liberdade religiosa (arts. 1.º, III, c.c. art. 5.º, CF), o Poder Judiciário tem garantido o direito de os pacientes Testemunhas de Jeová adultos recusar transfusão de sangue e exercer seu consentimento informado para outros tratamentos e procedimentos que dispensam o uso de hemocomponentes[5].

                                                                                                                                

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, em parecer intitulado “Legitimidade da Recusa de Transfusão de Sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade Humana, Liberdade Religiosa e Escolhas Existenciais”, considerou legítima a recusa de pacientes Testemunhas de Jeová a transfusão de sangue:

A crença religiosa constitui uma escolha existencial a ser protegida, uma liberdade básica da qual o indivíduo não pode ser privado sem sacrifício de sua dignidade. A transfusão compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade humana, que é um dos fundamentos da República brasileira (BARROSO, ps. 28-29, 2010).[6] – Grifos adicionados.

O Conselho Federal de Medicina também já proferiu decisões estabelecendo não haver infração ética quando o médico respeita a recusa de transfusão, havendo uma “vontade expressa previamente” ou uma “recusa consciente” por parte do paciente[7].

Desta forma, o profissional de saúde que respeita as escolhas do paciente Testemunha de Jeová e que opta por um protocolo não transfusional pode adotar os mesmos cuidados que visam salvaguardar qualquer atuação médica. Qualquer intervenção médica deve ser acompanhada de discussão com o paciente, esclarecimento e consentimento deste, além de boa execução médica.

Não há dúvidas de que é proteção para o médico documentar toda a sua atuação. Para tanto, poderá fazer uso de um TCLE que realmente reflita o protocolo médico que será observado e de registros diários no prontuário do paciente.

 Neste sentido, os doutores José Guilherme Minossi e Alcindo Lazaro da Silva destacam a segurança jurídica que os médicos e/ou instituições de saúde podem obter pelos TCLEs que estejam em harmonia com a vontade do paciente:

Um paciente, por exemplo, que por motivos religiosos, não aceita transfusão de sangue durante uma operação, tem a sua vontade e autonomia expressa neste documento [TCLE] e o médico sua responsabilidade delimitada. (...) É recomendável que os médicos mantenham sempre adequadamente elaborados os prontuários dos pacientes, incluindo o registro das informações que foram transmitidas e o grau de participação dos pacientes e seus familiares nas decisões terapêuticas (MINOSSI & SILVA, p.499, 2013). – Grifos nossos

    

  Na mesma linha de raciocínio, o doutrinador Álvaro Villaça Azevedo leciona no parecer “Autonomia do Paciente e Direito de Escolha de Tratamento Médico sem Transfusão de Sangue”:

O hospital não poderá recusar a internação de um paciente que, após acordar com a equipe médica sobre a não utilização de terapia transfusional, insere no termo de internação ou no termo de consentimento sua recusa de receber tal terapia (...) O termo de Consentimento Informado, portanto, deve refletir perfeitamente o que fora acordado entre o médico e paciente. Ainda que o hospital apresente um modelo de Termo, este poderá ser alterado pelo paciente ou pelo médico, desde que as práticas acordadas tenham amparo científico e sigam protocolos específicos. (AZEVEDO, ps. 53-54, 2010). – Grifos acrescentados.

Cientes disso, alguns hospitais já possuem um “Termo de Consentimento para Transfusão de Sangue ou Hemocomponentes”, no qual o paciente pode assinalar um quadro esclarecendo se aceita ou não receber transfusão de sangue e seus componentes[8].

A adoção de tais termos é uma garantia jurídica tanto para o paciente, quanto para o médico e o hospital. Há muito mais segurança jurídica para as instituições de saúde, pois a praxe forense demonstra que os contratos de adesão geram mais controvérsias e tendem a ser relativizados pelo Judiciário. Investir em Termos mais flexíveis, privilegiando o diálogo na relação médico-paciente, é uma conduta ética e juridicamente responsável.

Sobre o autor
Bruno Marini

Professor de Direitos Humanos, Biodireito e Bioética na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande (MS), Doutorando em Saúde (UFMS), Mestre em Desenvolvimento Local (UCDB) e Especialista em Direito Constitucional (UNIDERP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Em 28/04/2005 foi publicado o artigo "O caso das Testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue: uma analise jurídico - bioética" de minha autoria. Estou enviando este novo artigo no dia 29/04/2016 (isto é, onze anos depois da publicação do primeiro artigo), para que se tenha uma ideia da evolução do tema.

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