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O procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares no curso da execução penal em Santa Catarina

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3 O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PARA APURAÇÃO DE FALTA DISCIPLINAR EM SANTA CATARINA

No Estado de Santa Catarina, tomando o lugar do decreto 3.494, de 27 de junho de 1989, editou-se a Lei Complementar 529, de 17 de janeiro de 2011, que aprova o regimento interno dos estabelecimentos penais catarinenses.

Referida lei extravagante estadual, além de inúmeras outras disposições, tipifica as faltas leves e médias, disciplina o tratamento penitenciário, regulamenta o procedimento administrativo disciplinar para apuração de faltas e, ainda prevê atenuantes e agravantes para a aplicação de sanções.

Assim, atualmente é a LC 529/11 que dita a sucessão de atos do procedimento disciplinar. Contudo, não se descura a aplicação inafastável das disposições constitucionais, notadamente quanto ao devido processo legal, bem como a sistemática jurídica, especialmente quanto à produção de provas, adotada pelo Código de Processo Penal, e, ainda, as disposições gerais da própria Lei 7.210/84.

Também é cabível a utilização supletiva do Decreto Presidencial 6.049, de 27 de fevereiro de 2007, que dispõe sobre o regulamento penitenciário federal.

Enfim, é de se salientar que se trata de procedimento inquisitório, mas com feições típicas do sistema acusatório.

A prevalência do modo inquisitorial se dá por não haver a separação precisa entre as funções de julgar e ‘acusar’, já que ambas estão nas mãos da Administração Prisional, bem pelo fato de que a gestão probatória também está atribuída a esta.[41]

Nesse sentido, é a lição de Salo de Carvalho:

Não restam dúvidas de que é imprescindível à caracterização dos sistemas acusatórios o distanciamento entre quem propõe a ação e quem julga o caso. No entanto evoca-se as lições de Jacinto Coutinho no sentido de que o princípio unificador e diferenciador entre os sistemas refere os critérios de gestão probatória, pois, ‘se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstrução de um fato pretérito ao crime, através da instrução probatória, a forma pela qual se realiza a instrução identifica o princípio unificador.[42]

Porém, de outro lado, não se pode negar que a indispensabilidade da garantia da ampla defesa ao preso – abarcando-se não só a autodefesa como a defesa técnica – é requisito sine qua non do procedimento acusatório, motivo pelo qual se pode dizer que se está diante de um processo preponderantemente inquisitorial, mas com alguns aspectos próprios do sistema acusatório.

3.1 A Lei Complementar estadual 529/11

Conforme já exposto, a Carta Constitucional dispõe que a competência para legislar sobre direito penitenciário é concorrente entre União e Estados-membros. Em âmbito federal, a normativa geral sobre o tema vem exposta na Lei 7.210/194 (LEP), já em relação ao Estado de Santa Catarina, o regime interno dos Estabelecimentos Prisionais vem regulado pela Lei Complementar Estadual 529, de 17 de janeiro de 2011.

A aludida lei local normatiza uma série temas penitenciários, como questões atinentes ao ingresso, transferência e saída de presos; a classificação dos detentos; as diversas formais de assistência; o trabalho prisional (interno e externo); direitos e deveres e outros temas relevantes.

Porém, o item de maior relevância ao presente trabalho diz respeito à disciplina prisional e ao procedimento para apuração de faltas e aplicação de sanções disciplinares.

Nesse contexto, vale relembrar que o artigo 49 da Lei Federal de Execuções Penais apenas trata das faltas graves, expressamente relegando à legislação estadual o tratamento das faltas leves e médias.

Seguindo essa orientação, a lei catarinense, no artigo 95, traz um rol de faltas consideradas leves, como a ocultação de fato relacionado à falta de outrem, para dificultar averiguações; a utilização de materiais sem autorização; o trânsito pelo estabelecimento prisional em desobediência às normas e a simulação de doença para eximir-se de obrigação, dentre tantas outras – algumas de duvidosa constitucionalidade. As sanções que podem ser aplicadas para tais práticas, segundo a citada lei, são a advertência verbal e a repreensão.

Da mesma forma, no art. 96, são elencadas as faltas ditas médias, a exemplo da prática de jogos proibidos; a resistência à execução de ordem; a ofensa à funcionários; a desobediência aos horários, dentre outras. Em relação às faltas médias, pode haver sanção de restrição de direitos e de recolhimento na própria cela por período de cinco a dez dias.

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Ademais, a lei aborda o procedimento para a apuração de tais faltas e a aplicação de sanções, o que será avaliado em item próprio a seguir

3.2 A Sequência de atos do Procedimento Administrativo[43]

A sucessão de atos disciplinada pela citada lei complementar é a seguinte: inicialmente, realiza-se a lavratura da ocorrência com a condução do preso ao chefe de plantão ou supervisor (art. 83), o qual comunicará o fato ao diretor (ou gerente) do estabelecimento penal (art. 84).

Em seguida, este instaura o PAD (art. 86) mediante ato administrativo (normalmente uma portaria) que contenha a descrição fática pormenorizada e encaminha o documento ao Conselho Disciplinar (art. 86).

O colegiado procede à apuração da conduta, investigando a veracidade dos fatos e propiciando a produção de provas de todos os tipos – documentais, testemunhais, periciais, etc. – (arts. 87 a 89). Nesse ponto, é imprescindível a oitiva do apenado em audiência acompanhada de defesa técnica, que também acompanhará a ouvida de eventuais testemunhas.

Concluída a instrução, após a defesa oral ou escrita, o Conselho Disciplinar emite parecer não vinculante quanto à existência da falta, à autoria, à classificação em leve, média ou grave e, enfim, sugere as sanções a serem aplicadas (arts. 87 a 89).

Por fim, o processo segue ao gestor da unidade prisional, que decidirá de forma isenta, não ficando adstrito ao parecer do Conselho Disciplinar (art. 88).

Da decisão do Diretor ou Gerente da unidade, há duas possibilidades de reconsideração no prazo de 8 dias: quando o parecer do Conselho não tiver sido unânime e for acolhido pelo Diretor ou quando este discordar do parecer do Conselho (art. 92).

Todavia, a qualquer tempo poderá a pessoa presa requerer a revisão da punição, desde que demonstre, com base em provas novas, que a decisão se fundamentou em testemunha ou fato falso ou então que foi aplicada em desacordo com a LC 529/11 (art. 94).

3.3 Inconsistências

De partida, o aspecto mais criticável da referida lei é o fato de não prevê recurso específico em face da decisão que julga o incidente disciplinar.

Como visto acima, a lei extravagante que disciplina o PAD abarca apenas duas possibilidades de reconsideração da decisão – a saber, quando o parecer do Conselho Disciplinar não é unânime ou, então, se a decisão do Diretor ou Gerente da Unidade for contrária ao parecer do colegiado[44] – bem como duas hipóteses de ‘revisão’ – quando a decisão tiver por base prova falsa ou se tiver sido aplicada em desacordo com a LC 529/11´[45].

Todavia, tratam-se de hipóteses que não serão apreciadas por pessoa diversa daquela que originariamente julgou o procedimento administrativo disciplinar, o que torna praticamente inaplicável, na prática, a possibilidade de se reverter os fundamentos jurídicos e até revolver a apreciação da prova.

Por isso que se defende o cabimento do instituto do recurso hierárquico típico do direito administrativo, inclusive porque no Regulamento Penitenciário Federal – Decreto 6.049/07 – há previsão expressa de recurso[46], sendo que, assim, a pessoa recolhida em presídio federal não poderia ter tratamento jurídico diferenciado, privilegiado em relação àquela pessoa que está custodiada em estabelecimento penal estadual.

Desta forma, escudamos a possibilidade de se interpor o recurso hierárquico nos prazos previstos no Regulamento Federal, fazendo com que a aplicação supletiva da normativa federal supra a omissão da legislação estadual.

No que toca aos responsáveis pelo julgamento de tal recurso, é preciso ter em mente a organização hierárquica legalmente concebida entre as unidades prisionais catarinenses.

O art. 4o da Lei estadual Lei 12.116/02, dispõe que "Os estabelecimentos prisionais do Estado serão vinculados ao Diretor da Penitenciária da Região".

Desta forma, os Gerentes das Unidades Prisionais Avançadas (UPAs) e dos Presídios estão imediatamente submetidos, na hierarquia administrativa, ao Gerente da Penitenciária regional, que em Santa Catarina, são sete (Itajaí, Florianópolis, Criciúma, Curitibanos, Joinville, Chapecó e São Pedro de Alcântara).

Assim sendo, da decisão final em procedimento administrativo disciplinar de um Gerente de Presídio caberá recurso ao Diretor da Penitenciária Regional ao qual está vinculado. Contudo, se a decisão tiver sido tomada por Diretor de Penitenciária Regional, a competência para julgar o recurso será do próprio Diretor do Departamento de Administração Prisional.

Outra omissão de relevante nota do legislador catarinense é a ausência de regulamentação de prazo para a conclusão do procedimento administrativo disciplinar, o que também poderia ser resolvido pela aplicação analógica do já mencionado regimento penitenciário nacional, o qual prevê o prazo de 30 dias.[47]

Com efeito, não há razão para que a pessoa recolhida em estabelecimento prisional estadual tenha tratamento processual mais gravoso, em termos de garantias constitucionais, do que o preso alocado em unidade prisional estadual, sob pena de tornar letra morta o princípio constitucional da igualdade.

Além disso, a Lei Extravagante catarinense não regulamenta a forma pela qual o incidentado e sua defesa técnica são notificados dos atos do procedimento, notadamente quanto à possibilidade de solicitar a produção de provas, quanto à cientificação para apresentação de defesa escrita (quando esta não é realizada oralmente em audiência), e também quanto à intimação da decisão final do procedimento, para fins de propiciar o manejo dos meios de impugnação (seja reconsideração, revisão ou até o recurso administrativo).

3.4 Sanções Administrativas

A norma extravagante em discussão replica as mesmas sanções disciplinares que a Lei de Execuções Penais, exceto aquela cuja aplicação é de competência exclusiva do magistrado execucional: o regime disciplinar diferenciado. Senão vejamos.

A Lei 7.210/84, em seu artigo 53, elenca as seguintes: advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos (art. 41, parágrafo único), isolamento cubicular e inclusão no regime disciplinar diferenciado.

Por seu turno, a LC 529/11, traz, no art. 68, apenas as quatro primeiras, na mesma ordem: “I - advertência verbal; II - repreensão escrita; III - suspensão ou restrição de direitos, conforme estabelecido no art. 41, parágrafo único, da Lei federal nº 7.210, de 1984; e IV - isolamento na própria cela ou em cela especial”.

Passamos, então, a analisar cada qual das sanções administrativas de competência do gestor da unidade prisional.

A advertência (inciso I) e a repreensão verbal (inciso II) são cabíveis quando do reconhecimento de faltas leves ou médias. Não têm lugar, portanto, como resposta ao cometimento de faltas graves, na esteira do disposto no art. 57, parágrafo único, da Lei de Execução Penal.

Ambas representam uma reprovação formal a uma falta média ou leve praticada. Porém, enquanto a advertência se dá por escrito, a repreensão cinge-se à oralidade.

Alexis Couto de Brito[48] e Norberto Avena[49] defendem que a repreensão verbal deve ser aplicada em caso da primeira falta leve praticada pelo detento, enquanto que a advertência é cabível quando da reiteração de falta leve ou então como resposta a falta média.

Nesse ponto, discordamos dos ilustres doutrinadores. Reputamos mais adequada a análise casuística, balizando-se todas as diretrizes previstas no art. 57 da Lei de Execuções Penais e, também, as atenuantes e agravantes insertas na LC 529/11, método que será pormenorizadamente abordado em tópico próprio.

A suspensão ou restrição de direitos (inciso III) pode ser adotada a qualquer modalidade de falta – leve, média ou grave. Cinge-se à limitação dos direitos previstos no art. 41, V, X e XV, do Lei de Execuções Penais, na forma especificada no parágrafo único do citado dispositivo.

Assim são passíveis de cerceamento a proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação (V), a visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados (X), e o contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes (XV).

Na prática, a escolha dos direitos a serem restringidos obviamente vai depender se o detento exerce ou não tais direitos, já que é extremamente comum que a maioria da população carcerária não trabalhe nem estude – no mais das vezes pela omissão dos órgãos incumbidos da gestão do sistema prisional –, que não receba visitas ou até que não se corresponda com outras pessoas ou sequer receba itens de leitura.

De qualquer forma, a restrição ou suspensão não poderá exceder o prazo de 30 dias (art. 58 da Lei de Execução Penal).

Além do que, à luz do que dispõe o art. 52 da Lei 7.210/84, em nenhuma hipótese o preso poderá ter menos de duas horas diárias de banho de sol e visita de duas pessoas por semana, não computadas as crianças.

Aliás, somente na mais grave das situações a que o preso pode ser submetido – o regime disciplinar diferenciado, que de tão severo só pode ser aplicado pelo juízo execucional – é que desfrutará de apenas duas horas de banho de sol por dia e de apenas duas visitas de dois adultos por semana (as crianças não sofrem limitação).

Por consequência lógica, na aplicação das outras sanções (restrição de direitos e isolamento), as limitações devem ser mais brandas, mostrando-se razoável garantir à pessoa presa o mínimo de 3 horas de banho de sol diário e visita de 3 adultos por semana, ficando livre a visita por crianças.

Por fim, há o isolamento cubicular, que igualmente se submete ao máximo de duração de 30 dias e às garantias de direitos mencionadas no parágrafo acima.

Nesse andar, oportuno o esclarecimento de Alexis Couto de Brito: “O isolamento consiste na separação do preso dos demais, em sua cela individual nos casos de regime fechado, ou em uma cela preparada para tanto, quando as acomodações do estabelecimento forem coletivas, como é o caso dos regimes semiaberto e aberto”.[50]

O recolhimento deverá seguir os requisitos mínimos do art. 88 da Lei 7.210/84: conter dormitório, aparelho sanitário e lavatório, condições salubres e área mínima de 6m2.  Não bastasse, é proscrita a utilização de celas escuras (art. 45, § 2º).

Quando da aplicação de tal medida, pela sua severidade, deverá o Juiz da Vara de Execuções Penais ser comunicado (art. 58, parágrafo único).

É de se citar, ainda, que pode o isolamento ser aplicado preventivamente, de forma excepcional, por até 10 dias, desde que ocorra por ato motivado do Diretor da unidade prisional (art. 60, caput, primeira parte, da LEP).

Sobre os autores
Renê Beckmann Johann Júnior

Defensor Público do Estado de Santa Catarina. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas/RS (UFPel). Pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio de Jesus

Caroline Kohler Teixeira

Defensora Pública do Estado de Santa Catarina. Especialista em Direito Público pelo Instituto de Ensino Luis Flávio Gomes (LFG) e pela Escola Superior da Magistratura Federal do Estado de Santa Catarina (ESMAFESC). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro Titular do Conselho da Comunidade de Florianópolis/SC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JÚNIOR, Renê Beckmann Johann; TEIXEIRA, Caroline Kohler. O procedimento administrativo para apuração de faltas disciplinares no curso da execução penal em Santa Catarina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4733, 16 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49668. Acesso em: 23 dez. 2024.

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