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Arbitragem e os órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor

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Agenda 15/03/2004 às 00:00

Resumo: Nas últimas décadas verifica-se que as atenções em torno do tema da proteção do consumidor vem aumentando, motivo que nos remete diretamente à importância do problema estudado. Como se sabe, em nosso país a norma consumerista é de ordem pública, um verdadeiro microssistema que acompanha a tendência das modernas legislações e introduz um regime legal específico. A luz deste "pequeno-grande" diploma pretendemos demonstrar a viabilidade da utilização de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo, assegurando aos consumidores proteção administrativa e técnica, facilitação da defesa de seus direitos, e aos fornecedores educação e informação tendo como farol a busca constante da melhoria do mercado de consumo. Neste breve estudo, vasculhando superficialmente a experiência internacional encontramos casos promissores de aplicação da arbitragem às lides de consumo, cujo exemplo mais feliz é o espanhol. Nossa legislação, capitaneada pelo espírito moderno de seus autores, nos convida a abandonar o ceticismo daqueles que fecham os olhos aos benefícios da solução arbitral de conflitos. De forma geral, admitiu-se a convivência pacífica do intervencionismo estatal ao lado da solução privada das lides, expressão maior da harmonização dos interesses de consumidores e fornecedores. É assim, com os pés firmes no solo da realidade e olhar fixo no futuro, que pretendemos palmilhar o caminho que nos levará a percorrer a amplidão legislativa de consumo.

Sumário: Introdução. 1. Arbitragem, afastando preconceitos – 1.1. Desenvolvimento legislativo no Brasil – 1.2. A experiência espanhola e argentina em arbitragem de consumo – 1.3. Direito do consumidor: histórico e aplicação – 1.4. Identificando a relação de consumo – 1.5. Relação de consumo no direito brasileiro: um conceito mais amplo – 4. Principais características da arbitragem no Brasil – 4.1. A questão da constitucionalidade da Lei 9.307/96 – 4.2. Arbitrabilidade das relações jurídicas de consumo no Brasil – 5. Os órgãos públicos integrantes do SNDC e a arbitragem – 5.1. Atribuições dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) – 5.2. Instalação da arbitragem de consumo nos órgãos públicos integrantes do SNDC – vantagens – 6. Conclusão.


Introdução

Conforme veremos, com o transcorrer do tempo a arbitragem deixa de ser mera especulação doutrinária e começa a vencer a falta de tradição e o desprestígio legislativo para ceder passo a uma inspiração moderna calcada, de um lado, na experiência internacional, e de outro, nas peculiaridades do processo brasileiro.

Dentro dos limites traçados pela Lei Marco Maciel (Lei de Arbitragem) e da sólida ponte que pode ser construída entre ela e o Código de Defesa do Consumidor, é que chegamos à conclusão de que a revolução dos conceitos exige a revisão das normas, uma vez que estas regulam os comportamentos.

Assim, com vistas a buscar respostas para questões práticas que diariamente são discutidas à nossa volta, procuramos estruturar nosso trabalho de maneira igualmente prática.

Para tanto, iniciamos o trabalho relatando o histórico da arbitragem no Brasil em fora dele.

Adiante, adentraremos ao estudo da atual Lei de Arbitragem, para só então defender sua plena e salutar aplicação aos conflitos de consumo. Mais à frente ousamos sustentar a criação de um Tribunal Arbitral de Consumo.

Dentro desta subdivisão do trabalho, foi nossa diretriz identificar os elementos que dão sustentação a ambas as leis e seus pressupostos de aplicabilidade.

Desta forma, de maneira despretenciosa esperamos fomentar a discussão de temas não pacificados e ainda, objeto de poucos trabalhos.

Esperamos ainda, modesta e sinceramentemente que a presente monografia venha a somar-se a outros trabalhos que vêm sendo elaborados no campo da tutela dos consumidores.


1. Arbitragem, afastando preconceitos

Decorridos seis anos da vigência da atual Lei de Arbitragem, juristas de reconhecida envergadura vem, cada vez mais defendendo a utilização da arbitragem como método alternativo de solução de conflitos.

Dentre suas vantagens mais evidentes podemos destacar a facilidade, a segurança, a tecnicidade, a rapidez, o sigilo e a economia. (1)

Em processo, via de regra, mais simplificado que o estatal as partes podem eleger seus "juizes privados" dotados de poderes para impor uma solução satisfatória a todas as lides que envolvam direitos patrimoniais disponíveis sem que se recorra à força coativa e infelizmente morosa (2) do Estado (3).

Seu objetivo não é, como alardeiam alguns, de concorrer com a jurisdição estatal ou substituí-la, mas de tornar-se uma opção na solução de conflitos desafogando-a. (4)

E a arbitragem nada mais é do que um meio alternativo de solução de conflitos. Rápida e com a mesma eficácia do Poder Judiciário, a arbitragem pode ser empregada em toda e qualquer questão que envolva direito patrimonial disponível.

Para o professor Joel Dias Figueiredo Júnior, a Lei 9.307/96, trouxe uma revolução para o nosso direito, "quebrando definitivamente o elo milenar e mitológico do monopólio da jurisdição estatal(...)". (5)

Longe de constituir uma inovação, a arbitragem vem sendo empregada na solução de demandas em muitos países do mundo. À exemplo da Espanha, Japão, França, Estados Unidos e Inglaterra.

Em artigo publicado na Internet intitulado A arbitragem e a eficiência do Estado, Roberto Ferrari de Ulhôa Cintra, ao falar do Leviatã (o Estado) afirma que esse moderno dinossauro custa ao cidadão imensa fortuna e é tão colossal quanto ineficiente (6). O mesmo autor, demonstrando sua refinada e arguta percepção nos ensina que o fundamento da arbitragem no Brasil está previsto no preâmbulo da Constituição da República. (7)

Também o fenômeno da globalização representa estímulo ao surgimento de alternativas mais ágeis, econômicas e eficientes.

Nesse quadro, a instituição da arbitragem representa bem mais do que uma simples alternativa à praxe jurídica, representa um estímulo ao desarmamento e entendimento entre as partes.

Carlos Alberto Carmona, prevê o crescimento do número de adeptos da arbitragem à medida que suas potencialidades forem sendo descobertas. (8)

Walter Ceneviva comenta:

"A arbitragem será uma das soluções para desafogar os problemas judiciários. Está longe de nossas tradições, mas, como diz Rezek, a situação em que vivemos é patológica. Precisamos de novos rumos. Os antigos, apesar das velhas queixas, repetidas em decênios de monotonia, não resolveram a prestação jurisdicional. Nem levam jeito de resolvê-la a curto prazo." (9)

Outro conhecido entusiasta da arbitragem, segundo Roberto Ferrari Ulhôa, é o ex-Secretário de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, Dr. Belisário dos Santos Júnior, sobretudo nos conflitos de consumo. O então Secretário e advogado, deu-nos prova cabal deste fato ao celebrar o convênio para a criação do Tribunal Arbitral do Comércio, representando o Estado de São Paulo, em maio de 2000. (10)

Em nosso país, após o arquivamento de projetos de lei que não conseguiram aprovação nas casas legislativas, montou-se o que o professor Carmona nomina "operação arbiter", uma feliz união de experiência prática e conhecimentos científicos, que bebeu de fontes legislativas estrangeiras, especialmente na espanhola e na Lei-Modelo sobre arbitragem da UNCITRAL, Convenção de Nova Iorque e Panamá.

Assim, após quatro anos de tramitação nasceu a Lei 9.307/96, também conhecida como Lei Marco Maciel. Diploma considerado moderno, deixou para trás a tacanha disciplina da arbitragem prevista no Código de Processo Civil, regramento que para alguns configurava verdadeiro pactum nudum, a arbitragem era completamente desprestigiada no direito brasileiro até 1996. (11)

Afora a agilidade e o imediatismo da arbitragem que é capaz de responder com presteza à velocidade das negociações do mundo moderno, a via arbitral torna-se indispensável nas situações em que há continuidade do relacionamento após a solução do conflito. (12) Situação que, invariavelmente ocorre nos conflitos de consumo, seja no caso de fornecedores que encontram-se em situação de monopólio de determinado segmento de mercado, seja para aqueles que embora enfrentando a concorrência precisarão sempre atrair os consumidores para seus bens e serviços sob pena de serem alijados do mercado.

Quanto ao temor daqueles que sustentam a possibilidade da arbitragem para o consumo possa ferir os direitos do consumidor, ele nos parece um injustificado "medo do desconhecido", pois além da vedação de inserção de cláusula compromissória em contratos de consumo é vedado ao árbitro afastar-se das normas de ordem pública do CDC (que e protetivo até no nome). (13)

Sobre o assunto o professor Antônio Junqueira de Azevedo leciona:

"Uma vez, porém, feito o compromisso, e válido porque, sem abuso do consumidor, a arbitragem que se segue terá, por sua vez, que ser decidida sem ferir as normas cogentes do Código de Defesa do Consumidor." (14)

De qualquer maneira, nos parece que a efetiva implementação da arbitragem carece, acima de tudo, da mudança de mentalidade para a qual somos preparados na Universidade. Lá, o conflito é representado pela visão carnelutiana e chancelada por Von Ihering, onde o processo nada mais é do que o campo de batalha em que os inimigos vão para o embate munidos com suas armas processuais. (15)

Capitaneado pelo espírito de mudança e seguindo rota segura traçada pelos princípios que norteiam o consumo no país é que pretendemos discorrer sobre idéias postas por experimentados juristas que acreditam na criação de um sistema de arbitragem cada vez mais concreto, baseado na voluntariedade.

1.1. Desenvolvimento legislativo no Brasil

Desde os tempos do Brasil Colônia o instituto da arbitragem está incorporado à nossa legislação por meio das Ordenações do Reino de Portugal. (16) Mais precisamente através da Ordenações Afonsinas, como assevera Joel Dias Figueira Júnior. (17)

Disciplinado em trinta e um artigos no Código de Processo Civil, e em doze artigos no Código Civil de 1917 (retirado do Código Civil de 2.002), o instituto da arbitragem do Código de Processo de 1973, da forma como posto não oferecia vantagem sobre os mecanismos oferecidos pelo Poder Judiciário, pois mesmo optando pelo juízo privado o demandante não escaparia dos auspícios do juízo estatal à medida em que necessitaria da homologação judicial do laudo. (18)

Outra problemática estava na cláusula compromissória. Nada obstante sua inserção no contrato haveria ainda a necessidade de celebrar o compromisso arbitral, isso significa que uma parte não dispunha de mecanismos para compelir a outra a instituir a arbitragem.

Além disso, requisitos rígidos deveriam ser seguidos para a instauração da arbitragem sob pena de nulidade (fixação do objeto litigioso com todas as suas especificações, inclusive o seu valor - art. 1.074, III do CPC).

De mais a mais, o Supremo Tribunal Federal impunha a exigência da dupla homologação para as sentenças arbitrais estrangeiras (duplo exequatur), entrave que não advinha da lei, mas da própria jurisprudência do Supremo e que criava por vezes um obstáculo intransponível.

Quando o governo se deu conta de nosso atraso legislativo, o extinto Ministério da Desburocratização solicitou, em 1981, um anteprojeto. Formou-se uma comissão coordenada pelo Desembargador Severo da Costa e foi apresentado um anteprojeto de 28 (vinte e oito artigos). O estudo não foi à frente e acabou no esquecimento. Para Carlos Alberto Carmona, embora cuidadoso em alguns pontos o anteprojeto deixava à desejar quanto a precisão técnica. (19)

Em 1986, mais um anteprojeto (publicado no D.O.U. em 27.2.87), desta vez solicitado pelo Ministério da Justiça, passou a receber sugestões. Este, embora mais aprimorado que seu antecessor, apresentava defeitos técnicos que acabaram por aconselhar seu arquivamento.

Em 1988, nasceu outro anteprojeto posto em debate pelo governo, outra vez o Ministério da Justiça convidava a sociedade a discutir a arbitragem. Agora o laudo arbitral estava sujeito a apelação interposta perante o Tribunal de Justiça e o árbitro deveria ser bacharel em Direito, imposição que levou até a Ordem dos Advogados do Brasil a manifestar-se contrariamente. Seu arquivamento não tardou.

Então, no final de 1991, uma iniciativa do Instituto Liberal de Pernambuco lançou a Operação Arbiter, com intuito de elaborar novo projeto de lei e rediscutir o instituto abandonado, tudo com vistas a tornar realidade os anseios daqueles que necessitam de um modo rápido e eficiente de solucionar controvérsias.

A Associação Comercial de São Paulo, a FIESP, o Instituto Brasileiro de Direito Processual, professores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Faculdade de Direito Cândido Mendes (RJ), representantes de grandes escritórios de advocacia de São Paulo e Rio de Janeiro, e tantos outros aceitaram o convite.

O professor Carmona, que compôs o grupo de trabalho juntamente com Selma Maria Ferreira Lemes e Pedro Antônio Batista Martins, lembra que a repercussão dos trabalhos superou as expectativas. Sugestões de Professores, Membros do Judiciário e da Câmara de Comércio Internacional foram enviadas. (20)

Em abril de 1992, o anteprojeto já na versão final foi apresentado e discutido no Seminário Nacional sobre Arbitragem Comercial, realizado em Curitiba.

Já no Congresso Nacional, o então Senador Marco Maciel apresentou o esboço de lei que recebeu o número 78/92.

Aprovado pela Comissão de Constituição Justiça e Cidadania do Senado, ele foi enviado à Câmara dos Deputados para a revisão disciplinada pelo art. 65 da Constituição da República.

Nesta casa o processamento foi lento. Somente em março de 1995, o presidente da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, passou a receber eventuais emendas.

No mês seguinte o relator da Comissão (Dep. Celso Russomano), opinou pela aprovação do projeto e sugeriu emenda. Aprovado por esta Comissão o projeto foi remetido à apreciação da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação. Ali o Professor Régis de Oliveira opinou no sentido de aprovação do projeto e incorporação da emenda sugerida pela Comissão de Defesa do Consumidor.

Levado à plenário, 12 (doze) emendas foram propostas. A Comissão de Defesa do Consumidor rejeitou todas, a Comissão de Constituição e Justiça rejeitou 11 (onze), e propôs subemenda com vistas a suprimir no art. 44, a revogação do art. 51, VII, do Código de Defesa do Consumidor.

Depois de análises críticas de José Genoíno, Nilson Gibson e Jarbas Lima, a Câmara aprovou o projeto em junho de 1996, com a subemenda proposta pela Comissão de Constituição e Justiça, devolvendo-se o projeto à Casa de origem (Senado) para cumprimento do art. 65, parágrafo único da Constituição da República.

O Senado Federal aprovou o projeto com as duas alterações introduzidas na Câmara – adendo ao § 2º do art. 4º, e retirada do dispositivo que revogava o inciso VII, do art. 51 da Lei 8.078/90.

Em sessão solene o Presidente da República sancionou a Lei de Arbitragem, fazendo publicar o texto no D.O.U. de 24.09.96, passando a vigorar 60 (sessenta) dias após a publicação. (21)

Também merece menção a Lei Federal 9.099/95, que Dispõe Sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências, que em sua Seção VIII (arts. 21 a 26), dispõe sobre a Conciliação e o Juízo Arbitral. Caso a conciliação reste infrutífera as partes poderão optar, de comum acordo, pelo juízo arbitral, ocasião em que escolherão árbitro dentre os juizes leigos, que poderá decidir por equidade e deverá apresentar o laudo ao Juiz para homologação por sentença irrecorrível.

Outra importante referência em matéria de arbitragem em nosso ordenamento jurídico está presente no Decreto n.º 4.311, de 24 de julho de 2.002, através do qual o Brasil tornou-se signatário da Convenção de Nova Iorque, que trata das normas de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras.

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Por fim, a Lei 9.541/97 – que criou a alienação fiduciária para imóveis - e disciplina o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), determina que os contratos relativos a financiamentos imobiliários em geral, poderão ter seus litígios ou controvérsias resolvidos por Tribunal Arbitral (art. 34).

1.2. A experiência espanhola e argentina em arbitragem de consumo

1.2.1. Espanha

Neste ponto, a fim de demonstrar a promissora experiência ibérica em matéria de arbitragem de consumo, tomamos a liberdade de nos basear no artigo intitulado "A arbitragem de Consumo na Espanha" de autoria de Marcos Paulo Veríssimo, publicado no site da Confederação das Associações Comerciais do Brasil (CACB) (22).

Para os estudiosos desta promissora experiência o sistema arbitral retrata uma via alternativa de composição de conflitos com elevado grau de efetividade, celeridade e prestígio perante o mercado de consumo da Espanha.

O temor aos riscos inerentes à arbitragem de consumo foram superados pela natureza pública das juntas arbitrais, donde o presidente é sempre funcionário da administração. O tratamento igualitário por seu turno é assegurado com a participação de representantes dos fornecedores e consumidores.

Em breve síntese veremos que as demandas reprimidas ou "litigiosiodade contida" como quer Kazuo Watanabe, foram mitigadas sem a participação jurisdicional. O caminho da arbitragem revelou-se mais adaptado, sobretudo quando os conflitos são de pequena monta.

A Ley de Arbitraje, de 1988, veio para reestruturar substancialmente o que havia em matéria de arbitragem no direito espanhol, em substituição à Lei de 1953. [23]

Em 1993, conforme estudo de Marcos Paulo Veríssimo, o Real Decreto 636, remontou sua base Constitucional, o principal traço do direito arbitral espanhol foi criar um sistema baseado exclusivamente na voluntariedade, e que ao mesmo tempo resulta extremamente efetivo e vantajoso para os consumidores, com crescente adesão por parte destes e dos fornecedores. Isso vem corroborando para que a esmagadora maioria dos litígios de consumo migrem para a arbitragem.

Desde 1978, encontra-se prevista no Direito Espanhol a exigência aos Poderes Públicos de criação de mecanismos eficazes de proteção à saúde, segurança e os legítimos interesses econômicos dos consumidores. (24)

A chamada Lei Geral de Defesa dos Consumidores e Usuários (nº 26/84), com observância ao mecanismo constitucional, previu a criação de um sistema arbitral para resolução de conflitos de consumo.

Por força do mencionado artigo incumbiria ao governo criar, após prévia audiência dos setores interessados e de associações de consumidores usuários, um sistema arbitral que atendesse e resolvesse com caráter vinculante e executivo para ambas as partes sem formalidades especiais, queixas e reclamações originadas de conflitos surgidos em relações de consumo.

A voluntariedade da adesão ao sistema é pressuposto básico, bem como a impossibilidade de arbitrar questões que envolvam intoxicação, lesão, morte ou aquelas que revelem indícios consideráveis de delito.

Os órgãos são integrados por representantes dos setores interessados, das organizações de consumidores e administrações públicas, observadas suas competências.

Assim, em 1986, passou a funcionar em caráter experimental a arbitragem de conflitos de consumo na Espanha com natureza pública, orgânica e institucional. (25)

Em 1988, editada a atual lei de arbitragem espanhola (Lei 36/88), ela passou a ter aplicação expressa aos conflitos de consumo por força da Disposição Adicional Primeira, parágrafo primeiro que diz:

"La presente Ley será de aplicación a los arbitrajes a que se refiere la Ley 26/1984 (..) en todo lo previsto en las mismas y en las disposiciones que las desarrolan, no obstante, no será precisa la protocolización notarial del laudo, que se dictará por los órganos arbitrales previstos en dichas normas."

O parágrafo segundo da mesma Disposição previu a gratuidade das arbitragens de consumo, cujos laudos (laudo arbitral) passam a não necessitar de registro público.

Já a Disposição Adicional Segunda, em seu parágrafo primeiro direcionou a regulamentação da arbitragem de consumo por parte do executivo.

"El Gobierno estabelecerá reglamentariamente la denominación, composición, carácter, forma de designación, y àmbito territorial de los órganos arbitrales y demás especialidades del procedimiento y del régimen jurídico del sistema arbitral que prevé, en suas características básicas, el artículo 31 de la Ley 26/1984."

Por força do dispositivo legal transcrito, foi editado o Real Decreto nº 636/93, que dispõe sobre o sistema de arbitragem de consumo na Espanha, regulando com detalhes o objeto das arbitragens, constituição e funcionamento das juntas arbitrais, aperfeiçoamento do convênio arbitral, laudo arbitral de consumo e feições gerais do sistema arbitral de consumo.

Marcos Paulo Veríssimo, coloca que naquele país existe uma grande quantidade de leis autônomas relativas à matéria, como exemplo menciona o Estatuto Gallego del Consumidor y Usuario (Lei 12/84 de 28 de dezembro), a Ley de Andalucía para la Defensa de los Consumidores y Usuarios (Lei 5/85 de 8 de julho) e o Estatuto de Consumidores y Usuarios de la Comunidad Valenciana (Lei 2/87 de 9 de abril).

A articulação de todo o sistema arbitral de consumo é feita pelas chamadas Juntas Arbitrais. São instituições de natureza pública da administração direta vinculadas às Oficinas Municipais de Informação ao Consumidor e delas participam obrigatoriamente representantes das classes empresariais e dos consumidores. (26)

Interessante que as Juntas podem ter caráter municipal e até nacional, estas conhecem apenas das reclamações apresentadas por associações de consumidores que atuam em mais de uma comunidade autônoma decorrentes de reclamações que também superem este limite territorial.

Todas as Juntas possuem um Presidente e um Secretário, são funcionários que já estão à serviço da administração pública a que estiverem vinculados.

Incumbe às Juntas nomear o Presidente de cada colégio arbitral designado para a solução de dado litígio em particular, que deverá ser funcionário da administração e bacharel em direito. A composição de cada colégio arbitral é sempre de três membros. Escolhido o presidente pelo critério já mencionado, os outros dois devem pertencer a uma associação de empresários e de consumidores respectivamente. As juntas mantêm listas atualizadas com os nomes das pessoas autorizadas a funcionarem como árbitros ou presidente em colégio arbitral.

Também é função da Junta Arbitral fomentar a formalização de convênios arbitrais e atividade de mediação, elaborar e distribuir modelos de convênios arbitrais, orientar os consumidores acerca do sistema e das matérias arbitráveis, bem como elaborar o censo das empresas que aderiram publicamente ao sistema arbitral de consumo. (27)

Dentre as principais características do sistema arbitral espanhol, José Maria de La Cuesta Saenz, menciona: a voluntariedade – decorrência da Lei que instituiu o sistema arbitral de consumo na Espanha, a vontade livre de vícios das partes deve estar presente para que se possa recorrer à arbitragem. De outro lado, do mesmo modo que está posto em nosso direito (art. 51, VII, da Lei 8.078/90), a cláusula compromissória em contrato de consumo é despida de efeito obrigacional em relação ao consumidor.

A par deste fato, comenta Marcos Paulo Veríssimo:

"Ao largo dessa consideração, seria de se esperar que a classe empresarial viesse a boicotar sistematicamente o desenvolvimento do sistema arbitral de consumo, preferindo, sempre, que as reclamações feitas por consumidores fossem remetidas à via jurisdicional ordinária, inimaginavelmente mais lenta e cujos custos normalmente levariam a maior parte das queixas ao esquecimento.

Todavia, o Real Decreto 636/93 criou uma forma bastante inteligente de tornar atrativa a via arbitral para o empresariado, através da criação de um distintivo, conhecido por contraseña , que é outorgado às empresas que se obrigarem à submissão ao sistema arbitral mediante oferta pública (artigo 7º).

Esse distintivo, consiste em um selo em que três setas brancas convergem para o centro de um quadrilátero alaranjado, é, então utilizado pelas empresas com fins publicitários, constituindo um atrativo que se agrega a seus produtos e gera segurança quanto à sua qualidade."

Não é difícil compreender a lógica do sistema. A segurança transmitida ao consumidor que adquire o produto da empresa participante da arbitragem decorre do fato de que, no mínimo, o fornecedor está disposto a compor o conflito, jamais postergá-lo para alhures contando com a desistência de inúmeros consumidores menos dispostos a instaurar uma demanda judicial para solucionar pendências de pequeno valor, como são tantas nas relações de consumo.

Para submeter-se ao sistema arbitral mediante oferta pública o fornecedor firma convênio com uma Junta Arbitral de Consumo, onde consta o âmbito de sua extensão, submissão aos termos do Real Decreto 636/93, o compromisso de cumprimento do laudo e o prazo de validade da oferta (na sua omissão entende-se indeterminado).

Em um livro constantemente atualizado, as Juntas mantém os dados dos fornecedores registrados e de todas as empresas ou entidades que dispõe do distintivo.

Somente em 1992 (antes da regulamentação do sistema arbitral de consumo), segundo dados da Consejia de Bienestar Social, foram realizados 12.592 (doze mil quinhentas e noventa e duas) arbitragens, nada menos que 96,2% (noventa e seis vírgula dois porcento) das solicitações efetuadas.

A segunda característica é a gratuidade , ela está mencionada na atual lei de arbitragem espanhola e restringe-se à arbitragem de consumo. Às partes incumbe apenas despesas decorrentes da produção de provas, ainda assim dividem-se as despesas daquelas de interesse comum.

O caráter vinculante e executivo dos laudos é outro traço marcante da arbitragem de consumo. Assim, para os fornecedores previamente participantes da arbitragem, basta que o consumidor formule a solicitação de arbitragem para que o convênio se aperfeiçoe imediatamente.

Quando o fornecedor ainda não participa do sistema ele é notificado para aderir ou recusar a arbitragem no prazo de 15 (quinze) dias.

Firmado o convênio as partes ficam vinculadas à arbitragem, o mesmo ocorrendo com os árbitros designados pela Junta que tenham aceito o encargo. Se ainda assim uma das partes pretender levar a demanda à justiça comum, a parte interessada pode opor exceção de incompetência de jurisdição. De outro lado, nem mesmo a inércia das partes impede a prolação da decisão, tampouco sua força definitiva e executória.

O laudo goza ainda da eficácia das sentenças judiciais, fazendo coisa julgada, além disso, permite que sua execução seja realizada no juízo de primeira instância do lugar em que houver sido proferido.

A informalidade é a característica que permite a instauração do procedimento arbitral sem a necessidade do rígido apego a padrões previamente estabelecidos, garantia que influi diretamente na celeridade.

Celeridade, para Marcos Veríssimo é o maior atrativo do sistema. Os árbitros estão obrigados a proferir o laudo no prazo máximo de 4(quatro) meses (art. 14 do Real Decreto 636/93), o prazo conta-se da designação do colégio arbitral (art. 14, I), porém entre 1987 e 1992, os procedimentos arbitrais duraram em média de 1 (um) a 3 (três) meses – dados da Consejia de Bienestar Social.

Por fim, a unidirecionalidade do sistema – característica presente apenas na arbitragem de consumo – está umbilicalmente ligada à vulnerabilidade que permeia o conceito de consumidor. Este princípio veda a possibilidade de reconvenção do fornecedor em face do consumidor. (28)

No que respeita ao procedimento arbitral, basta o nascimento de um conflito de consumo para que o consumidor decida por sua solução pela via arbitral. Isso se faz por meio de uma associação de classe ou por iniciativa própria sem a necessidade de representação de advogado.

Apresentada a solicitação à Junta Arbitral competente, o fornecedor é notificado para firmar convênio arbitral (caso ainda não o tenha feito) quando então o convênio se instaura pela simples apresentação da solicitação do consumidor. A recusa da solicitação poderá ser feita pelo Presidente da Junta Arbitral nos casos de matéria não arbitrável ou quando envolver indícios consideráveis de delito.

Superada a formalização do convênio o procedimento se inicia pela designação do Colégio Arbitral (conforme visto anteriormente). Ouvidas as partes em audiência ou por escrito, tenta-se a conciliação. Caso seja necessária a produção de provas elas serão requeridas pelas partes e sua produção passa pelo crivo do colégio, que pode inclusive requisitá-las de ofício.

Produzidas as provas o laudo deverá ser proferido. Seus requisitos são: local e data, nome das partes e árbitros com suas respectivas qualificações, os pontos controvertidos objeto da arbitragem, suma das alegações das partes, provas, prazo para cumprimento do laudo, voto da maioria e do presidente quando não unânime. Contra o laudo cabe "recurso de anulação".

O ilustre autor do estudo aqui transcrito questiona em suas conclusões se a experiência ibérica poderia ser utilizada no Brasil, ao que responde afirmativamente. Lembra contudo, que o trabalho carece de uma atuação competente da administração pública e de uma consciência de cidadania dos consumidores a quem incumbiria, ao menos, o papel de preterir um produto a outro pelo simples fato de um apresentar o distintivo da arbitragem de consumo e outro não.

José Celso Martins, Advogado e Presidente do Tribunal arbitral de SP, comenta sobre a experiência espanhola em arbitragem de consumo:

"A experiência mais profícua é a da Espanha, onde associações de consumidores organizaram tribunais arbitrais, e os fornecedores que se submetem à convenção arbitral são preferidos na prática comercial. A União Européia tenta agora estender a experiência espanhola ao resto dos Estados membros (Bento, 1997)." (29)

1.2.2. Argentina

Além do que já dissemos a respeito da aplicação da arbitragem em conflitos de consumo na Espanha, Paulo Borba Casella, menciona os excelentes resultados do uso da arbitragem na proteção dos consumidores na Argentina. E revela de forma sucinta seu funcionamento.

"Os TAC, ou Tribunais de Arbitragem de Consumo, instalados este ano na Argentina, em três meses, julgaram dezenas de casos, conforme dados da Subsecretaria do Comércio. A jurisdição do TAC somente se exerce mediante adesão voluntária, ou seja, as partes, previa a expressamente estipulam concordar com a jurisdição do TAC e igualmente acordam que tal decisão não comporta recurso, sendo final e executável prontamente.

A apresentação do caso ao TAC é feita diretamente pelo consumidor, sem intermediação de advogados, obviando o óbice econômico normalmente representado pela necessidade de contratação de profissional jurídico.

Se a empresa não aderir ao TAC ou se recusar a comparecer, o consumidor pode levar sua denúncia aos órgãos da administração. Na Argentina, a Direção Nacional do Comércio Interior, nos termos da Lei 24.240, que dispõe sobre a defesa do consumidor. (30)

1.3. Direito do consumidor: histórico e aplicação

O Direito do Consumidor tem despertado crescente interesse em todo o mundo. Verdadeiramente, a própria realidade social tem sido palco dessa mudança onde o consumerismo vem crescendo em importância.

Historicamente, os direitos da coletividade começam a ser levados em consideração após a revolução industrial (séc. XVIII), donde seguiram-se as lutas operárias por melhores condições de trabalho, deslocando-se o indivíduo do centro das atenções para dar lugar a pluralidade do coletivo. (31)

De outro lado, o aumento da produção mundial e a entrada facilitada de produtos e serviços em diversos países, põe os mecanismos de proteção ao consumidor à prova.

Nesse passo, surge a intervenção estatal a fim de coibir a prática de abusos para que o mais fraco seja protegido dos desequilíbrios advindos das relações jurídicas.

Cabe ao Estado essa proteção, sobretudo quando consideramos a realidade de nosso país, onde as massas são formadas em sua imensa maioria de infortunados, tanto os que consomem mais que outros, como os que quase não consomem.

A par dessa discussão, multiplicam-se os problemas que deixam de ser individuais e passam a ser da coletividade dos consumidores.

A recente redemocratização em nosso país, advento da Constituição de 1988, conferiu um leque de direitos ao cidadão, todavia, só se pode afirmar que foi após a edição da Lei 8.078/90 que o país passou a ter uma legislação específica atinente às relações de consumo.

Sob certo sentido poderíamos ser levados a crer que uma lei que trata especificamente de consumidores em um país de indicadores sociais abaixo de muitos outros, onde inúmeras pessoas beiram ou estão abaixo do nível da miséria e que não são alcançados pelo Estado, poderia ser uma lei discriminatória.

Entretanto, a Lei 8.078/90 ao tratar da Política Nacional das Relações de Consumo, em seu artigo 4º, determina a promoção da melhoria da qualidade de vida. Além disso, a facilitação de acesso à justiça, ou meios que venham a solucionar conflitos de consumo estão previstos no artigo 5º, deste mesmo diploma.

Sem sombra de dúvida, a Lei 8.078/90 veio para suprir a necessidade de normatização específica na área de Direito do Consumidor.

O diploma em estudo surgiu diante da premência de proteção ao pólo mais fraco da relação de consumo, qual seja, o consumidor.

Estranho ao cenário jurídico até recentemente, o consumidor emerge agora quando se busca a sua tutela.

O norte desta legislação encontra-se no direito alienígena, especificamente Europa e EUA. Rompendo conceitos ortodoxos e adaptando-os à realidade, esse microssistema criou caminhos para a solução de problemas vivenciados por nossa sociedade. (32)

A sua elaboração, voltada de forma cuidadosa ao direito e à vida prática tem seu fulcro na Constituição Federal de 1988, mais precisamente em seu art. 5º inciso XXXII, na verdade, corolário da resolução 39.248 de 10/04/85 da ONU. (33)

É o próprio artigo 1º da Lei 8.078/90 que elucida o fundamento constitucional de sua promulgação, desse modo, impõe-se ao destinatário da norma (o Estado) promover, na forma da lei, a defesa do consumidor.

Esta preocupação não foi ignorada no capítulo da Constituição Federal de 1988 que cuida da Ordem Econômica, apresentando como princípio do artigo 170, a defesa do consumidor.

Já o artigo 150, da Carta Magna, atinente às limitações do poder de tributar, estabelece no seu § 5º que a "lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca de impostos que incidam sobre mercadorias e serviços."

O artigo 175, II, também da Constituição da República nos remete aos direitos dos usuários dos serviços públicos concedidos ou permitidos.

Por derradeiro, não se pode esquecer do artigo 48, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que fixa prazo de cento e vinte dias para o Congresso Nacional elaborar o Código de Defesa do Consumidor, prazo aliás, inobservado pela casa legislativa.

A idéia básica do nosso "Código do Consumidor" é assegurar a proteção à vida, à saúde, à segurança, e ao patrimônio do consumidor.

Importante notar que o direito brasileiro adotou, via de regra, através da Lei 8.078/90, a teoria da responsabilidade objetiva.

O referido diploma recebeu inúmeros elogios, dentre eles destacamos o seguinte:

"Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, observamos que o processo legislativo vinha sofrendo um desvirtuamento, na medida em que a maioria das leis que estavam sendo aprovadas provinham de Medidas Provisórias baixadas pelo Presidente da República, reduzindo o poder do Congresso Nacional na discussão e aprovação das medidas.

Ao contrário dessa rotina preocupante, a lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) é uma das mais democráticas leis editadas no Brasil nos últimos tempos." (34)

Considerada em todo o mundo como uma das mais avançadas legislações de defesa do consumidor, a Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), inovou o conceito dos institutos jurídicos tradicionais, sobretudo nos ordenamentos judicial e administrativo, porquanto define suas práticas jurídicas na proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos e não mais apenas individuais.

O recém implantado Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (através do Decreto Federal 2.181/97) e a instalação da Comissão Nacional Permanente de Defesa do Consumidor, objetivando a articulação entre os organismos Federais, Estaduais, do Distrito Federal e Municipais, são as mais decisivas iniciativas para o exercício dos direitos de cidadania, visando a proteção do consumidor quanto ao atendimento de suas necessidades, respeito à sua dignidade, saúde, segurança e a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como o equilíbrio e a equidade nas relações de consumo.

Cabe salientar a principiologia do instituto. Tais princípios, como não poderia deixar de ser, servem de farol na defesa do consumidor. Com efeito, no que concerne à importância dos princípios, a melhor lição ainda é a do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, ao frisar a necessidade de respeito a estes, sob pena de comprometimento de todo o sistema.

"A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a, específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque com ofendê-lo abatem-se as vigas que o sustém e alui-se toda a estrutura neles esforçada." (35)

A sociedade de produção e consumo tem por características predominantes o anonimato das partes, a complexidade dos bens e produtos e a velocidade das negociações. Inegável que tal modo de proceder gere riscos. Assim sendo, nada mais justo que os agentes sejam responsabilizados pelos riscos que criaram.

Vê-se que o caráter protetivo do "Código", funda-se justamente na desigualdade existente entre as partes contratantes. A esse respeito sustenta Josserand:

"Há em nosso espírito e nos nossos nervos, um movimento de defesa espontâneo, uma reação instintiva; quanto mais o homem está em perigo, tanto mais experimenta a necessidade de ser protegido pelo legislador ou pelo juiz, de poder identificar um responsável; o desdobramento da responsabilidade é assim função da insegurança e a fórmula viver perigosamente fatalmente uma outra que lhe constitui a réplica e a sanção: responder pelos nossos atos." (36)

A codificação das aspirações dos consumidores e da sociedade como um todo não significa o fim dos problemas. É na verdade o início de uma batalha que já vinha sendo travada há muito tempo.

Contudo, aqueles que batalhavam vêem agora em suas mãos uma ferramenta poderosa para a solução de conflitos.

Diante da realidade socioeconômica do país, onde a maioria não tem acesso à Justiça, necessário se faz que busquemos a educação para o consumo. Pois atuando preventivamente estaremos beneficiando toda a sociedade.

Neste sentido, não seria justo deixar de fazer menção ao trabalho dos diversos órgãos de defesa do consumidor criados em nosso país, em especial ao da Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (PROCON-SP), vinculada à Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, que trabalha no sentido de orientar e tutelar a sociedade reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor.

Acrescente-se também o importante papel das entidades particulares de Defesa do Consumidor, (a exemplo do Instituto de Defesa do Consumidor - IDEC), que em atenção aos preceitos da Lei 8.078/90, atuam de maneira exemplar exercendo a defesa do consumidor.

Em seus 119 (cento e dezenove) artigos essa norma multidisciplinar, que abrange aspectos do contexto geral das chamadas relações de consumo, traz os conceitos de fornecedor, consumidor, produto e serviço (arts. 1º e 3º); fala da Política Nacional das Relações de Consumo (arts. 4º e 5º); Do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (arts. 105 e 106), da Convenção Coletiva de Consumo (art. 107); direitos básicos do consumidor (art. 6º e 7º); definições de direito material sobre produtos e serviços, qualidade segurança, responsabilidade (arts. 8º a 25); regulamentação das práticas comerciais, cláusulas contratuais, oferta, publicidade, garantia (arts. 29 a 40 e 46 a 54); sanções administrativas (arts. 55 a 60) e penais (arts. 61 a 80); normas sobre prescrição e decadência (arts. 26 e 27); inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII); desconsideração da personalidade jurídica (art. 28); banco de dados cadastrais (arts. 43 e 44); bem como uma parte processual (arts. 81 a 104), somados aos artigos que modificaram a lei de ação civil pública – Lei 7.347/85- (arts. 110 a 117).

Pois bem, com esse breve panorama vemos que, sem sombra de dúvida, após a promulgação da Lei 8.078/90 instaurou-se o regime legal específico da tutela consumerista. Nada obstante, esta lei (ou Código) admite a realização de uma integração normativa com diversas outras leis federais e mesmo estaduais (pessoas políticas dotadas de competência concorrente para legislar sobre produção e consumo).

Normas específicas sobre planos privados de saúde, transporte aéreo, distribuição e revenda de combustíveis, alimentos, fármacos, sistema financeiro, sem esquecer nosso diploma processual civil e próprio Código Civil, servem de supedâneo para operacionalizar a tutela dos consumidores.

A codificação, mutatis mutandis, equipara-se ao que diz o Professor Rodolfo de Camargo Mancuso, que metaforicamente entende haver a existência de um "núcleo" e um "entorno", sendo o núcleo composto pela Constituição Federal e pela Lei 8.078/90, e o entorno por todas as normas legais e infra-legais aplicáveis nas relações consumeristas (37).

Assim, nada obstante a nomenclatura formal que recebeu da casa legislativa (Lei 8.078/90), não verificamos óbice à alcunha de "Código" que recebeu a Lei Federal, até porque a idéia inicial era de aprovação de um Código, idéia que só não vingou por força de lobbies contrários ao novel diploma.

1.4. Identificando a relação de consumo

Considerando que em relação ao(s) árbitro(s) da causa, dada a necessidade de sua especialização, é desejável o domínio da matéria sobre a qual irá decidir, passaremos a discorrer sobre os partícipes da relação jurídica de consumo (consumidor/fornecedor), bem como seus objetos (produtos/serviços).

No que toca a aplicabilidade ou campo de incidência do diploma legal objeto deste estudo, temos claro que ela fica restrita às relações de consumo.

Porém, quando poderemos afirmar que estamos diante deste tipo de relação jurídica, e não de uma relação eminentemente civil ou comercial?

É de suma importância conceituar consumidor e os demais elementos constitutivos de uma relação de consumo, pois daí se extrai a abrangência desse microssistema.

É importante buscarmos na própria lei a resposta a tal questionamento. Para que se caracterize a chamada relação de consumo é mister que se verifique a presença de três elementos definidos nos artigos 2º e 3º da lei em estudo.

Passemos a ver com mais vagar tais elementos ou pressupostos:

- Consumidor:

"Art. 2º Consumidor é toda a pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único: equipara-se a consumidor toda a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo."

- Fornecedor:

"Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como entes despersonalizados, que desenvolvam atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços."

- Produto:

"Art. 3º (...)

§ 1º - Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial."

- Serviço:

"Art. 3º (...)

§ 2º - serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive os de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes de relações de caráter trabalhista."

Pois bem, analisemos cada uma desta figuras:

O conceito de consumidor adotado pela Lei 8.078/90, apega-se exclusivamente ao caráter econômico, consumidor é o personagem que adquire bens e serviços no mercado de consumo como destinatário final, pressupondo, evidentemente uma necessidade própria e não outra atividade comercial. (38)

Assim agindo, o legislador rechaçou do conceito de consumidor componentes de natureza sociológica, psicológica, ou mesmo filosófica, segundo ensina José Geraldo de Brito Filomeno ao citar o escólio de Guido Alpa. (39)

Toda relação jurídica de consumo envolve esta parte bem definida conhecida por consumidor - o adquirente de um produto ou serviço com a satisfação de uma necessidade privada de sua parte.

Para José Geraldo De Brito Filomeno, o traço marcante dessa personagem reside em sua hipossuficiência ou vulnerabilidade. (40)

A mesma questão apreciada por José Reinaldo de Lima Lopes, também adepto da teoria finalista ganha os seguintes contornos:

"Em primeiro lugar , o fato de que bens adquiridos devem ser bens de consumo e não bens de capital. Em segundo lugar, que haja entre fornecedor e consumidor um desequilíbrio que favoreça o primeiro." (41)

Importante abrir um breve parêntese para a aguda observação de Cláudia Lima Marques no que respeita ao artigo 2º. Sintetiza as duas grandes tendências do consumerismo ao interpretar o mencionado artigo, em finalistas e maximalistas. (42)

Destaca a autora que a tutela especial conferida ao consumidor está calcada em sua vulnerabilidade.

Nesse passo, a expressão "destinatário final" deve ser interpretada de forma restrita, aplicando-se somente àquele que adquire um bem para utilizá-lo em proveito próprio ou de sua família.

De outro lado estão os maximalistas. Estes interpretam a definição do artigo 2º da forma mais extensiva possível, pouco importando se a pessoa física ou jurídica tem ou não fim de lucro quando adquire um produto ou contrata um serviço.

Sem embargo das doutas opiniões doutrinárias acerca da questão, entendemos seja mais correta a aplicação da teoria finalista, sem perder de vista a vulnerabilidade econômica e a possibilidade da pessoa jurídica integrar a relação na qualidade de consumidor, por isso, a determinação far-se-á de maneira objetiva e casuística. Este também é o entendimento de José Geraldo de Brito Filomeno.

Se o bem adquirido integra a cadeia produtiva, fazendo parte do ativo circulante, nada tem a ver com destinação final, devendo portanto ser afastada a hipótese de relação jurídica de consumo. Todavia, se um bem, ainda que adquirido por pessoa jurídica, não integra seu ativo circulante mas apenas o ativo fixo, não se confundindo com o objetivo social da pessoa jurídica esta poderá ser tida por destinatário final, merecendo a tutela consumerista.

Além da definição de consumidor acima transcrita, o legislador criou ainda a figura do consumidor por equiparação.

Conforme já assinalado, a vulnerabilidade econômica deve ser levada em consideração quando da identificação do consumidor, esta noção é mandamento principiológico da Lei 8.078/90.

O § 2º, do artigo 2º, da Lei 8.078/90, trata de uma coletividade de consumidores, uma universalidade ou conjunto relacionado a determinado produto ou serviço.

Serão consumidores ainda, nos termos do artigo 17 da Lei 8.078/90, todas as vítimas do evento que decorra da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço.

Outra figura equiparada a consumidor é aquela do artigo 29. Por este dispositivo, todas as pessoas ainda que indetermináveis expostas às práticas comerciais ali previstas são consideradas consumidores.

Dentre os fornecedores, a lei traz em primeiro lugar, a pessoa física ou natural. Aqui a lei se refere a qualquer pessoa física, pouco importando sua qualificação no mundo jurídico, desde que forneça produto ou serviço ao consumidor com habitualidade. Logo, fornecedor legalmente considerado pode ser pessoa física, desde que desenvolva alguma das atividades constantes do art. 3º.

Seguindo avante, a lei diz que fornecedor pode ser também pessoa jurídica. Esta por sua vez, pública de direito interno ou externo, ou privada.

As pessoa públicas nacionais são, no Brasil, aquelas citadas no artigo 41 do Novo Código Civil (Autarquias, Estados, Territórios, Distrito Federal, Municípios, União e demais entidades de caráter público criada por lei). Neste conceito enquadram-se ainda aquelas que desenvolvam qualquer das atividades sob a forma de permissão ou concessão.

Os fornecedores estrangeiros que exportam produtos ou serviços para o país, podem arcar com a responsabilidade perante o importador pela via regressiva.

Para o legislador, também são considerados fornecedores os entes despersonalizados. Ou seja, aqueles que embora não dotados de personalidade jurídica, quer no âmbito mercantil, ou civil, exercem atividade produtiva de bens e serviços.

Sobre as atividades desempenhadas pelos fornecedores encontramos as de: produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização.

Os entes despesonalizados e entidades associativas (condomínios e associações) não se enquadram na figura de fornecedor. Seu objetivo social é deliberado pelos próprios interessados, representados ou não por conselho deliberativo.

No caso dos condomínios, quando não há serviço prestado por terceiro, senão pela própria entidade, não há que se falar em fornecedor.

De outro lado, se tomarmos como exemplo uma entidade associativa cujo fim é a prestação de serviços de assistência médica, que cobre mensalidade ou outro tipo de contribuição, será fornecedora de seus serviços. Isso porque destina-se a prestação daqueles serviços e não à gestão de coisa comum.

Conforme salientado, sob o rótulo de fornecedor, encontramos as mais variadas formas de pessoas jurídicas, sejam elas de direito público ou privado e até mesmo entes despersonalizados.

Todavia, a falta de habitualidade na realização de qualquer das atividades atribuídas ao fornecedor tem o condão de descaracterizar esta figura chave das relações de consumo para um negociante civil.

O critério legal é claro e exige a habitualidade. Esta, no caso das pessoas jurídicas, fica restrita ao seu ramo de atividade, delineado em seu Contrato Social.

Portanto, é a atividade que qualifica o outorgante como fornecedor, para os fins legais, e qualifica a relação negocial em relação de consumo.

Dos parágrafos 1º e 2º do art. 3º estraímos os objetos da relação de consumo: bens ou serviços.

Quanto à mobilidade os produtos são classificados em bens móveis, (veículos, vestuário, alimentação etc). Na categoria dos bens imóveis estão aqueles destinados à moradia e os aviões (estes por definição legal).

É também considerado bem móvel para efeitos legais todo o bem suscetível de movimento próprio ou de remoção por força alheia (art. 82 do novo Código Civil) donde se conclui que animais de estimação adquiridos no mercado de consumo são considerados produtos e certamente sujeitam-se a teoria dos vícios e demais disposições aplicadas ao consumo. Considera-se móvel para efeitos legais os direitos de autor, os direitos reais sobre móveis e as correspondentes ações, bem como os direitos de obrigações e respectivas ações. (43) Acrescentamos ainda as energias que tenham valor econômico (art. 83 inc. I, do novo Código Civil).

Imóvel compreende o solo com sua superfície, seus acessórios, e adjacências naturais, compreendendo árvores e frutos pendentes, além dos direitos reais sobre imóveis e o direito à sucessão aberta (artigos 79 e 80, I e II do novo Código Civil).

Divide-se ainda os produtos em materiais (palpáveis) e imateriais (intangíveis).

A definição é aqui também a mais ampla possível. Estando o objeto inserido na relação de consumo é indiferente a sua natureza corpórea ou incorpórea.

Os bens materiais, embora não definidos no direito positivo devem ser compreendidos quando contrapostos aos bens imateriais. Os bens materiais, portanto, são passíveis de medição, apreensão etc.

Bens imateriais, embora intangíveis podem ser avaliados economicamente e entrar para o comércio. Para Washington de Barros Monteiro, em sua obra "Direito das Coisas" inclui-se nesse campo a propriedade literária, científica e artística.

A Lei 8.078/90, qualifica serviço como sendo qualquer atividade fornecida no mercado de consumo mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Escapa dessa definição os tributos, vinculados ou não, com ou sem destinação específica (taxa, contribuição de melhoria, imposto, empréstimo compulsório e contribuição social). (44)

Já as tarifas ou preço público, estão inseridas no contexto dos serviços prestados diretamente pelo poder público, ou mediante concessão ou permissão pela iniciativa privada.

O mesmo se pode dizer das atividades desempenhadas pelas instituições financeiras, seja na prestação de serviços aos seus clientes, seja na concessão de empréstimos, financiamentos e emissão de cartões de crédito. Inclui-se igualmente no conceito de serviços os planos de previdência privada, além dos seguros propriamente ditos eos de saúde. (45)

Sobre as relações de caráter trabalhista, assinala José Geraldo de Brito Filomeno que encontram-se fora da incidência da Lei 8.078/90, salvo as empreitadas de mão-de-obra ou empreitadas mistas. Esta exceção, segundo o doutrinador, está presente nos diplomas legais de todos os países que dispõe de leis ou códigos de defesa do consumidor, como Portugal, Espanha, México, Venezuela e outros. (46)

A expressão "mediante remuneração" prevista no §2º, do art. 3º, é a nosso ver representativa e não exige a remuneração direta, podendo ela estar embutida em outros custos revestindo o serviço de aparente gratuidade.

Como exemplo citamos os fornecedores instalados em complexos denominados shopping centers, onde são oferecidos serviços de estacionamento sem remuneração direta. Em tais situações estabelece-se um contrato de depósito entre o empreendedor/administrador e o consumidor no momento em que o bem é confiado ao primeiro. O serviço de estacionamento e guarda será certamente cobrado quando da aquisição de qualquer bem dentro do complexo comercial além de funcionar como atrativo que transmite segurança e comodidade ao consumidor.

Do exemplo, nota-se com clareza que o pagamento indireto do serviço não desnatura a relação de consumo. Repisamos que no caso citado estabeleceu-se ainda, de forma clara o contrato de depósito , nascendo daí o dever de guarda do bem.

1.5. Relação de consumo no direito brasileiro: um conceito mais amplo

Muito sem tem dito acerca do conceito de relação jurídica de consumo. As definições permeiam os manuais, doutrinadores de renome apresentam seus conceitos e buscam subsídios na doutrina e legislação extravagante.

Em regra, as definições giram em torno dos sujeitos da relação (consumidor/fornecedor) e do seu objeto (produto/serviço). Do vínculo que aproxima esses elementos nasce a relação de consumo, tendo sido ela comumente definida como aquela formada entre um fornecedor e um consumidor tendo por objeto um produto ou serviço.

Assim, dessa relação tripartite (e só dela) nasce a relação jurídica de consumo. Mas será que outras hipóteses nos autorizariam a dar um conceito de relação de consumo mais amplo do que este frequentemente encontrado nos manuais?

É verdade que esse conceito a que acabamos de nos referir supre a quase totalidade das situações previstas no CDC porém, como veremos adiante diversas situações da fase pré-contratual lhe escapam.

Pois bem, todos sabemos que a Lei 8.078/90 traz um conceito standard de consumidor e outros três conceitos por equiparação (parágrafo único do art. 2º, art. 17 e art. 29).

O primeiro fala da coletividade de consumidores que de alguma forma haja intervindo nas relações de consumo, o segundo nos remete às vítimas de um evento danosos decorrente de um acidente de consumo e o último foi especialmente posto na lei para proteger os consumidores das práticas comerciais (oferta, publicidade, práticas e cláusulas abusivas).

Dentro desse contexto fica patente que a proteção ao consumidor na lei brasileira não está limitada ao contrato. Ou seja, mesmo antes de adquirir um bem ou serviço qualquer pessoa exposta a publicidade ilícita ou aquele que acaba vitimado por um acidente de consumo – fato do produto - estão abarcados no conceito de consumidor.

Daí uma primeira premissa aparentemente óbvia, mas que nos ajudará a construir o conceito a que nos propomos pode ser traçada: consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final ou qualquer pessoa vitimada pela violação de um direito seu tutelado pela lei de consumo (saúde, segurança, vida, imagem, paz social, boa-fé etc).

Adiante, a Lei 8.078/90 traz o conceito de fornecedor e ao contrário do que ocorre com o conceito de consumidor traz apenas uma definição standard sem recorrer à equiparação (a equiparação à figura de fornecedor só veio a ocorrer recentemente com a entrada em vigor do Estatuto do Torcedor).

Por fim a lei tratou de definir produto e serviço. O primeiro como qualquer bem móvel ou imóvel material ou imaterial e o segundo como qualquer atividade prestada no mercado de consumo.

Temos conosco que em determinadas situações a formação do vínculo de consumo prescinde da identificação no caso concreto da figura do consumidor (o consumidor pode ou não ser identificado), já o objeto da relação de consumo não deve necessariamente recair sobre um produto ou serviço, ele pode ser simplesmente um fato ou ato jurídico vedado pelo sistema de proteção ao consumidor.

Por isso ninguém nega que o consumidor que está no sossego de seu lar postado diante da televisão que a todo o momento lhe oferece uma gama infinda de bens de consumo, possui legitimidade para obstar uma publicidade enganosa (que viole o dever de não enganar) ou abusiva (que viole a paz social incitando à violência) e neste caso ninguém duvida que a relação jurídica de consumo já está formada em sua fase pré-contratual.

O mesmo se pode dizer de uma prática comercial abusiva que anteceda a fase do contrato (pré-contrato). Não menos amparada está a pessoa absolutamente estranha à determinada relação contratual de compra e venda (extracontrato) que por uma fatalidade é vitimada em acidente de consumo (v.g. vítima de atropelamento em decorrência de um defeito no sistema de direção de um veículo que saiu do leito carroçável e ingressou no passeio público atingindo um pedestre).

Assim, entendemos que a relação de consumo no direito brasileiro abarca o consumidor padrão que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final bem como aquele que foi guindado à posição de consumidor pela lei de consumo quando houver ofensa a um seu direito ali protegido.

Um conceito mais abrangente (mas que não encampa todas as hipóteses como no conceito proposto) é o do ex-secretário adjunto da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania de SP, Gianpaolo Poggio Smanio:

Para esse conhecido doutrinador

"Essa relação de consumo pode ser efetiva (exemplo: compra e venda de automóvel) ou potencial (exemplo: propaganda) portanto, para termos relação de consumo, no Código do Consumidor, não é necessário que o fornecedor concretamente venda bens ou preste serviços, basta que, mediante oferta, coloque bens à disposição de consumidores potenciais." (47)

A partir de então, chegamos ao seguinte conceito de relação jurídica de consumo.

Relação jurídica formada por um (ou diversos) consumidor(es) e um (ou mais de um) fornecedor que tenha como objeto um bem de consumo (produto ou serviço) ou a violação de um bem jurídico protegido pela lei de consumo direta ou indiretamente perpetrada por um fornecedor.

A parte final do conceito se justifica na medida em que a regra do sistema de responsabilidade do CDC é objetiva e portanto basta que o fornecedor dê causa à violação de direito para que responda pelo ato. É o que ocorre no exemplo do fato do produto a que acabamos de nos referir.

Ninguém duvida que a inscrição indevida do nome de um cidadão nos famigerados arquivos de consumo (ainda que este nunca tenha adquirido qualquer bem do fornecedor que providenciou a negativação) viola o direito à imagem e intimidade do lesado. Essa lesão de um bem jurídico protegido pelo legislador federal de consumo encontra previsão de responsabilidade civil (e administrativa) na lei de consumo sendo portanto insustentável dizer que não se trata de relação de consumo pelo simples fato de que o lesado não adquiriu um bem ou serviço do suposto credor.

O mesmo ocorre nas hipóteses em que o consumidor se depara com uma publicidade enganosa, abusiva ou métodos comerciais desleais. Nessas circunstâncias ele só poderá exigir a reparação utilizando da Lei 8.078/90 porque evidentemente ao ser equiparado a consumidor (típico) passou a integrar o pólo passivo da relação jurídica e portanto integrar a relação de consumo sem nada ter consumido, mas como já dissemos apenas por ter um bem jurídico seu agredido pelo fornecedor, bem jurídico este positivado no Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

Com isso queremos derrubar o mito de que a relação de consumo deve necessariamente ter por objeto um produto ou serviço ou a intenção de sua aquisição, o que, conforme visto não é verdadeiro pois a relação jurídica (sujeição de um interesse alheio a um interesse próprio na definição de Carnelutti) já estará formada no momento da violação da ordem jurídica de consumo independente da aquisição ou intenção de aquisição de bens ou serviços.

Sobre o autor
Evandro Zuliani

técnico de proteção e defesa do consumidor da Fundação Procon/SP, advogado em Santo André (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZULIANI, Evandro. Arbitragem e os órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 257, 15 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4987. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho vencedor do Concurso de Monografias Rubens Limongi França e Carlos Alberto Bittar promovido pela OAB/SP em agosto de 2003.

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