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Princípio da saisine

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Agenda 18/07/2016 às 10:49

Os sucessores são legitimados para defender direitos, ações, pretensões e exceções daquele que morreu, antes mesmo de qualquer procedimento relativo ao inventário.

Sumário:1. A Morte como Fato Juridicamente Relevante para o Direito Civil. 2. Princípio da Saisine ou Droit de Saisine. 3. Princípio da Sucessão em Todo. 4. Princípio da Aquisição Eo Ipso. 5. Exceções ao Princípio da Saisine. 6. A Herança e os Interesses Tutelados. 7. Entendimento Jurisprudencial. 8. Conclusão


1. A Morte como Fato Juridicamente Relevante para o Direito Civil

O ser humano está sujeito ao inexorável ciclo vital: nascer, crescer, reproduzir, envelhecer e morrer.[1] Correto: alguns só conhecem os extremos do ciclo, mas, mesmo assim, a Lei Civil não os desampara, protegendo todos indistintamente, quer tenham vivido mais de cem anos ou quer tenham tido apenas um ligeiro lapso de existência. A proteção à pessoa humana e a sua dignidade é uma cláusula central do ordenamento jurídico e isso decorre por influência e incidência do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no inciso III, do artigo 3º da Constituição Federal.

O Código Civil é o diploma normativo que rege a vida das pessoas naturais no aspecto jurídico e social desde sua concepção até para depois da morte, razão pela qual há estudiosos que afirmam ser a Lei mais importante do universo jurídico, pois alcançam todas as pessoas naturais.

Conforme asseverado, alguns doutrinadores falam ser o Código Civil mais importante, inclusive, do que a própria Constituição Federal, pois nascendo e morrendo, consecutivamente, lhe alcançaria a proteção existente no Código Civil. Assim, um natimorto terá adentrado na proteção existente no Código Civil, tais quais: (a) os direitos da personalidade serão intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o sofrer limitação voluntária; (b) exigência judicial – qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau terá legitimidade para pleitear a medida - de que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei;  (c) proibição ato de disposição do próprio corpo, ou, ainda, na hipótese de se contrariar os bons costumes; (d) direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome e que não seja empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória; (e) utilização do nome alheio em propaganda comercial.

Logo no portal do Código Civil brasileiro está estampada a seguinte regra jurídica: “Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. No outro extremo da vida encontramos a morte, a indesejada das gentes (na inigualável linguagem de Machado de Assis), prevista consoante artigo 6º do Código Civil: “Art. 6o A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva. Art. 7o Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência: I - se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II - se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento”.

Washington de Barros Monteiro ensina que: “A existência da pessoa natural termina com a morte (Cód. Civil, art. 6º). Verificado esse evento, abre-se-lhe a sucessão. Desde o óbito, sem solução de continuidade, opera-se a transmissão da herança, ainda que os herdeiros ignorem o fato do falecimento. Antes da morte, o titular da relação jurídica é o de cujus; depois dela, passa a ser o herdeiro, legítimo ou testamentário. E é o próprio defunto que investe o sucessor no domínio e posse dos bens hereditários. Esse princípio vem expresso na regra tradicional do direito gaulês le mort saisit le vif. Quer dizer, instantaneamente, independente de qualquer formalidade, logo que se abre a sucessão, investe-se o herdeiro no domínio e posse dos bens constantes do acervo hereditário. Dessa máxima le mort saisit le vif surgiu o termo saisine, e, pois, saesina juris, pelo qual os velhos práticos assinalavam a transmissão da herança”.[2]

O direito reputa importante determinados atos, trazendo-os para a esfera jurídica, com o timbre da ordem jurídica. Nascimento, maioridade, insanidade e morte são algumas das hipóteses que demonstram a relevância dos fenômenos naturais para a esfera jurídica. Marcos Bernardes de Melo dispara:

“Todo fato jurídico em que, na composição do seu suporte fáctico, entram apenas fatos da natureza, independentes de ato humano como dado essencial, denomina-se fato jurídico stricto sensu. O nascimento, a morte, o implemento de idade, a confusão, a produção de frutos, a aluvião, a aluvião, a avulsão, são exemplos de fatos jurídicos stricto sensu”.[3]

O Direito possui interesse na morte, em razão de sua importância não apenas como um rito de passagem ou de um momento de introspecção e reflexão sobre a necessidade de celebração e valorização da vida; a morte desencadeia o sistema penal quando haja sido cometida com intuito criminoso; enfim, a morte faz desencadear uma série de efeitos jurídicos, previstos no sistema legal.  Segundo Pietro Perlingieri: “Mesmo depois da morte do sujeito, o ordenamento considera certos interesses tuteláveis. Alguns requisitos relativos à existência, à personalidade do defunto - por exemplo, a sua honra, a sua dignidade, a interpretação exata da sua história - são de qualquer modo protegidos por um certo período de tempo”  ou seja “enquanto forem relevantes também socialmente”.[4] Algumas pessoas, individuadas pelo ordenamento, serão legitimadas a tutelar os interesses dos sucessores do de cujus. 

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Cabe realçar que todo um capítulo existente no Código Civil estabelece regras que necessariamente tocam aqueles aos bens daqueles que já partiram dessa para uma nova realidade. Em matéria sucessória não vigora o preceito de que a morte resolve tudo, estampado no aforisma latino “mors omnia solvit”: a morte não resolve tudo, uma vez que o complexo de relações jurídicas nas quais o decujo tenha figurado como credor, devedor, contratante, contratado, proprietário, possuidor, enfim, necessita ser resolvidas ou extintas, consoante as mais diversas soluções previstas na ordem legal.

 O sujeito que então figurava como uma das partes de uma relação jurídica é reduzido a cadáver. Cadáver não possui personalidade, sentimento ou titulariza quaisquer direitos, conquanto possamos afirmar que o ordenamento jurídico proteja-o em razão de ser objeto de eventual crime de destruição, subtração, ocultação ou vilipêndio de cadáver, como estabelece os artigos 211 e 212 do Código Penal. A pessoa natural, com a morte, deixa de ser titular de direitos e doravante é apenas um finado, extinto ou, como comumente se chama, de cujo.

 A expressão de cujus, utilizada tanto no masculino quanto no feminino, é uma abreviação da "de cujus sucessione agitur” que significa “de cuja sucessão se trata” e é utilizada no lugar do nome do falecido ou extinto, não sofrendo flexão de gênero ou quantidade.


2. Princípio da Saisine ou Droit de Saisine

  Como afirmado acima, talvez uma das mais conhecidas consequências da morte seja a transmissão de direitos, ações, pretensões, exceções e interesses que eram titularizados pelo de cujus e para os seus sucessores, legítimos ou testamentários.

A herança (=acervo patrimonial, isto é, todo o conjunto de créditos e dívidas) é transmitida automaticamente, desde a abertura da sucessão,[5] isto é, desde o momento em que ocorrida a morte. O droit de saisine ou direito de saisine, já possui tradição em nosso ordenamento jurídico. Carlos Maximiliano é direto e objetivo: “Todos os direitos que se incluem na sucessão causa mortis, ficam transferidos ao herdeiro no momento do traspasse ao de cujus; imediatamente o domínio deste se torna domínio daquele, a posse de um posse do outro. Efetua-se a transmissão ipso jure, por efeito da lei, ainda mesmo que o sucessor ignore o fato e o seu direito do mesmo decorrente”.[6]

O princípio da saisine está categoricamente disposto no artigo 1.784 do Código Civil:[7]

“Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”.

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda ensina que em “francês, saisine é palavra de origem germânica, que significa posse, - mais direito de possuir, ou posse que o direito dá, do que posse no sentido de exercício efetivo. Tão portuguesa, como de outra língua, porque está nos textos do latim cosmopolita: saisina, in saisina. No brocardo francês, le mort saisit le vif, a psique germânico-latina da França bem se retrata: saisir, do germânico, traduz a passagem, por força de direito, da posse do defunto aos herdeiros, isto é, palavra germânica para exprimir conceito germânico”.[8]

O civilista Carlos Roberto Gonçalves, com lastro em conceito do Código Civil Lusitano de 1967, ensina: "O princípio da saisine foi introduzido no direito português” e que “O Código Civil português de 1967, já revogado, dizia no art. 2.011: "A transmissão do domínio e posse da herança para os herdeiros, quer instituídos, quer legítimos, dá-se no momento da morte do autor dela".[9] Maria Berenice Dias informa que a “pedra de toque do direito sucessório é o chamado princípio de saisine, que teve origem na França, como oposição ao regime que vigorava à época do feudalismo. Com o falecimento do servo, o senhor feudal assumia o direito à herança e o herdeiro só a recuperava mediante o pagamento de pesados impostos. Daí a transmissão automática do patrimônio aos herdeiros, ficção para driblar a tributação”.[10] O direito de saisine nada mais representa que uma ficção jurídica, que tem a potencialidade de transferir o acervo patrimonial do falecido a seus sucessores, independente de qualquer formalidade legal. O princípio de saisine, palavra de origem francesa que significa agarrar, prender, apoderar-se.[11]

O jurista Ricardo Fiúza ressalta que: "Com o falecimento do indivíduo, abre-se-lhe a sucessão. O patrimônio do de cujus, com o nome de herança, passa aos seus sucessores. Na França, desde o século XIII, fixou-se o droit de saisine, instituição de origem germânica, pelo qual a propriedade e a posse da herança passam aos herdeiros, com a morte do hereditando - le mort saisit le vif. O Código Civil francês, de 1804 - Code Napoléon -, diz, no art. 724, que os herdeiros legítimos, os herdeiros naturais e o cônjuge sobrevivente recebem de pleno direito (son saisis de plein droit) os bens, direitos e ações do defunto, com a obrigação de cumprir todos os encargos da sucessão. No Código Civil alemão - BGB -, arts. 1.922 e 1.942, seguindo o direito germânico medieval, afirma-se, igualmente, que o patrimônio do de  cujus passa ipso jure, isto é, por efeito direto da lei, ao herdeiro.  O princípio da saisine foi introduzido no direito português pelo Alvará de 9 de novembro de 1754, reafirmado pelo Assento de 16 de fevereiro de 1786. O Código Civil português, de 1867, já revogado, dizia, no art. 2.011: "A transmissão do domínio e posse da herança para os herdeiros, quer instituídos, quer legítimos, dá-se no momento da morte do autor dela". A mesma solução constou no art. 978 da Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas. E o Código Civil de 1916 manteve essa linha, enunciando, no art. 1.572: "Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários". Filiou-se, portanto, ao sistema germânico-francês. O vigente Código Civil português, de 1966, abandonou a antiga tradição afirmando, no art. 2.050, I: "O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente de sua apreensão material". A inspiração veio do art. 459 do Código Civil italiano: "L'eredità si acquista con l'accettazione". Nesses países, portanto, a aquisição da herança não se dá por força da lei, mas depende do ato voluntário da aceitação. Porém, tanto o Código Civil português (art. 2.050, 2) quanto o italiano (art. 459) dispõem que os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão. Pelo art. 1.784, sob comento, terminando a existência da pessoa natural com a morte (art. 6º), extinguindo-se a personalidade civil, que começou do nascimento com vida (art. 2º), abre-se a sucessão, dando-se, no mesmo instante, a transmissão do patrimônio do de cujus".[12]

Ocorrendo a existência de herdeiros, estes são condôminos do acervo e o estado de indivisão apenas cessa com a sentença de partilha, que “no sentido estrito do Direito de Sucessões, é a operação processual pela qual a herança passa do estado de comunhão pro indiviso, estabelecido pela morte e pela transmissão por força de lei, ao estado de quotas completamente separadas, ou ao estado de comunhão pro indiviso ou pro diviso, "por força da sentença".”[13]

Na sucessão legítima ou testamentária, os sucessores recebem com a simples ocorrência da morte do de cujus a integralidade de propriedades e a posses de bens que compõem todo o patrimônio hereditário, também denominado de acervo sucessório ou acervo hereditário.

Com a ocorrência da morte e incidência do princípio da saisine, sendo uma fundação instituída por testamento pelo de cujo, por ato de última vontade, a propriedade dos bens dotados e especializados a determinado fim é desde logo transferida desde logo para o cumprimento das finalidades institucionais da fundação, operando a partilha efeito declaratório e não possuindo o registro do formal de partilha natureza constitutiva do direito real imobiliário[14]; doutro lado, nos atos jurídicos causa mortis a aquisição da propriedade e de outros direitos reais sobre imóveis independe do registro, quando ocorrente a usucapião; na sucessão os herdeiros adquirem a titularidade da propriedade e posse dos bens móveis e imóveis do de cujus, no exato momento da ocorrência da morte (droit de saisine). [15]

Com o advento da morte todo universo patrimonial do falecido é transmitido aos herdeiros, os quais passam a agir como titulares do domínio por força do princípio da saisine e porque o Direito não quer que todo o patrimônio do extinto fique um segundo sequer sem titularidade. Todos os direitos, ações, pretensões e exceções do extinto passam, automaticamente, para os sucessores, legítimos ou testamentários. Washington de Barros Monteiro remata: “Do disposto no citado art. 1.784 decorre que, aberta a sucessão, a herança se transmite imediatamente aos herdeiros, que se tornam, assim, titulares de direitos adquiridos. Tal situação, definitivamente constituída, não pode ser afetada ou comprometida por fato novo, ou por lei nova, ex vi do estatuído no art. 5º, n. XXXVI, da Constituição Federal de 1988 e no art. 2.041 do Código Civil de 2002. Em matéria de vocação hereditária não se legisla para alcançar o passado, mas apenas para reger o futuro. A lei do dia da morte rege todo o direito sucessório, quer se trate de fixar a vocação hereditária, quer de determinar a extensão da quota hereditária. Não pode a lei nova disciplinar sucessão aberta na vigência da lei anterior”.[16]

Pontes de Miranda alerta que o princípio da saisine vigora de dois princípios distintos: (a) princípio da sucessão em todo; (b) princípio da aquisição eo ipso.

Sobre o autor
Horácio Eduardo Gomes Vale

Advogado Público em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALE, Horácio Eduardo Gomes. Princípio da saisine. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4765, 18 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50401. Acesso em: 27 nov. 2024.

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