3. Princípio da Sucessão em Todo
Quis a Lei que toda a herança passasse com indivisibilidade aos sucessores. Poderia a lei prever que fosse transmitida, apenas, parte determinada do acervo patrimonial, como, por exemplo, direitos imobiliários ou determinados direitos pessoais. Entretanto, a Lei, por questões de política legislativa, praticidade na administração do acervo hereditário e segurança jurídica, preferiu que a sucessão fosse transmitida in totum. Segundo Pontes de Miranda, “a herança passa aos herdeiros como todo, indo, como unidade (ativo e passivo, domínio, nuas propriedades, domínio útil, direitos reais, créditos), aos que são chamados e que recolhem”.
4. Princípio da Aquisição Eo Ipso
Para a transmissão da herança aos sucessores é dispensável qualquer prática de ato ou negócio jurídico, isto é, a transmissão decorre automaticamente em razão do óbito do autor do acervo. O princípio da aquisição eo ipso, em decorrência da influência tedesca, também é conhecido como Prinzip des ‘eo ipso Erwerbes’.
Assim, os bens que compõem a herança do de cujus passam aos herdeiros sem a necessidade de prática de qualquer ato e sem necessidade de qualquer manifestação de vontade. Aberta a sucessão, isto é, ocorrida a morte, a transmissão do acervo hereditário decorre ex vi legis, é automática, desprezando-se qualquer elemento volitivo dos sucessores ou interessados. A doutrina germânica mais uma vez influenciou o direito brasileiro, pois o princípio da aquisição eo ispo é retrato do Der Tote erbt den Lebendigen, le mort saisit le vil, a saisina de direito, saisina iuris.[17]
5. Exceções ao Princípio da Saisine
Conquanto a regra seja a da incidência do princípio da saisine, isto é, que aos sucessores seja transmitido todo o acervo hereditário imediatamente, há exceções a tal proceder.
Em primeiro lugar, ao poder público não é extensível o princípio da saisine. Maria Berenice Dias assevera que inexistindo “herdeiros - nem obrigatórios, nem facultativos ou testamentários -, não ocorre a abertura da sucessão. Na falta de sucessores os bens são arrecadados como herança jacente, ou seja, herança que não tem dono. Concluído o processo de declaração de vacância, os bens passam ao domínio do ente público do município onde se encontram situados. A pessoa jurídica de direito público não se beneficia do princípio de saisine. A ele não se transmite o domínio e a posse da herança, mesmo que o falecido não tenha herdeiros. A aquisição da titularidade da herança ocorre por meio da sentença que dispõe de eficácia constitutiva”.[18] Em sentido similar vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça: STJ, 4ª Turma, REsp 164.196/RJ, Relator: Ministro Barros Monteiro, julgado em 3/9/1998, DJ 4/10/1999, p. 59.[19]
Em segundo lugar, o Decreto-Lei 3.438/1941, veda a sucessão de cônjuge estrangeiro em terrenos de marinha.[20]
Em terceiro lugar, o Decreto-Lei 3.182/1941, proíbe a sucessão de estrangeiros em ações ou quotas de bancos de depósito.
Em quarto lugar, o Decreto-lei 2.063/1940, determina, quanto às ações de companhias de seguros, sejam elas vendidas em bolsa, não havendo cônjuge, herdeiros ou legatários brasileiros a quem se faça a transferência.
Em quinto lugar, carece de manifestação favorável do Conselho Nacional de Segurança a transmissão inter vivos ou causa mortis de terras fronteiriças, consoante dispõe o artigo 205 do Decreto-Lei 9.760/1946.
Em sexto lugar, vem o Decreto-Lei 227/1967, dispondo que a autorização da pesquisa mineral só é transmissível a herdeiros necessários ou cônjuge sobrevivente.
Em sétimo lugar, o Decreto-Lei 5.384/1943, preceitua que, na falta de beneficiário nomeado, pagar-se-á o seguro de vida metade à mulher e metade aos herdeiros do segurado, o mesmo acontecendo no tocante aos pecúlios deixados em Institutos de Previdência que, na falta de designação especial de beneficiários, se deferem aos herdeiros e cônjuge supérstite.
Em oitavo lugar, a Lei de Direitos Autorais, número 9.610/1998, dispõe que cairá em domínio público as obras de autores falecidos que não tenham deixado sucessores, bem como acrescer-se-ão aos dos sobreviventes os direitos do coautor que falecer sem sucessores.
Em nono lugar, o artigo 692, inciso III do Código Civil de 1916, em vigor por força do artigo 2.038 do Código Civil de 2002, determina que, no que atine à enfiteuse, que ela se extingue se falece o enfiteuta, sem herdeiros, salvo o direito dos credores.
6. A Herança e os Interesses Tutelados
Não pode ser esquecida que a disposição do artigo 5º inciso XXX da Constituição Federal, no sentido de ser “garantido o direito de herança” não dispensa o pagamento de todo o passivo do de cujus, razão pela qual as forças da herança poderão ser exauridas com o pagamento de obrigações ou dívidas do extinto autor do espólio, mas os sucessores não ficarão obrigados pelo pagamento de eventuais dívidas ou obrigações que superem os valores auferidos pelo recebimento do acervo patrimonial, de maneira legal ou testamentária.
Importante regra legal traz as disposições finais do Código Civil de 2002. Com a finalidade de não ser atingida a propriedade e os demais direitos reais eventualmente aperfeiçoados com sucessão aberta ainda na vigência do Código Civil de 1916 (como eventualmente o direito de propriedade dos herdeiros e o de usufruto dos cônjuges supérstites), estabeleceu o artigo 2.041 do Código Civil de 2002 sua aplicação ex nunc, pois:
“A norma em tela é consequência da aplicação do princípio da saisine, vislumbrando no art. 1.784 do Código Civil. Com o óbito automaticamente há a transmissão do patrimônio do de cujus aos seus herdeiros, sem solução de continuidade. [...]
A lei de toda e qualquer sucessão é a lei da data do óbito. Assim, todos os óbitos verificados antes de 11.01.2003 seguem as regras sucessórias do Código Civil de 1916, mesmo que a partilha seja ultimada tempos depois da vigência da nova lei civil. O registro da sentença que ultima o inventário é ato meramente declaratório de uma aquisição que já se deu de pleno iure com o óbito. A lei nova não pode retroagir para capturar as sucessões anteriores ao Código Civil de 2002 - mesmo no período de vacatio legis - sob pena de malferir a garantia fundamental dos sucessores ao direito adquirido e incorporado ao seu patrimônio ao tempo da legislação revogada.
Enfim, o aspecto temporal é fundamental na sucessão, sobremaneira diante das severas modificações da ordem de vocação hereditária no Código Civil de 2002 em favor do cônjuge (art. 1.829 c/c o art. 1.845 do CC)”.[21]
Nesse contexto, existe o dever anexo de prestação de contas do outorgado em relação aos sucessores (herdeiros ou testamentários) do falecido outorgante, ainda que se alegue que a morte do mandante extingue o mandato. Assim, o dever de prestação de contas, o ajuizamento da respectiva ação de prestação de contas tem início após a realização da finalidade do contrato de mandato, persistindo após o término da relação contratual encetada.
Em decorrência do direito de saisine, existe obrigação de prestação de contas em relação aos sucessores (testamentários ou herdeiros) do de cujus, pois os herdeiros ficam automaticamente investidos na titularidade de todo o patrimônio (ativo e passivo) do de cujus.
7. Entendimento Jurisprudencial
O Superior Tribunal de Justiça entende assistir legitimidade aos sucessores para pleitearem direitos transmitidos pelo de cujus antes mesmo de inaugurado o processo de inventário, consoante precedentes (STJ, MS 20365/DF, Relator: Ministro Sérgio Kukina, julgamento 9/4/2014).
Também entende o Superior Tribunal de Justiça a manutenção e necessidade do dever de prestação de contas de mandatário aos sucessores do de cujus. Destarte, ainda que tenha se operado intuito personae a celebração do contrato de mandato e a outorga de procuração, consoante inteligência do artigo 668 do Código Civil indispensável o acerto de contas, salvo, se existia expressa e voluntária previsão de dispensa no momento da celebração do contrato de mandato e outorga de instrumento procuração, geralmente sob a expressão “isento da prestação de contas”. Confira-se: STJ, 3ª Turma, REsp 1122589/MG, Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 10/4/2012, DJe 19/4/2012.
O momento da morte também impede que o apetite do fisco tribute aquilo que não esteja na concepção do elemento temporal do fato gerador. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se consolidou até que tomou forma a Súmula 112, no sentido de que “O Imposto de Transmissão causa mortis é devido pela alíquota vigente ao tempo da abertura da sucessão”. Afinado com tal entendimento, decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “Arrolamento. Imposto de transmissão causa mortis. Fato gerador localizado na transmissão de bens em decorrência do óbito. Alíquota incidente sobre o valor dos bens à data da abertura da sucessão. Inaplicabilidade da lei tributária posterior (art. 144 do CTN e Súmula n. 112 do STF). Recurso improvido.” TJSP, AI. 231.533-4/7-00, Relator: Desembargador Carlos Roberto Gonçalves, j. 29/1/2002. Doutra banda, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, decidiu a temática:
“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. DIREITO INTERTEMPORAL. DIREITO DE SAISINE. ÓBITO. APLICAÇÃO DA LEI VIGENTE. LEI 7.713/88. BENS ADQUIRIDOS POR HERANÇA. ISENTOS DE IMPOSTO DE RENDA. TRANSFERÊNCIAS CAUSA MORTIS. EXCLUSÃO DO GANHO DE CAPITAL DOS HERDEIROS E LEGATÁRIOS. LEGISLAÇÃO POSTERIOR. MODIFICAÇÃO DE TRATAMENTO. INAPLICABILIDADE. 1. A solução da controvérsia trazida à colação está em fixar o momento da transmissão da herança e, partindo deste, em aplicar o princípio da irretroatividade da lei tributária. 2. O artigo 1.572 do antigo Código Civil, em vigor ao tempo do falecimento do autor da herança, transmitiam-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários, no que encontra correspondência no artigo 1.784 do novo Código Civil. 3. Adotou-se o princípio originário do droit de saisine, que dá à sentença de partilha caráter meramente declaratório, haja vista que a transmissão dos bens aos herdeiros e legatários se dá no momento do óbito do transmitente. 4. As regras a serem observadas na transmissão da herança serão aquelas em vigor ao tempo do óbito do de cujus que, no caso em tela, e no que tange à incidência do Imposto de Renda, encontravam-se na Lei 7.713/88. 5. Dispunha o citado diploma legal, no inciso XIV, do artigo 8º, e no inciso III, do artigo 22, que o valor dos bens adquiridos por herança serão isentos do imposto de renda e que as transferências causa mortis serão excluídas do ganho de capital dos herdeiros e legatários. 6. A tese defendida pela recorrida, de que o fato gerador do imposto na espécie, a ensejar o recolhimento do imposto, é o acréscimo patrimonial decorrente da reavaliação patrimonial dos bens constantes da última declaração do de cujus, há de ser refutada, haja vista que faz incidir ao caso em comento sistemática criada por lei posterior à transmissão dos bens deixados pelo transmitente, que se deu sob a égide da Lei 7.713/1998, com consequente violação do princípio da irretroatividade das leis tributárias. 7. Por unanimidade, deu-se provimento à apelação em Mandado de segurança.” TRF, 2ª Região, 5ª Turma, AMS 50702/RJ, Relator: Desembargador Federal Alberto Nogueira, DJ 29/6/2004, p. 129.
O Superior Tribunal de Justiça acertadamente não destoou de tal interpretação: STJ, 2ª Turma, REsp 829.932/RS, Relator: Ministro Castro Meira, julgado em 10/4/2012, DJe 23/4/2012. Também decidiu o o Superior Tribunal de Justiça que penhora realizada em imóvel cuja titularidade é do de cujus, mostra-se viável o ajuizamento de embargos de terceiro pelo herdeiro necessário, a fim de defender o acervo dos atos de expropriação judicial. STJ, 1ª Turma, AgRgREsp 1404889/PE, Relator: Ministro Benedito Gonçalves, julgado em 23/6/2015, DJe 5/8/2015.